Entrevista

Com PL do Estupro, Brasil pode seguir exemplo de El Salvador: prisão de mulheres e abortos clandestinos

Em entrevista ao BdF, presidenta de Instituto em defesa da Mulher de El Salvador fala sobre consquências da legislação

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Manifestantes foram às ruas de Belo Horizonte (MG) no último dia 14 contra o PL do Estupro - Luiz Rocha / Mídia Ninja

Caso seja aprovado como está, o PL do Estupro, como ficou conhecido o Projeto de Lei 1.904/2024 que equipara o aborto legal em idade gestacional acima de 22 semanas, inclusive em casos de estupro, ao crime de homicídio simples, pode levar o Brasil a uma realidade sombria vivida hoje pelas mulheres de El Salvador. Desde 1998 a lei mais rigorosa das Américas em relação ao tema criminaliza as mulheres que recorrem ao aborto, mesmo em casos de estupro.

Em El Salvador, o aborto é proibido com penas de prisão de dois a oito anos e os tribunais salvadorenhos costumam classificar o aborto como homicídio qualificado, aumentando a pena para entre 30 e 50 anos de prisão. Sob o regime do reacionário Nayib Bukele, o país centro-americano tem um dos maiores índices de encarceramento do mundo

Entre 2014 e 2020, o coletivo Citizens' Group for the Decriminalisation of Abortion registrou 190 mulheres processadas no país. Dessas, 46 foram condenadas por homicídio agravado e cerca de 30 por aborto. Em um país com quase sete milhões de habitantes, estima-se que 25 mil mulheres engravidam após um estupro a cada ano e milhares de abortos clandestinos são realizados.

Os números foram informados ao Brasil de Fato pela presidenta do Instituto de Investigação, Capacitação e Desenvolvimento da Mulher (IMU) de El Salvador, Mayarí Alvarado.

"A lei salvadorenha criminaliza todas as formas de aborto, inclusive o aborto terapêutico, e pune tanto as mulheres quanto os médicos. Se forem considerados culpados, as sentenças variam de dois a oito anos. No entanto, em muitos casos, o crime é alterado para homicídio agravado devido ao relacionamento da vítima com o autor do crime, e as mulheres podem ser condenadas a até 30 anos de prisão", explica Alvarado.

Antes da reforma do Código Penal realizada em El Salvador em 1998, o aborto era permitido por três motivos: quando a gravidez coloca em risco a vida da mulher, por malformações graves e previsíveis no feto e quando a gravidez era resultado de estupro. A legislação vigente hoje no Brasil permite que o aborto seja realizado também em três situações: estupro, risco de morte à mulher e anencefalia do feto.

Alvarado aponta que após a aprovação da reforma em El Salvador, uma das principais consequências é que as mulheres passaram a ser consideradas criminosas mesmo em casos de aborto espontâneo.

"Um dos pontos centrais dessa situação está relacionado à criminalização imediata das mulheres por abortos espontâneos, ainda mais nos casos em que as mulheres nem sequer sabem que estão grávidas e nunca fizeram um exame de saúde adequado no sistema público de saúde."

A ultima tentativa de mobilização popular para barrar a lei de El Salvador aconteceu em 2021, mas foi barrada pelo Congresso do país. Hoje, sob o governo de extrema direita de Nayib Bukele, cujo partido Nuevas Ideas tem a maioria no Parlamento, além de ter conquistado hegemonia nas últimas eleições municipais, a situação ficou ainda mais difícil, avalia Alvarado.

"Em termos gerais, o fundamentalismo e a agenda antidireitos estão em ascensão em nosso país e na região, avançando de forma constante e perigosa, demonizando a educação sexual abrangente, os direitos sexuais e reprodutivos, a diversidade sexual e a abordagem de gênero entre outros. Continuamos a denunciar e a lutar."

