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185 anos de Machado de Assis: pesquisadora explica por que autor brasileiro e Shakespeare estão no mesmo patamar

Marta de Senna, especialista dedicada à obra machadiana, aponta "afinidade extraordinária" com escritor inglês

Ouça o áudio:

Machado de Assis
Machado de Assis: "Os dois eram fascinados pela possibilidade de mesclar o trágico e o cômico", diz a pesquisadora sobre as semelhaças entre o brasileiro e o autor britânico - Reprodução
Ambos autores tentam entender os meandros, as idas e vindas das emoções das emoções das pessoas

"Precisava de uma americana vir dizer que Brás Cubas é bom, a gente já sabia disso", questionou uma internauta na postagem que a influenciadora digital Courtney Novak fez comentando como estava impressionada com a obra de Machado de Assis.

Com mais de um milhão de visualizações, o vídeo dividiu opiniões no Brasil entre aqueles que acharam Novak falando mais do mesmo numa postura colonizadora, e quem viu um potencial na forma que a influenciadora trouxe o tema.

"Essa moça, Courtney Novak, está fazendo mais por Machado de Assis do que 130 anos de crítica", defende a pesquisadora machadiana Marta de Senna, em entrevista ao programa Bem Viver desta quinta-feira (20).

No dia 21 de junho, completam-se 185 anos do nascimento de Joaquim Maria Machado de Assis.

Responsável por quatro livros que discutem a obra machadiana, Senna vê como positiva, por exemplo, a comparação que Novak fez ao colocar o escritor brasileiro "na mesma prateleira" que William Shakespeare.

"Ele tem com Shakespeare afinidades extraordinárias. Eu acho que ambos são autores que se preocupam em perquirir a alma humana, tentar entender os meandros, as contradições, as idas e vindas das emoções das pessoas", afirma Senna que é pesquisadora aposentada da Fundação Casa Rui Barbosa.

Em 2008, a especialista elaborou na internet um portal com as citações e alusões aos romances e contos de Machado. No site, disponibilizou também edições eletrônicas fidedignas e anotadas dos cinco primeiros romances do autor.

"Os dois eram fascinados pela possibilidade de mesclar o trágico e o cômico. Os dois vinculam em suas obras aquilo que está nos diálogos socráticos: que o riso e a lágrima, a tragédia e a comédia têm a mesma origem", comenta.

Um levantamento feito pela pesquisadora revela que Shakespeare é o autor mais citado, direta ou indiretamente, nas obras machadianas.

"Os dois têm essa capacidade que tem todo o grande autor: de desestabilizar e de surpreender o leitor. Não é surpreender no nível do enredo - isso também é importante -, mas surpreender na forma como escreve."

Para exemplificar, Senna cita Memórias Póstumas de Brás Cubas. Segundo a pesquisadora, a obra causa uma desestabilização no leitor pelo título que revela que se tratar de uma obra escrita por um “defunto autor”, como o próprio Machado de Assis define no livro.

Logo depois, quem lê o romance é surpreendido pela dedicatória: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas".

Segundo Senna, este livro revela que Machado de Assis era um grande leitor, porque Memórias Póstumas faz referência a obras publicadas anos antes na Europa

"Brás Cubas tem uma afinidade extraordinária com a obra de [Almeida] Garrett, português, com a obra de [Laurence] Sterne, irlandês, e com outros autores que gostam dessa forma digressiva desse vaivém."

Mas não é só isso. O próprio título de Memórias Póstumas de Brás Cubas já mobiliza a enciclopédia de leitura do leitor, porque há um escritor francês que escreveu um livro chamado Memórias de Além-túmulo [de François-René de Chateaubriand] anos antes.”

Mas Senna destaca que Machado vai além das referências, porque uma obra escrita por um "defunto autor" nunca havia sido feita antes no ocidente.

A pesquisadora também comenta sobre como Machado de Assis, o grande entusiasta da Academia Brasileira de Letras (ABL), reagira com a chegada de Ailton Krenak, primeiro indígena a ser convidado à entidade.

"Se ele tivesse essa possibilidade dessa vivência póstuma - sem trocadilhas com as Memórias Póstumas - eu acho que ele estaria dando festas e se candidataria a fazer o discurso de recepção a Ailton Krenak.”

