Coluna

O fundamentalismo político de Jair Bolsonaro

O ex-presidente participa da Marcha para Jesus e pela Família em Brasília: Bolsonaro tenta ganhar capital político ao usar Deus para legitimar sua busca pelo poder  - Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Nesse conceito, Deus é protagonista e deve orientar as ações políticas do povo por meio de um líder

Por Fabricio Amorim e Vera Chaia

Com a aproximação das eleições de 2024, muito se discute sobre qual influência Jair Bolsonaro pode ter no pleito municipal. Em outra camada de análise, leva-se em consideração que o ex-presidente encontra-se inelegível e, por isso, desdobram-se reflexões acerca de um bolsonarismo sem Bolsonaro. Para se ter uma visão mais ampla em ambas situações, é preciso não deixar de lado o fundamentalismo político de Bolsonaro. Isso porque o sentimento antissistema permanece ativo na percepção bolsonarista e ainda é administrado pela verdade revelada de Bolsonaro em nome de Deus, da família e da pátria.  

A capacidade de mobilização de Bolsonaro e a potência da desinformação inflada pelo bolsonarismo devem influenciar problemas locais nas eleições em diversas cidades do Brasil. Mesmo fora do jogo eleitoral até 2030, Bolsonaro vai orientar o direcionamento do bolsonarismo através da verdade revelada contra o mal presente na figura dos inimigos. O bolsonarismo não é apenas um fenômeno eleitoral, mas também um movimento que encontra identificação com a liderança de Bolsonaro, através da dominação realizada pelo fundamentalismo político.  

Quando se fala na palavra "fundamentalismo" logo se pensa na radicalidade de alguma vertente religiosa, seja qual for, porém o conceito carrega uma riqueza que permite elaboração adicional ao termo religioso. Nas ciências sociais, é comum a importação de conceitos de outras áreas do pensamento. Refletimos a transposição da literatura sobre fundamentalismos pensando especificamente a política. Temos assim, um tipo de fundamentalismo político que situa-se nesse encontro da teologia política com a ciência política.

No fundamentalismo político, Deus é protagonista: ele deve orientar as ações políticas do povo por meio de uma liderança política que ofereça o caminho correto e do bem, contra tudo o que é errado, falso e, por consequência, imoral. Quer dizer que a liderança no fundamentalismo político foi colocada no posto por Deus e esse cargo só pode ser retirado por um ato divino ou pelo povo que foi construído pelas características populistas desta mesma liderança. O fundamentalismo político baseia-se em um mundo idealizado que cria um fim a ser alcançado através da verdade trazida pela liderança messiânica que segue apenas as missões oferecidas por Deus.

Na literatura sobre fundamentalismos na teologia, é possível verificar que as diversas vertentes discordam em razão do pilar religioso que professam, mas tem em comum o desejo irrefreável de ter a posse exclusiva da verdade. Não é uma verdade qualquer. É a verdade revelada por Deus e repassada pela liderança, de maneira que a verdade é revelada antes mesmo de comprovação de sua veracidade. 

O manuseio da verdade dita divina pela liderança prega obediência e fidelidade dos seguidores a seu próprio favor e também em benefício de seu grupo. As pessoas que aderem ao fundamentalismo político são convictos da posse do conhecimento absoluto da verdade da qual se tornaram guardiões. Em suma, o fundamentalismo político define-se pela percepção de que há uma verdade revelada que anula a possibilidade de debate.

Quem possui a verdade revelada no fundamentalismo político tem a percepção de conhecimento categórico do que é certo ou errado; bem ou mal; sagrado ou profano; excluindo qualquer pessoa que não possua a mesma visão das formas de moral e de tradição. Esses aspectos dos fundamentalismos encontram terreno fértil no mundo social pela política no contexto da esfera da moralidade, em que assume uma forma de nós contra eles. Assim, cada fundamentalismo constitui uma lei em si mesmo e possui uma dinâmica própria. 

O fundamentalismo político está inscrito em uma teologia política que preserva e impõe figuras de pensamento herdados do monoteísmo e transformados no tempo até a modernidade. A teologia política dialoga diretamente com a dinâmica populista, dado que o populismo pode assumir a forma de teologia política disfarçada. Quando a dinâmica populista chega à noção de um discurso ou lugar transcendente, em busca de um novo ordenamento social nestas bases, estamos situados no domínio da teologia política. Até conceitos não teológicos como território e população passam a ser teologizados a exemplo de quem usa expressões como "pátria sagrada" ou "povo".

Um político brasileiro que se encaixa na definição do fundamentalismo político exposto até aqui é Jair Bolsonaro. Em uma análise do governo de Jair Bolsonaro, é possível encontrar características do fundamentalismo político como: a busca do monopólio da verdade; as referências religiosas do líder ao seguidor; na militância agressiva, violenta; nas narrativas de perseguição e de deterioração dos valores; na dinâmica própria na luta do bem contra o mal projetadas pelo medo e pela ansiedade. O fundamentalismo político incentiva e governa o medo, a ansiedade e a esperança. 

No contexto específico brasileiro, Jair Bolsonaro estimula também o ódio direcionado aos inimigos, contra o Partido dos Trabalhadores (PT), as esquerdas, as minorias. Bolsonaro obteve o comando do direcionamento do antipetismo, abrindo espaço para que o afeto de esperança ultrapassasse o medo na fluidez do ódio contra o partido e contra Lula. A luta empreendida por Bolsonaro e pelo bolsonarismo tem uma dinâmica própria e enxerga não só o PT como o mal a ser combatido, já que o conflito se amplia a qualquer oposição a Bolsonaro, inclusive de ex-aliados do campo conservador e da extrema direita. Para o bolsonarismo, se antepor ou criticar qualquer pauta importante do governo ou criticar Bolsonaro é sinal evidente de que a pessoa desertou para se tornar comunista, passando de convertido a desertor do bolsonarismo.

