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Por que 21 de junho deveria ser feriado nacional e o que isso tem a ver com o combate ao racismo?

Aniversário de Luiz Gama é defendido como data de celebração e reflexão por biógrafo do advogado abolicionista

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Busto de Luiz Gama, no Largo do Arouche, em São Paulo: advogado libertou mais de 700 pessoas nos tribunais da cidade
Busto de Luiz Gama, no Largo do Arouche, em São Paulo: advogado libertou mais de 700 pessoas nos tribunais da cidade - Divulgação
Já que a abolição está incompleta, uma das maneiras de fazer ela acontecer é celebrar o 21 de junho

Na longa lista de nomes fundamentais para a abolição da escravidão no Brasil, figura o de Luiz Gama, advogado, jornalista e poeta que garantiu a liberdade de ao menos 750 pessoas por via judicial.

Nascido em Salvador, em 21 de junho de 1830, o intelectual negro chegou a ser vendido como escravo, um ato ilegal pelas leis vigentes no período, pelo próprio pai, um fidalgo português, e conquistou a liberdade por conta própria aos 17 anos. 

"21 de junho é uma data a celebrar, é uma data para aplaudir de pé, porque, no Brasil, nasceu Luiz Gonzaga Pinto da Gama, uma das principais lideranças abolicionistas do mundo moderno", defende o pesquisador Bruno Rodrigues de Lima, em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (21). 

Recentemente, Lima lançou o livro Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidão, publicado pela editora Contracorrente. A obra de mais de 600 páginas é uma adaptação e atualização da tese de doutorado do historiador. 

O pesquisador defendeu seu trabalho na Faculdade de Direito da Universidade de Frankfurt, na Alemanha, que lhe concedeu o prêmio Walter Kolb de melhor tese de doutorado. Lima também conquistou a medalha Otto Hahn de destaque científico da Sociedade Max Planck. Antes disso, ele foi responsável por reunir e publicar todos os escritos feitos por Luiz Gama, em uma série de 11 livros publicados pela Editora Hedra.

Para o biógrafo de Luiz Gama, o nascimento do advogado abolicionista deveria ser considerado uma "data irmã" do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra.

"É fundamental a gente revisitar essa data para pensar os caminhos do abolicionismo hoje. Uma vez que a abolição está incompleta, uma vez que a abolição está por fazer, uma das maneiras de fazer ela acontecer é aplaudir, celebrar, comemorar o 21 de junho", comenta Lima.

Gama nasceu em Salvador, mas viveu a maior parte da vida em São Paulo, onde estudou Direito de forma autodidata, superando a discriminação que sofria de estudantes da tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco da Universidade de São Paulo (USP), lembra Lima.

"E isso também é parte da explicação do apagamento do Gama. Porque a elite de 300 anos em São Paulo jamais admitiria um baiano ser um advogado muito bem remunerado, mais conhecido, um abolicionista, jornalista, poeta de primeira grandeza", diz o pesquisador.

"Ele libertou mais de 700 pessoas nos tribunais de São Paulo. Ou seja, ele é alguém que enfrentou os juízes da escravidão, o judiciário local de São Paulo e construiu a obra abolicionista no lugar mais improvável de fazer isso que era o judiciário paulista."

Confira a entrevista na íntegra

Por que você defende que 21 de junho deveria ser feriado nacional?

21 de junho é uma data de reflexão, uma data de consciência negra, assim como 20 de novembro. 20 de novembro não está isolado no calendário, tem tantas outras datas irmãs, como essa do 21 de junho.

É uma data de luta, uma data de reflexão. Oxalá, no futuro, o Brasil pare para pensar e para reverenciar esse dia inscrevendo essa data no seu calendário de memória nacional.

21 de junho é uma data a celebrar, para aplaudir de pé, porque, no Brasil, nasceu Luiz Gonzaga Pinto da Gama, uma das principais lideranças abolicionistas do mundo moderno.

É fundamental a gente revisitar essa data para pensar os caminhos do abolicionismo hoje. Uma vez que a abolição está incompleta, uma vez que a abolição está por fazer, uma das maneiras de fazer ela acontecer é aplaudir, celebrar, comemorar o 21 de junho. 

A maioria dos registros da vida de Luiz Gama foram feitos por ele próprio, certo?

Sim, o Luiz Gama conhecia o racismo brasileiro como ninguém. Luiz Gama conhecia o estado nacional como ninguém. E ele escreve uma autobiografia que, a princípio, ele não publica em canto nenhum, aliás, ele nunca publicou a autobiografia dele. 

Ele dirige uma carta particular a um amigo chamado Lúcio de Mendonça, que à época era juiz de direito em uma comarca do interior de Minas Gerais.

Futuramente, o Lúcio de Mendonça fundaria a Academia Brasileira de Letras e também seria ministro do Supremo Tribunal Federal, já com a República. 

O Gama escreve ao amigo Mendonça essa carta. Lúcio de Mendonça escreve um perfil biográfico do Gama a partir dessa carta, mas a carta nunca apareceu enquanto o Gama estava vivo, nem quando o filho do Gama, Benedito Graco Pinto, estava vivo. Benedito morreu em 1910 e essa carta só apareceu na década de 1920.