Confira a entrevista na íntegra 

O que você achou das análises da influenciadora digital Courtney Novak? E fale mais sobre por que Memórias Póstumas de Brás Cubas é um marco na literatura brasileira e mundial.

Courtney Novak está fazendo mais por Machado de Assis do que 130 anos de crítica. Não porque ela seja uma crítica, uma especialista, mas porque ela fala a língua franca do mundo contemporâneo. 

Tendo um número extraordinário de seguidores, tendo tido vários likes na primeira fala dela sobre [Memórias Póstumas de] Brás Cubas, ela pôs realmente Machado de Assis ao alcance de uma população maior. Porque a nossa língua, embora muito falada (a quinta ou sexta mais falada no mundo), só é falada no Brasil, em Portugal e nas antigas colônias portuguesas de África e Ásia. Não é a língua do mundo.

Eu vejo muita gente reclamando, "ah, precisava de uma americana vir dizer que Brás Cubas é bom, a gente já sabia disso", eu acho que precisava, sim, e que bom que ela falou. 

Quanto ao Brás Cubas, especificamente, ele marca não só uma revolução na obra machadiana, um ponto de ruptura, mas é também um romance que se sustenta em qualquer boa tradução, para qualquer língua de cultura do ocidente, quiçá do oriente.

É um livro extraordinário até a partir do próprio título. Você começa a ler as memórias de um defunto autor ou de um autor de fundo, ele [Machado de Assis] faz até essa diferença no livro, "eu não sou um autor defunto, eu sou um defunto autor."

A pobre da Flora Thomson-DeVeaux teve que fazer uma nota de 30 linhas para poder explicar isso em inglês, porque ela é intraduzível essa expressão, né? 

E o que mais me encanta na obra de Machado de Assis como um todo, e em Memórias Póstumas de Brás Cubas em particular, é o diálogo que ele estabelece com o cânone ocidental, como ele conhecia a literatur. Por exemplo, as Memórias Póstumas de Brás Cubas tem uma afinidade extraordinária com a obra de [Almeida] Garrett, português, com a obra de [Laurence] Sterne, irlandês, e com outros autores que gostam dessa forma digressiva, esse vaivém. 

Mas não é só isso. O próprio título de Memórias Póstumas de Brás Cubas já mobiliza a enciclopédia de leitura do leitor, porque há um escritor francês [François-René de Chateaubriand] que escreveu um livro chamado Memórias de Além-túmulo anos antes.

Esse diálogo já se estabelece a partir do título. Só que, na obra do escritor francês as memórias não são escritas pelo defunto autor.

Ou seja, chama a atenção uma obra que inova no tema, no título, na articulação narrativa, na crítica social, na criação de tipos femininos duradouros que vão ficar na literatura para sempre.

E você acredita que Machado de Assis é um William Shakespeare mal reconhecido?

Eu concordo plenamente, aliás, a Courtney Novak, no segundo vídeo, diz: "esse autor tinha que fazer parte do cânone ocidental, no patamar de Shakespeare". Isso eu concordo plenamente.

Individualmente, Shakespeare é o autor mais citado na ficção machadiana. Curiosamente Machado, que era ateu, a obra que ele mais cita é a Bíblia - o antigo testamento mais do que novo testamento. Mas autor individualmente, o que ele mais cita é Shakespeare.

Machado tem com Shakespeare afinidades extraordinárias. Ambos são autores que se preocupam em perquirir a alma humana, tentar entender os meandros, as contradições, as idas e vindas das emoções das pessoas. 

Em segundo lugar, ambos são autores que têm um cuidado extraordinário com a linguagem em que se expressam. É claro que Shakespeare é um teatrólogo e também um poeta, quando Machado é um ficcionista e também um poeta. 

Os dois têm essa capacidade que tem todo o grande autor: de desestabilizar e de surpreender o leitor. Não surpreender no nível do enredo, isso também é importante, mas surpreender na forma como escreve.

Se você pega, no romance Dom Casmurro, o trecho que ele [Bentinho] vai se despedir de Capitu, antes de ir para o seminário, o momento é descrito da seguinte maneira: "Entre luz e fusco, tudo há de ser breve como esse instante".