Conservadores e liberais como Kim Kataguiri, Arthur do Val, Alexandre Frota, Joice Hasselmann, Rachel Sheherazade, Lobão, José Padilha, são alguns nomes taxados de comunistas ou caracterizados como linha auxiliar das esquerdas apenas por desavenças. A cada desavença entre aliados durante o governo Bolsonaro foi comum uma provocação irônica de que "a lista de comunistas do Brasil foi atualizada". Quer dizer que se você não está ao lado do bem, automaticamente é classificado como o mal a ser combatido.

As chamadas verdades ocultas que emergem pelo fundamentalismo político encontram respaldo em teorias da conspiração, a exemplo da acusação de que o Brasil vai "virar uma Venezuela" com as esquerdas implementando um regime comunista em um plano feito nos porões do Foro de São Paulo para a tomada do poder na América Latina. Olavo de Carvalho foi um dos grandes propagadores de teorias da conspiração como essa que se tornaram comuns no imaginário bolsonarista.
 
O fundamentalismo político de Jair Bolsonaro nos possibilita compreender como as citações bíblicas e os slogans com menções a Deus funcionam para reivindicar o monopólio da verdade. Esta chave teórica demonstra como Jair Bolsonaro se vale da confiança depositada nele para garantir legitimidade em torno das fake news que propaga todas as vezes em que usa João 8:32 "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará" nos seus discursos ou mensagens. 

Jair Bolsonaro aciona formas discursivas que se inscrevem no poder teológico do fundamentalismo político como o bordão "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos", que introduz uma autoridade moral e divina como única instância legítima que iguala a todos a obediência a "verdade única da nação". Seu discurso de sequestro da verdade se potencializa com o uso da passagem bíblica João 8:32, mencionada acima, que foi largamente utilizada por ele durante a campanha eleitoral à Presidência da República em 2018 e após eleito, principalmente em seus posts na rede social Twitter (atual X) e na rede social Facebook. 

O uso do versículo por Bolsonaro, portanto, não se deu por estreitamento dele com a bíblia ou com alguma religião, pois se trata de uma estratégia. A escolha de João 8:32 não ocorre por acaso. Já em 2016, Bolsonaro usava o versículo a fim de se referir a qualquer tema que o contrariava. Durante o governo, diversos posts de Bolsonaro acompanhados de João 8:32 tiveram intenção de aprofundar o negacionismo e desmentir verdades factuais, como negar eventos de destruição da floresta Amazônica ou trazer outra versão de matérias publicadas na imprensa, construindo outra narrativa política agradável à sua ação política e aos convertidos do fundamentalismo político.

O versículo bíblico cumpre uma função comunicativa simplificadora: reduz a distância com cristãos praticantes mas também convida não praticantes a conhecerem a verdade que liberta. O fundamentalismo político de Jair Bolsonaro propõe uma conversão antiestablishment que aceite a verdade mediada. Nesta relação de confiança, Bolsonaro torna-se a representação do grupo que ele constrói como povo e detentor do monopólio da verdade coletiva. A conversão realizada permite a internalização da verdade da liderança de Bolsonaro, afastando qualquer ruído contrário. Isso significa que a relação do bolsonarista com Bolsonaro se desenvolve em um ato de fé, independentemente da crença religiosa.

No fundamentalismo político de Jair Bolsonaro, João 8:32 traz a verdade revelada que só depende da conversão do cidadão para ser legitimada. Nesse sentido, buscar a desqualificação com discurso de checagem da verdade factual aos convertidos é inócuo. Na era digital, Bolsonaro se adapta perfeitamente às câmaras de eco constituídas com o efeito bolha – que geram com mais facilidade a confirmação das crenças dentro do grupo convertido. 

Diversas declarações de aliados bolsonaristas e de Jair Bolsonaro apresentam seu governo como escolhido por um poder divino, muito em conta por Bolsonaro atribuir a Deus a sobrevivência ao atentado a faca que sofreu em cidade de Juiz de Fora durante a campanha presidencial de 2018. "Escapei pela mão de Deus", disse o candidato depois da facada. O poder teológico acionado por Bolsonaro reconhece o milagre e o transforma em ativo político que orienta em direção a verdade oculta pelo establishment em relação à facada, o que estabelece a construção de uma fronteira entre o establishment que desejava sua morte e a salvação redentora de Deus que salvou seu corpo, tornando-o transcendente para servir ao povo.  

Na relação turbulenta com o Supremo Tribunal Federal (STF) e com o establishment de um modo geral, Bolsonaro acionou o fundamentalismo político em diversos momentos a fim de abalar o sistema de freios e contrapesos e se posicionou como enviado de um poder divino durante todo seu mandato, principalmente nos momentos de crise política. "Já dou recado: só Deus me tira daquela cadeira". Durante a Marcha para Jesus na cidade de Curitiba, em maio de 2022, Bolsonaro reforçou: "Só Deus me tira daquela cadeira". Dessa forma, fica claro que Bolsonaro tenta ganhar capital político ao usar Deus para legitimar sua busca pelo poder. 

A condução da liderança que diz deter a verdade revelada e oculta faz a significação da democracia aos seus próprios termos autoritários e pode levar relações de poder que conduzem à ação política para um esgarçamento do tecido social que estrangula a política, mas, mesmo diante de forças impetuosas, a política não se destrói, apenas se sucede por acontecimentos, invenções, retornos, progressos, movimentos em direções variadas, a qual o autoritarismo é uma delas. Ainda assim, quem defende a democracia precisa compreender o aprofundamento do fundamentalismo político no mundo social para que não haja retrocessos democráticos. 

*Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Martina Medina