Crime organizado, controle de territórios, tráfico de drogas, armas e assassinatos em série não são o foco do mais recente livro de Luiz Antonio Simas. Maldito invento dum baronete (Mórula, 2024) conta a história do jogo do bicho de uma maneira muito diferente das recentes produções audiovisuais dos canais de streaming.
O enredo da obra é outro: a cultura popular e como o imaginário da população brasileira segue atrelado e influenciado pelos conhecimentos gerados a partir do jogo do bicho.
O que não significa que o livro não traga reflexões históricas fundamentais para, por exemplo, entender como se consolidou o processo de marginalização da população do Rio de Janeiro nos primeiros anos da República brasileira.
"Quando você estuda a origem do jogo do bicho, você vai mergulhar no pós-abolição, naquele contexto marcado pela proclamação da República, que tem a tarefa de pensar um Brasil com recorte civilizatório rigorosamente europeu", explica o pesquisador e professor de História Luiz Antonio Simas em entrevista ao programa Bem Viver desta terça-feira (18).
Simas explica que essa intenção de "higienizar" o país motiva o Estado a proibir o jogo do bicho três anos após a sua criação, em 1985.
"Você tinha uma quantidade infinita de loterias no Rio de Janeiro. E é exatamente a loteria do bicho que é proibida. É exatamente aquela que tem perfil mais popular, a que tem perfil mais vinculados às populações afrodescendentes da cidade."
Luiz Antonio Simas se denomina um pesquisador das culturas de rua do Brasil. É autor de mais de 20 livros, entre eles Dicionário da história social do samba (Civilização Brasileira,2015), escrito em parceria com Nei Lopes, que rendeu o prêmio Jabuti de não-ficção de 2016.
O jogo do bicho foi criado por um barão para aumentar o faturamento de um zoológico no Rio de Janeiro. Mas, rapidamente, se expandiu e tomou as ruas do Rio de Janeiro, comovendo uma população que encontra um lugar onde, literalmente, pode apostar seus sonhos.
"O jogo do bicho é muito propício ao sonho, por quê? Porque é uma loteria de animais. Então é uma loteria que trabalha com imagem, essa imagem estética do jogo do bicho é muito forte. Se fosse uma loteria só com números, eu suspeito que dificilmente a gente teria essa ligação tão forte", comenta o pesquisador.
"Enquanto [o psicanalista austríaco Sigmund] Freud estava escrevendo A interpretação dos sonhos na Europa, a turma estava interpretando o sonho no Rio de Janeiro para, de certa maneira, vincular o sonho a palpite do jogo do bicho", compara.
Simas reforça que seu objetivo com o livro é mostrar para a população que não se pode resumir o jogo do bicho ao disfarce do crime organizado no Rio de Janeiro, vinculado apenas à violência, embora essa faceta seja verdadeira e precisa ser contada, pondera.
"Ainda falta uma série que aborde o jogo do bicho com essa complexidade, com essa multiplicidade de elementos que o jogo tem. E isso, para mim, é absolutamente fundamental. Por quê? Porque o jogo do bicho pode ser interpretado a partir do onírico, da cultura de rua, do mercado de trabalho…"
Confira a entrevista na íntegra
O jogo do bicho está relacionado com os sonhos da população, certo? Seja o sonho de enriquecer ou, literalmente, o que a pessoa sonhou na noite anterior. É por ai que se explica a popularização do jogo?
A nossa formação cultural é muito marcada por alguns elementos místicos. E, nessa cultura mística, os sonhos sempre têm sentidos muito profundos. Na história dos sonhos, diversas civilizações, as mais antigas que você possa imaginar, faziam leituras de sonhos.
É como se eles fossem realmente diálogos constantes com o que está acontecendo. Como se os sonhos, no fim das contas, estivessem ligados a profecias, vaticínios sobre o futuro.
E a formação da cultura brasileira é muito marcada por esse tipo de coisa. No caso do jogo do bicho, por exemplo, eu tenho uma suspeita em relação ao Rio de Janeiro, que esse onírico, esse imaginário, o belo reino dos sonhos, como diz um samba da Beija-Flor, é muito marcado, também, pelo impacto que os ciganos tiveram na formação da cultura do Rio de Janeiro, porque a história dos ciganos no Brasil é, de certa maneira, muito escondida, ela é uma história até certo ponto apagada, mas eles são importantíssimos.