Isso é poesia. Se você contar, são redondilhas menores, versos de cinco sílabas no meio da prosa, então ele está surpreendendo o leitor, ele está desestabilizando o leitor.

Em Memórias Póstumas, a desestabilização começa até no título e, logo depois, na dedicatória, "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas".

Você, como leitor, fica completamente assustado. Eu imagino no século 19, como isso deve ter impactado o leitor médio da época. Se é que o leitor médio da época leu.

Como você enxerga a maneira que Machado de Assis retrata as mulheres em suas obras?

Acho que a mulher fascina Machado. Ele começa escrevendo romances chamados de complicação sentimental ingênua para, depois, ir adensando, ir tornando paulatinamente mais densos.

Mas, mesmo lá, nas mulheres dos primeiros romances, em Ressurreição, por exemplo, ou se você pega contos das décadas de 1860 e 1870, ele já descreve personagens femininas de uma complexidade, de uma densidade psicológica extraordinárias.

Eu penso, por exemplo, numa personagem de um conto pouco conhecido, que ele jamais publicou em livro, chamado Dona Jucunda, que é a forma portuguesa de Gioconda, que significa feliz, alegre. 

É uma personagem que é gêmea, filha de um provinciano cearense. A irmã dela fica no Ceará, já a personagem vem para a Corte [Rio de Janeiro] com a madrinha e aqui ela esquece a irmã. Quando a irmã vem para pedir ajuda, ela disfarça a irmã, não a apresenta para o seu marido rico, médico, bem estabelecido. 

A irmã vem para o Rio para ficar mais perto do marido que tinha se alistado na Guerra do Paraguai. O marido vai para a guerra e volta famoso, volta herói da guerra, e vira  general. 

A irmã, então, morre de tuberculose, morre de pobreza. E aí alguém pergunta para a personagem: "Ouve-se agora que o seu cunhado, o general, talvez vire ministro de Estado, o que que a senhora tem a dizer com isso?" "O general? Ah, eu acho que ele tem toda a vocação pra isso".

Quer dizer, é de uma crueldade, de uma perfídia psicossocial extraordinária, de um impacto que raramente a gente consegue ver. A gente consegue ver isso em grandes escritores posteriores contemporâneos, anteriores como Shakespeare, mas ele [Machado de Assis] tem essa capacidade de surpreender. 

Sendo que na minha opinião, claro, a maior [pesonagem feminina], o maior dos enigmas é, evidentemente, Capitu.

E qual a sua opinião?

Eu tenho certeza de que ela não traiu. Como diz a Courtney Novak, "I'm team Capitu". Eu sou do time da Capitu. Eu acho que o narrador é um narrador não confiável. 

É um narrador que conta a história do seu jeito. E ele é tão embusteiro, né? Eu tenho um artigo chamado Estratégias de embuste em Dom Casmurro, em que eu mostro que até nas citações que ele faz ele está pondo um véu na frente do leitor, para que o leitor não enxergue direito. 

Então é mestre, é extraordinário.

Como seria esse cumprimento de Machado de Assis e Ailton Krenak?

Eu acho que Machado não se percebia muito como negro, por conta força das circunstâncias, por força da necessidade, de não se perceber como negro para sobreviver numa sociedade ainda escravocrata extremamente preconceituosa.

Basta que a gente pense na frase célebre de Joaquim Nabuco, "alguém chamou Machado de Assis de mulato", como se isso fosse uma ofensa, "nele eu só vi o grego". 

Ora, a frase de Joaquim Nabuco é pior, em termos de preconceito. Então, um escritor mestiço não pode ser tão grande quanto um, entre todas as aspas, de raça pura, entre todas as aspas.

Por causa disso, eu não sei te responder essa pergunta. Agora, acho que se tivesse sido dada a Machado de Assis a chance de acompanhar a evolução sociológica que está tardiamente, tardissimamente resgatando autores negros, autores indígenas para academia, mulheres, que é uma coisa relativamente recente, eu acho que, aí sim, se ele tivesse essa possibilidade, dessa vivência póstuma - sem trocadilhos com o Memórias Póstumas - eu acho que ele estaria dando festas e se candidataria a fazer o discurso de recepção a Ailton Krenak.


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Edição: Martina Medina