ARTIGO

Para derrotar direita, esquerda precisa enfrentar desafios com novo projeto de sociedade

A extrema direita usa do cinismo, do ódio e do desencanto com um mundo onde o capital já nada oferece

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
Rússia e China aceleraram suas perspectivas de mudança da ordem mundial através do BRICS - Sergei SAVOSTYANOV / POOL / AFP

Os resultados das eleições para o Parlamento Europeu não deveriam ser considerados uma grande surpresa diante da complexidade da crise que vive o bloco europeu. Os partidos de extrema direita, ainda que tenham diferenças consideráveis dependendo de seu país de origem, têm cada vez mais conseguido o apoio de uma massa de descontentes com o processo em curso na Europa e nessas eleições deram um salto qualitativo, principalmente na Itália, França e Alemanha.

Portanto, precisamos identificar o que se passa no “velho continente”. Primeiro, desde a década de 1980, a região que já foi a locomotiva industrial do mundo se voltou para um profundo processo de financeirização da economia, com um desmonte da indústria e dos direitos sociais e trabalhistas assentados nos princípios neoliberais. Não foi um processo rápido mas, depois de Margaret Thatcher, nunca recuou. A Alemanha talvez tenha percorrido um caminho diferente naquele momento devido ao seu processo de divisão e reunificação. 

No século 21, esse projeto aparentemente chegou na sua maturidade e, com isso, acentuou uma crise que é insolúvel dentro dos parâmetros estabelecido da União Europeia. Essa é a questão que a esquerda, ou as esquerdas do continente, nunca conseguiram dar respostas. Não apenas na Europa, mas mundialmente estamos diante desse fenômeno. Ao contrário do esperado, boa parte dessa esquerda se transformou em gestora desse processo, ainda que atuando em determinadas áreas e temas como imigração, gênero e outras questões sociais com maior ênfase.

Porém, abandonou o questionamento da ordem econômica, acreditando que o elevado padrão europeu de acumulação de capital seria suficiente para distribuir direitos. Acontece que essa fase acabou. Diante da crise aberta a partir de 2008 e a fome por mais capital por parte dessas burguesias, a crise social passou a se alastrar em ritmos diferentes pelo continente. E, diante da crise, a extrema direita tem oferecido respostas que podem parecer simplistas aos nossos olhos mas que conquista força social.

O discurso anti-imigração, antifeminista, anti-lgbtqia+, dentre outros, tem conseguido canalizar os anseios de mudança, ainda que não ofereça nada além de retrocesso. Mas a grande força dessa extrema direita reside numa crítica ao modelo de Europa e de União Europeia. Ela não contesta o capitalismo, mas sim a falta de “autonomia nacional”. Lembremos do Brexit e suas promessas caso a Grã-Bretanha saísse do bloco. No fundo estamos diante de uma espécie de rediscussão, pelas burguesias com base nesses países, da fatia da riqueza produzida. Por isso, o discurso ultranacionalista ressurge com força. É preciso observar os próximos movimentos para confirmar essa tendência, pois em algumas regiões, como os chamados países nórdicos, houve uma vitória dos partidos considerados à esquerda.

Ainda que a denominada “centro-direita” - ou o bloco de liberais no poder- tenha angariado a maioria dos votos, isso não significa que tenham vencido politicamente e que estejam garantidas as proteções contra políticas mais reacionárias. Temos que desmistificar essa “direita tradicional” com se ainda fossem democráticas. Ao contrário, com o neoliberalismo e a financeirização essas elites engessaram a democracia e fizeram regredir a participação popular, seja pela repressão ou pelo aliciamento.

Portanto, a defesa da democracia e do multilateralismo vindo da União Europeia é excludente e sem base, porque pressupõe o predomínio do capital sobre os anseios populares e, por isso, o discurso nacionalista e, em vários casos, de desmantelamento da UE, estão em ascensão e tendem, nesse ritmo, a se tornar predominantes dentro de um curto espaço de tempo.

Todo esse caldo próprio da Europa está sendo potencializado pela decisão de promover uma guerra contra a Rússia utilizando a Ucrânia como ponta de lança. Lembremos que os problemas europeus já existiam antes da guerra e que com ela se angariou certa unidade durante um determinado período. Porém, mais de dois anos de guerra reconfiguraram o cenário mundial. A Rússia e a China aceleraram suas perspectivas de mudança da ordem mundial através do BRICS, que a cada dia recebe solicitações de participação, inclusive de países como a Turquia, que há décadas espera a entrada na União Europeia. 