O Rio de Janeiro é uma cidade que tinha um número bastante considerável de ciganos. A comunidade cigana carioca era grande e ocupava regiões centrais da cidade. A gente encontra algumas referências no século 19, dos ciganos envolvidos, em alguma medida, com jogos vinculados aos desígnios da sorte, do azar e tal, e depois, com o próprio jogo do bicho.
O sonho é um elemento muito forte na cultura cigana, o vaticínio, o azar, a sorte. Isso é muito profundo.
Nós temos o sonho na origem da nossa formação como país. Nessa miscelânea, nesse caldeirão, sejam das Áfricas, as mais diversas, das comunidades indígenas, dos portugueses que chegam, também os mais diversos - porque o sujeito que vem do Alentejo é um, o sujeito que é o minhoto é outro. É muito curioso como existem elementos místicos em todas essas culturas.
E o jogo do bicho é muito propício ao sonho, por quê? Porque é uma loteria de animais. É uma loteria que trabalha com imagem, essa imagem estética do jogo do bicho é muito forte.
Se fosse uma loteria só com números, eu suspeito que dificilmente a gente teria essa ligação tão forte. Alguns jornais, no início do século 20, traziam as chamadas Folhas do Bicho, que davam palpites e tinham seus intérpretes de sonhos.
Enquanto Freud estava escrevendo A interpretação dos sonhos na Europa, a turma estava interpretando o sonho no Rio de Janeiro para, de certa maneira, vincular o sonho a palpite do jogo do bicho.
E passa por aí o processo de proibição do jogo do bicho?
É um projeto de recorte civilizatório que tenta apagar do Brasil ou, pelo menos, controlar, disciplinar, domésticar as mais diversas manifestações culturais das populações não brancas.
Quando você estuda a origem do jogo do bicho, vai mergulhar no pós-abolição, naquele contexto marcado pela proclamação da República [1889] e, um pouco antes, pela abolição da escravatura [1888].
A República, então, tem a tarefa de pensar um pós-abolição. Num primeiro momento, a República pensa um Brasil com recorte civilizatório rigorosamente europeu.
O Rio de Janeiro, sobretudo, como capital republicana, foi muito afetado por isso. Em grandes cidades da América Latina, não só no Rio de Janeiro, havia um movimento que buscava fazer a contenção das manifestações culturais e da ludicidade dos não brancos e dos pobres de maneira geral.
Então, me parece que o jogo do bicho é proibido. Eu tenho pouquíssima dúvida sobre isso, porque ele era uma loteria do pobre, uma loteria do preto no pós-abolição.
Você tinha uma quantidade infinita de loterias no Rio de Janeiro E é exatamente a loteria do bicho que é proibida. É exatamente aquela que tem perfil mais popular, a que tem perfil mais vinculados às populações afrodescendentes da cidade.
Me parece que faz parte de um aparelho de repressão, apagamento e domesticação das culturas não brancas, que foi um projeto republicano.
E falhou miseravelmente, certo?
Na verdade, a contravenção não conteve o jogo do bicho, que foi ganhando outras características. Ele está entranhado na cultura do Rio de Janeiro e, de certa maneira, na cultura brasileira, com toda a complexidade e problemas que tem.
O jogo do bicho, em um certo momento, começa realmente a ter uma conexão com uma pluralidade de atividades criminosas, que é muito forte, mas, ao mesmo tempo, continua entranhado nas práticas populares de sociabilidade das ruas. Então, o jogo é complexo, contraditório.
Não dá para a gente cair, como eu costumo dizer, em dois extremos a respeito do jogo do bicho. Você nem pode romantizar uma atividade que num certo momento vai estar vinculada a um complexo de atividades criminosas, o que é muito sério e muito pesado.
Ao mesmo tempo, também, não dá pra fazer uma análise que criminaliza a ponto de ignorar a complexidade e os elementos culturais que estão presentes na história do jogo do bicho.
O jogo do bicho cruza com tudo: com uma música brasileira, o futebol, a religiosidade, a cultura de botequim, a sociabilidade das ruas, a história das escolas de samba.
O seu livro é, então, uma resposta a essas séries televisivas e de podcast recentes que contaram o jogo bicho puramente pelo viés da criminalidade que envolve a atividade?
