A postura do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), de evitar a votação de mérito do chamado PL do Estupro neste primeiro semestre foi estratégia para tentar evitar danos maiores à própria imagem. É o que avalia o cientista político Leonardo Barreto, que acompanha com atenção os passos de Lira no atual momento do jogo legislativo.
A pauta, traduzida formalmente no projeto de lei (PL) 1904/2024, teve a urgência aprovada na Câmara na última semana em um rito expresso de 24 segundos e sem debate, o que gerou uma onda de protestos dentro e fora do parlamento. Os ecos foram ouvidos não só nas redes sociais, mas também nas ruas, que viraram palco de uma série de protestos pelo país.
"Acho que o projeto, do jeito que está, não prospera. O anúncio de uma comissão para tratar do assunto serve apenas para não admitir a derrota", avalia Barreto, ao mencionar o pronunciamento feito por Lira na última quarta (19). O presidente indicou à imprensa que pretende deixar o mérito do PL para ser avaliado apenas no segundo semestre, por meio de uma comissão legislativa.
A decisão vem após uma onda de 1,14 milhões de menções ao projeto nas plataformas Instagram, Facebook e X [antigo Twitter] somente entre os dias 12, data da aprovação da urgência, e 14 de junho, com mais de 50% das manifestações sendo contrárias ao PL e apenas 15% se mostrando favoráveis. Na média, a rejeição à proposta variou de 51% a 53% nos três dias, com o segmento dos apoiadores representando apenas uma fatia entre 14% e 17%. Os demais estiveram no grupo das menções tidas como "neutras". Os dados foram medidos pela consultoria Quaest.
Barreto vê a reação da sociedade como algo que ajudou a definir os rumos da proposta, mas enxerga ainda outros elementos que teriam concorrido para isso. Ele cita, por exemplo, a manifestação do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), de que a proposta seria uma "irracionalidade". Pacheco disse ainda que "jamais" colocaria o PL em análise direto no plenário. Para o cientista político, a postura do senador mostrou que houve um "desgaste por nada" na Câmara, já que o texto não teria chances de aprovação entre os senadores.
"Houve ainda a reação negativa dos parlamentares, que entraram em uma bola dividida às vésperas das eleições municipais; o atingimento da meta principal [de Lira], que era sinalizar abertura [política] para a bancada evangélica; o atingimento das metas secundárias, que eram constranger o PT e mandar um aviso para o STF de que, caso ele descriminalize [o aborto], a resposta [do Legislativo] pode vir pesada. Mas, de todo modo, Lira errou e avaliou mal a reação da sociedade e expôs deputados e líderes a um desgaste", acrescenta Barreto.
Do ponto de vista político, o PL 1904/2024 traduz o espírito da bancada fundamentalista da Casa, que rotineiramente investe na defesa de temas que atiçam os debates ideológicos e eletrizam sua base de apoio na internet. Com o pleito municipal de 2024 se aproximando, a ideia era também atrair dividendos eleitorais. Mas a empreitada acabou provocando uma rejeição não esperada pelo grupo. Uma enquete virtual lançada pela Câmara para colher a opinião dos internautas sobre o PL ajuda a dar o termômetro do cenário que se desenhou nas últimas semanas: 970.064 pessoas, o equivalente a 88% do total de participantes, já disseram "discordar totalmente" do texto.
O segundo grupo é o dos que dizem "concordar totalmente", que aglutina 123.497 apoios. Na sequência, aparecem os segmentos que indicam "discordar na maior parte" (5 mil votos), "concordar na maior parte" (4.070) e "estou indeciso" (466), mas eles ficaram abaixo de 1%. Para o analista político Neuriberg Dias, do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), apesar disso, o projeto pode não morrer totalmente. O especialista projeta uma mudança no conteúdo do texto adiante para que ele se adapte às condições do jogo político. Ele vislumbra que a proposta tende a seguir adiante, ajudando a ala reacionária a utilizar o tema como uma de suas bandeiras para fazer agitação eleitoral.
"Fica evidente que o recuo foi um recuo tático para que esse tema de fato avance na sociedade [com o tempo] e também tenha repercussão nos outros Poderes, no Judiciário e no Executivo. O recuo se dá de fato porque houve um exagero na forma, no conteúdo [do texto], mas tem uma agenda aí que segue viva em função dos interesses do Lira. É um recuo importante, mas não definitivo", analisa, ao afirmar ainda que um eventual texto alternativo por vir a ser de fato votado na Câmara.
"Mas isso por si só não garante que ele venha a ser aprovado e que, principalmente, quando for para a casa revisora, que é o Senado, eles também aprovem. Tem uma tramitação mais longa [pela frente]. Então, o presidente [Lira] tem um compromisso no sentido de manter o debate desse tema vivo até o processo eleitoral. Veja que o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e a bancada evangélica se pronunciaram esta semana e disseram que o tema do aborto estaria entre os principais pontos definidos pela bancada [para sua atuação política]. Para eles, apostar nisso é também uma forma de tentar minimizar [midiaticamente] a agenda positiva do governo", sintetiza o analista do Diap.
Atuação civil
A forte reação popular ao PL 1904 e o recuo de Lira vieram após uma sequência de anos nos quais a Câmara passou a limitar a atuação civil junto à Casa, especialmente junto às comissões legislativas, que tradicionalmente são palco de audiências públicas e amplos debates com outras instituições e representantes da sociedade. O problema teve início no contexto pré-impeachment, mas ganhou corpo principalmente durante a pandemia, quando foi aprovado um rito mais enxuto de tramitação para todos os projetos em virtude da massificação do trabalho remoto.
A nova dinâmica sufocou a atuação dos colegiados porque fez com que as matérias passassem a ser discutidas diretamente no plenário. A dinâmica perdurou por alguns anos, até que recentemente as comissões voltaram a operar e a ter incidência sobre os projetos de lei. Apesar disso, o modus operandi de Lira na presidência tem resultado em diferentes problemas, desde a opção por tramitações de urgência para uma série de matérias até os impeditivos colocados pela Polícia Legislativa à circulação de civis e seus protestos durante audiências públicas na Casa.
"É inegável que isso acendeu uma reação popular como há muito tempo não se via. Deu gás também para progressistas. Essa via expressa que o Lira criou para votações, sem comissões ou discussões, está incomodando muitos líderes e deputados. Esse episódio deporá contra ele em conversas futuras, porque expôs muitos deputados em um momento delicado do jogo político", projeta Leonardo Barreto, ao citar os interesses eleitorais do presidente da Câmara.
Edição: Thalita Pires