Qualquer epidemia nos atinge desigualmente e, sobre essa desigualdade, não há uma palavra da OMS
A emergência sanitária global causada pela disseminação do coronavírus no planeta levou nações ao entendimento de que é necessário um planejamento internacional para o enfrentamento de eventuais novas epidemias. No entanto, após dois anos de discussão no âmbito da Organização Mundial da Saúde (OMS), nenhum direcionamento sobre o chamado Acordo das Pandemias foi acertado.
O banho de água fria foi causado por divergências que permearam as reuniões para construção do tratado, principalmente entre países do norte e do sul global. Esperado para ser apresentado na 77ª Assembleia Mundial da Saúde – que ocorreu em Genebra (Suíça), de 27 de maio a 1º de junho –, o resultado das discussões foi postergado por pelo menos um ano. Nesse período, novos debates devem acontecer.
“Houve uma estratégia de apagamento durante a Assembleia Mundial de Saúde, com cancelamentos, não representações, enfim, estratégias de adiar a discussão”, afirma o pesquisador Gustavo Matta, Coordenador do Núcleo Interdisciplinar sobre Emergências em Saúde Pública do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, em conversa no podcast Repórter SUS desta quinta-feira, 13 de junho (ouça no play abaixo do título). Segundo ele, está entre os obstáculos uma discussão que envolve soberania, patentes, acesso a insumos e troca de informação entre os países.
A União Europeia (UE) propôs pontos que obrigam as nações a notificarem a identificação de agentes patogênicos e compartilharem todas as informações epidemiológicas com uma rede internacional de laboratórios. No entanto, a proposta não traz garantias de acesso a descobertas e tecnologias fruto dos estudos sobre esses agentes para todo o mundo.
Dessa forma, países mais ricos teriam os recursos em mãos, protegidos pelas patentes e com potencial lucrativo estratosférico. A proposta traz vantagens à indústria farmacêutica, quase toda baseada em nações de maior poder econômico. A decisão sobre quem teria acesso a vacinas, remédios e tratamentos ficaria nas mãos desses grupos.
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"Temos, de um lado, os países ricos protegendo suas economias, interesses econômicos e geopolíticos e, do outro lado, os países pobres e em desenvolvimento tentando se proteger para ter alguma equidade nessa relação internacional, a partir daquilo que é fundamental para desenvolver fármacos e vacinas, que são os dados”, pontua Matta.
Nos meses seguintes à apresentação da proposição europeia, países do sul global e organizações de defesa da saúde expressaram críticas ao texto e tentaram debater a questão das patentes. Mas as tentativas não avançaram. A OMS considerou que não havia tempo hábil para o debate. Na conversa com o Repórter SUS, Gustavo Matta explicou que os votos de todas as nações-membro têm o mesmo peso na organização, mas, na prática, quem pode doar mais recursos para as ações do órgão acaba com maior influência, o que inclui fundações privadas.
“Não há nada de novo no cenário de todas as vezes que queremos avançar para uma saúde mais equitativa e universal. Nós não estamos falando nem da transferência de patentes, apenas da distribuição de vacinas e kits diagnósticos de tecnologia para países pobres em desenvolvimento. É um embate duro e difícil com blocos que se unem para defender seus interesses econômicos.”
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A potencialização da desigualdade em um cenário de colapso na saúde de populações do mundo todo não é uma previsão. Ela já aconteceu durante a pandemia da covid-19. Em outubro de 2021, quase dois anos após o início da emergência sanitária, a plataforma Our World in Data mostrava que os países desenvolvidos alcançavam a marca de 70% da população vacinada, enquanto os países de baixa renda tinham apenas 3% da população vacinada.
Gustavo Matta alertou ainda que elementos importantes ficaram de fora do debate sobre o Acordo das Pandemias. Entre eles, estão as desigualdades estruturais enfrentadas por diversas nações, fatores determinantes para a construção de respostas aos problemas e crises. Ele explica que a ideia da OMS para o acordo se baseia em preparar as nações para novas pandemias, responder de maneira globalizada às emergências e voltar a um estado de normalidade, o que em muitos lugares esbarra em questões sociais.
“Esse estado supostamente normal não existe. Principalmente em sistemas de saúde frágeis e sem uma estrutura de informação, onde a determinação social da saúde ainda é um grande componente na produção de desigualdades, de acesso a serviços de produção de doenças a partir de pobrezas e uma série de outras questões. Qualquer epidemia nos atinge desigualmente e, sobre essa desigualdade, não há uma palavra da OMS. O Acordo das Pandemias é uma utopia neste momento”.
Edição: Rodrigo Chagas