Eu acho. Você tem, por exemplo, duas séries, que eu acho boas, inclusive: Lei da Selva e Vale o Escrito, que tomaram o jogo do bicho como referência.
São séries sobre todo o aparato criminal, que, num certo momento, vai estar vinculado ao jogo, ou, no caso do Vale o Escrito, ela tem como referência fundamental a disputa dentro da família de um banqueiro do bicho, o Miro do Salgueiro e o Maninho.
Mas o jogo é muito mais complexo. Nesse sentido, eu acho que realmente ainda falta uma série que aborde o jogo do bicho com essa complexidade, com essa multiplicidade de elementos.
E isso para mim é absolutamente fundamental. Por quê? Porque o jogo do bicho pode ser interpretado a partir do onírico, da cultura de rua, do mercado de trabalho.
Nós somos um país que tínhamos um processo de exclusão nítido. E o processo de inserção de descendentes de escravizados no mercado formal de trabalho era muito difícil. Então, o jogo do bicho pode ser visto a partir da história do trabalho no Brasil.
O jogo do bicho, num certo momento, vai perdendo rentabilidade, sobretudo a partir da década de 1970, quando a própria ditadura militar [1964-1985] começa a entrar muito forte no mercado das loterias, com a loteria esportiva e tal.
Essa queda de rentabilidade do bicho faz com que você tenha um processo de formação de uma cúpula, em meados dos anos 1970, e tudo leva a crer que essa cúpula descobriu que a rentabilidade do jogo não garantiria mais a eles a circulação de capital de antes.
Há uma decisão de cúpula para diversidade de atividades, muitas delas vinculadas ao ilícito: tráfico de arma e de droga, lavagem de dinheiro etc.
Por incrível que pareça, a cúpula que, num certo, momento controlou o jogo do bicho, deixou de ter nele a sua atividade principal. Na verdade, o jogo do bicho acaba sendo quase que aquela fachada pitoresca para uma complexidade de atividades criminosas que deixaram o jogo em segundo e terceiro plano.
O jogo do bicho não foi proibido porque se tornou uma atividade criminosa. Em alguma medida, ele se aproximou do crime porque era proibido. São essas questões que a gente precisa encarar de frente.
E ainda faz sentido discutir a legalidade do jogo do bicho?
Isso é complexo. Porque, primeiro, o jogo do bicho está em declínio. Se você me perguntar o que vai acontecer com o jogo do bicho, eu não duvidaria que ele acabasse.
Além de tudo, ele não renova o público, né? Eu passei, por exemplo, em observação ativa pra escrever esse livro. Eu ficava perto de banca de jogo do bicho, ficava vendo, tomando uma cerveja num botequim, onde eu sabia que tinha um apontador. E, se você vê a média de idade da turma que joga no bicho, não tem garoto que joga no bicho.
É um ou outro, a exceção que confirma a regra. É aquela senhorinha que sonhou com o falecido marido e vai lá jogar no número da sepultura dele, né? É o garçom do bar que chega e joga no bicho para tentar ganhar um dinheiro e quem sabe, dessa maneira, levar alguém para casa.
São os trabalhadores urbanos que chegam, jogam uma aposta barata ali para ver o que acontece etc.
O jogo do bicho já foi engolido, né? Primeiro, pelos caça-níqueis. E já faz tempo isso, tanto, que esses banqueiros do bicho mergulham nessa disputa por território.
Hoje você tem as bets, que te permitem apostar em tudo o que você imaginar ligado ao esporte.
Você tem programa, por exemplo, de televisão, que é patrocinado por loteria, que patrocina campeonato, etc e tal, e as pessoas acham isso a coisa mais normal.
Eu fico espantado, porque, de novo, a gente bate naquela tecla: a questão da proibição do jogo do bicho, lá atrás, foi vinculada à ideia de quem poderia ou não poderia jogar.
É uma proibição descabida naquele contexto, evidentemente. Agora, eu não sei, tem projetos para legalizar o jogo do bicho.
Hoje, a gente vive num cassino virtual. Você entra aí, pode apostar no jogo do campeonato russo, da quinta divisão do campeonato do Cazaquistão, você pode apostar no que você quiser, né?
Então, eu acharia interessante que o jogo do bicho tivesse sido legalizado, mas acho difícil. Enquanto isso, todas as outras formas de aposta seguem aí legalizadas.
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Edição: Martina Medina