ARTIGO

Quando o amor vira cláusula: quer assinar um contrato de namoro comigo?

A quem interessa um contrato desses?

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
"O estabelecimento do relacionamento delimita fronteiras, quem está dentro e quem está fora" - Foto: Kelvin Dias.

Após o Dia dos Namorados, notamos uma tendência: a realização de contratos de namoro. Não estamos falando de promessas ou juras de amor, mas de contratos escritos, assinados e registrados em cartório. As possibilidades de vivenciar relacionamentos amorosos vêm crescendo nos últimos anos. Neste contexto, os contratos de namoro parecem ser uma novidade interessante para quem busca maior segurança jurídica e/ou emocional.

De acordo com o Colégio Notarial do Brasil (CNB), no Distrito Federal, de 2023 até maio de 2024, foram escriturados em cartório cerca de 170 desses contratos. São documentos formais que casais utilizam para declarar que seu relacionamento é apenas um namoro, para que não seja interpretado como um casamento ou uma união estável.

Pensando no histórico de lutas para o reconhecimento de uniões afetivas, assim como de casamentos por pessoas LGBTQIAP+, nos perguntamos: a quem interessa um contrato desses? Esse tipo de contrato visa proteger as partes envolvidas de eventuais disputas jurídicas que poderiam surgir no futuro, especialmente relacionadas à divisão de bens. Isto é, em caso de término, não há implicação patrimonial, como pensão e herança. Percebemos, assim, que é um documento interessante para pessoas com patrimônio já consolidado que desejam proteger seus bens individuais. 

Esse individualismo mostra o aspecto econômico dos relacionamentos afetivos e sua conexão com a propriedade privada e o controle do corpo alheio, elementos-chave do capitalismo. Tais aspectos permitem a acumulação de recursos que afeta as diferentes classes e gêneros de formas distintas: para muitos, um casamento ou união estável é a única forma de terem seu espaço e independência de sua família original. Para outros poucos, unir famílias é uma forma de acumular riqueza e passar heranças e propriedades de geração em geração, ajudando a manter o controle sobre os bens. Percebe-se, assim, que contratos de relacionamento podem proteger o patrimônio de cônjuges abastados daqueles em situação econômica inferior.

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O sexismo que marca a família nuclear tradicional também interfere na divisão do trabalho ao estabelecer papéis de gênero. As relações heteronormativas e controladas pelo homem/marido/pai se sustentam em um histórico de mulheres serem tratadas como propriedade que vem desde a época colonial e persiste hoje no capitalismo moderno. Casamentos são contratos sociais que colocam a responsabilidade do cuidado sobre as mulheres, livrando homens da responsabilidade do trabalho doméstico e o Estado de garantir serviços que deveriam ser direitos coletivos.

Os contratos em relacionamentos afetivos não são uma novidade. Ao buscar oficializar um compromisso, é comum fazer um pedido e pactuar a existência de um relacionamento monogâmico a partir da resposta à pergunta "quer namorar comigo?". A prática de notarizar contratos de namoro mostra uma conexão do romântico e sensual a um regime contratual controlado pelo Estado. Para garantir segurança patrimonial e ter clareza das expectativas, renuncia-se a liberdade de experimentação para fixar as regras, seu cumprimento sendo tutelado pelo Estado.

O estabelecimento do relacionamento delimita fronteiras, quem está dentro e quem está fora. Também influencia nossas identidades: dizemos "somos um casal”, não “estamos casal". Uma prática que demonstra a importância do relacionamento afetivo para nosso desejo de pertencer. Um elemento comum é a monogamia, regra no direito de família brasileiro, que proíbe o casamento com mais de uma pessoa. A monogamia é uma estrutura que influencia comportamentos, sentimentos e subjetividades ao gerar expectativas de fidelidade e da reserva de afeto, relações íntimas e deveres a um único parceiro. A forma como a monogamia opera em relacionamentos varia. Sabemos que há certa leniência em sua prática por homens. E sua força pode ser sentida até em relacionamentos abertos. Se pode estabelecer, por exemplo, em um relacionamento aberto, que certos afetos sejam limitados ao “casal principal”, enfatizando o pertencimento a essa relação. Garante, assim sentimentos de segurança e de superioridade em relação a outros relacionamentos, assim como a sensação de pertencimento por meio da exclusividade, sexual e/ou romântica.

Não nos surpreendemos com desejos por uma alma gêmea para afastar a solidão e a insegurança, nem com sentimentos de ciúmes. Essas emoções e desejos são respostas humanas às condições reais de nossa sociedade atual. Mas elas também estão conectadas a recursos materiais, assim como capital social e valores como honra, e por isso podem ser usadas para fomentar pânicos morais "em defesa da família, da moral e dos bons costumes" que beneficiam o neoliberalismo.

Os contratos de namoro são um sintoma de um neoliberalismo que fortalece um Estado mínimo, ao incentivar a privatização e individualização de direitos. Essa lógica transfere a responsabilidade do cuidado para o seio familiar, em vez de recair sobre o governo ou o Estado. Portanto, um Estado neoliberal que se vale dos papéis tradicionais de gênero e da exploração do trabalho doméstico não remunerado das mulheres, paradoxalmente, torna-se cada vez mais presente ao inserir os namoros, que antes costumavam ser vistos como oportunidades relaxadas para se conhecer, no regime de defesa da propriedade privada.

*Xaman Minillo é professora do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Tem graduação e mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e doutorado pela Universidade de Bristol. Trabalhou com Cooperação Internacional para o Desenvolvimento e pesquisa políticas e cidadania sexual, sendo coordenadora do Grupo de Pesquisa sobre Políticas Sexuais Internacionais (PoliSexI) da UFPB.

**Kelvin Dias é bacharel e mestrando em Relações Internacionais pela UEPB. Trabalhou no programa #tmjUNICEF para combater notícias falsas e promover os direitos humanos durante a pandemia de COVID-19. Já desenvolveu pesquisas sobre paradiplomacia e atualmente investiga temas como familismo, não-monogamia e marxismo queer. É integrante do Grupo de Pesquisa sobre Políticas Sexuais Internacionais (PoliSexI) da UFPB.


***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Fonte: BdF Paraíba

Edição: Carolina Ferreira