POR DIREITOS

'Ancestralizando o futuro': quilombolas cobram titulação de terras e celebram o Aquilombar no DF

O Aquilombar é um movimento que congrega a luta por direitos com a preservação do estilo de vida dos quilombolas no país

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O ‘Aquilombar’ teve como um dos objetivos explorar as conexões entre o passado, presente e futuro, na construção de um amanhã mais inclusivo e sustentável - Foto: Rafaela Ferreira
Nós somos a fronteira que impede o agronegócio de acabar com o campo brasileiro

A luta por direitos junto com a celebração da diversidade dos povos quilombolas se transformou em um único verbo: o Aquilombar. "Território titulado, liberdade conquistada. Nós estamos em busca da nossa liberdade", disse Maria Rosalina, coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

O sentimento é o mesmo de Ana Lúcia, estudante de Direito na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e quilombola da comunidade Campinhos de Virgem da Lapa. 

"Aquilombar para o futuro é a gente pensar como vamos reivindicar as nossas faltas através da luta e da relação com nossos ancestrais, mas também pensando no presente; e como isso vai funcionar daqui para frente. Então, aquilombar é um estilo que a gente traz também, porque nós, enquanto povos quilombolas, temos toda uma cultura, uma tradição".

O Brasil tem mais de 1,3 milhão de quilombolas, porém, quase 90% estão sem a documentação, segundo Censo 2022.

O encontro, que ocorreu em maio, fez parte da programação da II Jornada de Lutas dos Quilombolas no Brasil, organizada pela Conaq. O Aquilombar teve como um dos objetivos explorar as conexões entre o passado, presente e futuro, destacando a importância das raízes culturais na construção de um amanhã mais inclusivo e sustentável.

Na mesa de abertura do evento, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, destacou a importância da legalização de todos os quilombos do país, uma vez que é um direito do cidadão afrobrasileiro. "Precisamos mudar essa realidade. Chega desse tipo de distrato com os direitos dos povos quilombolas", afirmou. "O Brasil tem, em sua raiz, a cultura, o sangue negro e indígena."

Com a primeira edição em 2022, o Aquilombar é o maior evento quilombola do país. Para o também coordenador da Conaq Denildo Rodrigues, mais conhecido como Biko, o Aquilombar e a Conaq são uma "continuidade do nosso povo preto e quilombola que resistiu ao processo de escravidão". Biko também afirmou que a defesa do território é o que garante o primeiro passo à liberdade e, com isso, se faz necessário a titulação fundiária.

"Nós somos a fronteira que impede o agronegócio de acabar com o campo brasileiro. E, mesmo assim, somos considerados os invisíveis dos biomas, mesmo nós estando em todos, no Cerrado, na Caatinga, na Amazônia, na Mata Atlântica. As comunidades quilombolas são as fronteiras da destruição dessa biodiversidade", lembrou o coordenador.


Aquilombar 2024 reuniu representantes e ministros do governo Lula, além de lideranças das comunidades quilombolas de todos os estados e DF / Foto: Rafaela Ferreira

Segundo a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco (PT), só é possível acordar e dar continuidades às missões do ministério, porque ela sabe "o que é estar do outro lado". A ministra ainda lembrou dos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que desde o começo da gestão, havia estrangulado o processo de titulação de terras quilombolas.

"Medo nós tem, mas não usa", disse Anielle citando Margarida Alves, símbolo da luta sindical no Brasil. "Viemos com medo mesmo, mas com a certeza de uma missão: todos os quilombolas titulados. Eu não acredito em uma missão solitária. Nós somos o começo, o meio e o começo. Nossa luta não tem fim. A ancestralidade resiste", afirmou.

Aquilombar também destaca a importância das raízes culturais na construção de um amanhã mais inclusivo e sustentável, a partir, sobretudo, do cuidado ancestral na preservação da natureza. Segundo Edna Paixão, membro do Coletivo de Mulheres da Conaq e quilombola da comunidade Boa Vista em Afrânio, Pernambuco, a relação é de sobrevivência.  

"A gente não destrói o meio ambiente para a produção, a gente só desmata o suficiente para sobre a existência da própria comunidade, a gente faz com que a plantação consorciada com outras plantas é produzam mais e com isso precisa desmatar menos a nossa relação com com a água. A gente não polui os rios e nem usa agrotóxicos", afirma. 

Para Deusamir, mais conhecida como Fiota Kalunga, a relação é ainda mais especial com o bioma cerrado. A produtora rural conta como usa os frutos típicos da região na produção e geração de renda para ela e sua família. 

"Eu trabalho com baru, óleo de coco, mamona, sambutiqui, de Buriti. Paçoca de baru, farinha de baru, paçoca de carne, paçoca de da castanha do baru. A relação com o Cerrado vem da roça, onde moramos. E nós convivemos apanhando as frutas na floresta", ressalta. 

Incra

Durante gestão de Bolsonaro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) teve suas atividades paralisadas por falta de recursos. A entidade responsável por executar, principalmente, a reforma agrária e realizar o ordenamento fundiário nacional também foi cobrada pelas lideranças e representações quilombolas.

De acordo com João Jorge Rodrigues, presidente da Fundação Cultural Palmares, é necessário que o Incra acelere as certificações das comunidades quilombolas. Rodrigues ainda lembrou das vidas de lideranças quilombolas perdidas, como Bispo e Mãe Bernadete, que morreram na luta pelo reconhecimento das comunidades.

Ser quilombola também é lutar pelo futuro. Uma das principais propostas das comunidades quilombolas é a titulação por terra. Até dias atuais, apenas 147 territórios foram titulados. 

Dos mais de 1,3 milhão quilombolas registrados no país, quase 90% ainda vivem em comunidades que não foram tituladas, como mostrou dados levantados pelo primeiro censo quilombola da história realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, o IBGE. 

"A gente quer a titulação das nossas terras. Para nós, tem sido um processo muito doloroso. Nesse país, há mais de seis anos não se titular um território. Isso é muito dolorido para o nosso povo, porque a gente tem visto as consequências dessa demora,pessoas perderem sua vida por conta da especulação imobiliária, por conta da grilagem de terra. Então,  a titulação é fundamental para a existência dos quilombos, desabafa Edna Paixão.  

Ato político

Do Eixo Cultural Ibero-americano à Esplanada dos Ministérios, o Aquilombar marchou em prol de direitos dos povos quilombolas. Foram três quilômetros percorridos com manifestantes entoando canções tradicionais da comunidade e que reforçavam a força da população negra.

Na ocasião, o ator e ativista Ícaro Silva também esteve presente. Para ele, existe ainda um jogo de latifundiários e do agronegócio que não permite com que a população quilombola acesse os direitos plenos. "Continuo dizendo hoje: nenhum quilombo a menos." 


Ator e ativista, Ícaro Silva, reforça agronegócio como entrave para a conquista de direitos dos povos quilombolas / Foto: Rafaela Ferreira

Edição: Márcia Silva