A derrota militar da Ucrânia já ocorreu e o que estamos assistindo é uma guerra OTAN versus Rússia em que a primeira está sendo derrotada. Há claros sinais de desespero diante dessa debacle e uma crescente ameaça de guerra direta e total que pode nos levar a um conflito nuclear. Macron, que talvez tenha sido o maior derrotado nessas eleições, tem diariamente falado em fazer uma “aliança” para enviar tropas para a Ucrânia e combater a Rússia. A permissão do uso de mísseis de longo alcance contra alvos dentro da Rússia é outro passo em direção a uma confrontação direta. A Alemanha parece à deriva, sendo coordenada pelos anseios dos Estados Unidos que a levaram a sair de uma posição de boas relações para uma belicosa com seu maior fornecedor de gás, a Rússia.

Se acompanharmos a votação nesses países veremos uma extrema direita que cada vez mais tem contestado o envolvimento nesse conflito. Não se trata de um apelo à paz, mas sim uma política que atua em direção aos interesses dessas frações que percebem que a guerra não está rendendo os frutos prometidos. Portanto, esses governos estão agora nos piores cenários possíveis: com riscos de perderem os seus postos e apostando cada vez mais num caminho que tem aberto espaço para o crescimento do neofascismo e, em alguns casos como a AfD na Alemanha, para o neonazismo.

Boa parte da esquerda europeia, e a social-democracia, também embarcaram na aposta da guerra e do discurso de que destruição da Rússia seria bom para os negócios. O resultado foi o seu retrocesso nas eleições. Então há algo muito errado na condução da política, da economia e das ideias que até agora marcaram o imaginário da Europa nesse século. 

As mudanças em curso são profundas e certamente o avanço da extrema-direita como alternativa de poder afetarão as relações da Europa com o mundo. Nesse momento, um crescente isolamento e vassalidade diante dos Estados Unidos tem marcado a política externa do bloco. A extrema-direita tem divergências sob qual seriam os novos parâmetros, mas até agora deixam claro que Rússia e China estão no centro das suas perspectivas. Isso confirma que a radicalidade do discurso nacionalista e anti-imigração no fundo encobre os interesses de frações do capital europeu que não se importa se esse capital vem da China socialista. Já vimos isso nos anos 1930. 

O importante é observar quais frações de classe vão aderir a esse projeto em desenvolvimento. Para a América Latina isso não é menos importante. O Vox, partido da extrema-direita na Espanha, tem servido como porta-voz e ponte desses interesses, inclusive realizando um  encontro há poucas semanas que levou figuras com Javier Milei e Giorgia Meloni da Itália. Nesse sentido, o neofascismo está com ampla vantagem com relação a esquerda mundial no que diz respeito em debater projetos para um mundo em transição. Ainda que em determinados países a centro-direita governe como maioria, estará amplamente pressionada por uma organização com força cada vez mais continental e mundial e terá que negociar ou apostar em novas alianças. Ainda assim, sem uma drástica mudança no curso da economia e da política e com foco na resolução dos problemas concretos das populações, pouco conseguirão resistir. 

A França será o país em que veremos por onde seguirá o futuro da Europa. Após a derrota no domingo, Macron dissolveu a Assembleia Nacional e convocou novas eleições para o final de junho. Uma aposta arriscada e, em certa medida, desesperada. Com mais de 30% dos votos, o partido de Marie Le Pen tem grandes chances de conquistar maioria no parlamento. Se isso vier a ocorrer, uma forte sinalização para o restante da coalizão neofascista será dado, inclusive fortalecendo ainda mais a possibilidade de vitória de Trump em novembro nos Estados Unidos.

Há elementos complexos na atual situação, que podem levar há um conflito generalizado na Europa como solução para essa crise. O descontentamento com a guerra e seus custos não surtem efeitos numa elite cada vez mais incapaz de ver a realidade da transição mundial em que Europa e Estados Unidos estão perdendo cada vez mais sua hegemonia. A esquerda, nesse momento, não possui nenhum projeto alternativo que arraste os povos da Europa para a construção de uma outra ordem, ou ao menos reformas profundas no modelo atual em vigência. A extrema direita usa do cinismo, do ódio e do desencanto com um mundo onde o capital já nada oferece. Para derrotá-los é preciso uma esquerda com capacidade enfrentar os desafios postos e com um novo projeto societário alinhado com as demandas deste século.

 

*As opiniões contidas neste artigo não representam necessariamente as do Brasil de Fato

** Anderson Barreto é historiador e pesquisador do Front - Instituto de Estudos Contemporâneos
  

Edição: Rodrigo Durão Coelho