Ou seja, o Gama escreveu em 1880 e essa carta só aparece quase 50 anos depois. Quase 50 anos depois do primeiro ex-escravizado escrever uma autobiografia é que o Brasil leria esta autobiografia.

E ele faz isso muito de caso pensado, porque se já duvidavam das histórias que Luiz Gama contava eram reais, que dirá se ele publicasse em primeira pessoa ali, num jornal da época, sua autobiografia.

Se ele lançasse, lá atrás, o Brasil, a sua elite racista em particular, lideraria um movimento para descredibilizar a palavra do Gama. E é por isso que ele escreve para o futuro.

Você já havia publicado uma série de 11 livros com todos os registros de Luiz Gama. Por que a decisão de publicar esse novo trabalho, Luiz Gama contra o Império?

Eu parto do princípio que todos os escritos do Luiz Gama têm valor histórico e interesse público. Ele escreveu muitos textos de intervenção pública na imprensa da época.

Foi um dos escritores mais lidos de seu tempo, publicava na primeira página de jornais, e ele mesmo fundou alguns. Foi editor-chefe de diferentes jornais. 

Eu tenho organizado as obras completas do Gama após muitos anos de pesquisa. Desde a adolescência eu vou em arquivos, procurar registros e evidências da existência e da luta dele. À medida que eu fui encontrando e reunindo, o que parecia ser só um volume virou dois, depois viraram três, quatro, cinco, até completar um time de futebol, em onze volumes, com mais de mil textos escritos pelo Luiz Gama. 

Agora, a minha tese de doutorado, como você bem apresentou, defendida aqui na Alemanha, na Faculdade de Direito da Universidade de Frankfurt, é uma espécie de guia de leitura para o Direito da época e para a obra jurídica do Luiz Gama, que, como eu disse, é uma obra que não é só política, tem muitos gêneros literários e muitos campos de ação em que ele se debruça.

Eu considero a obra completa do Luiz Gama um monumento da literatura no mundo. 

Ele e Machado de Assis nasceram no mesmo dia, com apenas nove anos de diferença. Há registros que os dois se encontraram em algum momento?

Olha, com certeza um sabia da existência do outro. Agora, uma prova concreta de que eles se encontraram não tem até o momento. Pode ser que apareça.

Muito provavelmente um lia o outro. O Luiz Gama era nove anos mais velho do que o Machado de Assis, o que, naquele tempo, em que a expectativa de vida era menor e o tempo social era um pouco mais achatado do que o nosso, nove anos significava muita coisa. 

Então, o Luiz Gama era quase que uma ou duas gerações à frente do Machado de Assis. O Machado de Assis, portanto, vem como um jovem quando o Luiz Gama já é alguém de uma estatura intelectual muito forte em São Paulo.

Logo, quando Machado de Assis se atira à Tribuna da Imprensa, Luiz Gama já é um veterano. 

Gama nasceu na Bahia, mas viveu a maior parte do tempo em São Paulo. Esses aspectos regionais atravessaram a vida dele?

Isso não é uma questão periférica, é importante para entender as ações e lutas dele. O Luiz Gama era baiano, sim. Era reconhecido pelos inimigos como um baiano e era reconhecido pelos amigos como um baiano, então, era baiano de todos os lados.

E isso também é parte da explicação do apagamento do Gama. Porque a elite de 300 anos em São Paulo jamais admitiria um baiano ser um advogado muito bem remunerado, mais conhecido, um abolicionista, jornalista, poeta de primeira grandeza. 

A elite paulistana e paulista sempre conviveu muito mal com o fato da baianidade do Gama ser algo que não só ele não escondia, como, virtuosamente, batia no peito dizendo "eu sou baiano, sou filho de Luiza Mahin". 

Portanto, a Bahia é muito presente no Luiz Gama, que também saberia criticar a Bahia como poucos. Ele é que vai dizer "a Bahia de todos os servos", numa espécie de adaptação da Bahia de Todos os Santos.

Na verdade, ele vive 10 anos na Bahia e 42 em São Paulo, ou seja, ele conhecia cada rua, cada viela, beco, ladeira de São Paulo. Era conhecido por todos, era bem-quisto, querido pela grande maioria da população e temido por uma minoria escravista empedernida.

Conhecendo São Paulo é que ele escreve o que é o Império do Brasil. Ele entende o lugar da cidade no Império, o lugar cultural e intelectual, uma vez que São Paulo tinha a única faculdade do Sul do Império. 

Era o centro formador de mentalidades escravistas no Direito e ele vai se insurgir contra isso, vai se levantar contra o Império do Brasil. Isso ele vai fazer conhecendo as entranhas da elite paulista, essa elite que ganhou mais e mais poder no século 20.

Ele libertou mais de 700 pessoas nos tribunais de São Paulo. Ou seja, é alguém que enfrentou os juízes da escravidão, o judiciário local de São Paulo e construiu a obra abolicionista no lugar mais improvável de fazer isso, que era o judiciário paulista. 


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Edição: Martina Medina