Em 2023, a legislação do país foi alvo de julgamento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso conhecido como Beatriz x El Salvador. Diagnosticada em 2013 com uma doença autoimune, o lúpus eritematoso sistêmico, Beatriz (nome fictício), teve negado o aborto apesar do risco para sua vida e pelo fato de o feto apresentar anencefalia, a ausência de desenvolvimento cerebral durante a gravidez. Em janeiro de 2022, a Corte Interamericana começou a discutir o caso de Beatriz, que morreu em 2017 em um acidente de trânsito.

Confira a entrevista completa

Brasil de Fato: Quais são as principais consequências da atual legislação antiaborto para as mulheres salvadorenhas?

Mayarí Alvarado: O aborto tem sido absolutamente criminalizado em El Salvador desde a reforma do Código Penal em 1998. Antes da reforma, desde 1974, o aborto era permitido por três motivos: quando a vida da mulher estava em risco, por malformações graves e previsíveis no feto e quando a gravidez era resultado de estupro. Em outubro de 2021, a Assembleia Legislativa se recusou a reformar o Código Penal para isentar de responsabilidade criminal aqueles que consentirem ou realizarem um aborto, fechando assim as portas para permitir o aborto mesmo quando a vida da mulher estiver em risco.

Acrescentamos que o presidente Nayib Bukele, no primeiro período de seu mandato presidencial (2019-2024), descartou que, em um projeto de reforma constitucional que apresentará nos próximos meses, esteja pensando em incluir questões como aborto, casamento igualitário e eutanásia.

As principais consequências são:

1. Um sistema jurídico que criminaliza as mulheres que enfrentam uma gravidez indesejada. Mesmo que sejam meninas vítimas de estupro, a lei as pune. Atualmente, há mais de 40 mulheres cumprindo penas de 10 a 30 anos de prisão por terem feito aborto. A lei salvadorenha criminaliza todas as formas de aborto, inclusive o aborto terapêutico, e pune tanto as mulheres como os médicos. Se forem considerados culpados, as sentenças variam de dois a oito anos. No entanto, em muitos casos, o crime é alterado para homicídio agravado devido ao relacionamento da vítima com o autor do crime, e as mulheres podem ser condenadas a até 30 anos de prisão. Entre 2014 e 2020, o coletivo Citizens' Group for the Decriminalisation of Abortion registrou 190 mulheres processadas. Dessas, 46 foram condenadas por homicídio agravado e cerca de 30 por aborto.

2. Riscos para a vida e a saúde física, emocional e psicossocial das mulheres. Em El Salvador, uma nação com quase sete milhões de habitantes, estima-se que 25 mil mulheres engravidam após um estupro a cada ano e milhares de abortos clandestinos são realizados.

3. Violação dos direitos humanos das mulheres, dos direitos à vida, à integridade pessoal, às garantias judiciais, à privacidade, à igualdade perante a lei, à proteção judicial e ao direito à saúde, conforme contemplado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Quais são os pontos mais críticos dessa legislação do ponto de vista da IMU?

Um dos pontos centrais dessa situação está relacionado à criminalização imediata das mulheres por abortos espontâneos, e ainda mais nos casos em que as mulheres nem sequer sabem que estão grávidas e nunca fizeram um exame de saúde adequado no sistema público de saúde.

Outro ponto é que elas nunca são processadas pelo crime de aborto, mas a promotoria as acusa do crime ainda mais grave de homicídio agravado, que prevê pena de 30 a 50 anos de prisão, enquanto o aborto prevê pena de 4 a 8 anos. A revitimização que a mulher tem de sofrer depois de ser abusada sexualmente ou estuprada, que tem de contar sua história mil vezes, desde o momento em que decide ir denunciar seu agressor, ela conta sua história desde o guarda no centro judiciário até o médico forense que a atende no final do dia.

Há alguma proposta sendo discutida na sociedade para alterar essa lei?

Desde 1998, as organizações de direitos das mulheres apresentaram à Assembleia Legislativa quatro propostas relacionadas à descriminalização do aborto. Desta vez, por três motivos: quando a vida da mulher está em risco, quando a vida do feto é inviável e quando a gravidez é resultado de estupro ou violação em mulheres e menores.

A nova proposta foi batizada de "Reforma Beatriz", em memória de uma jovem que teve o acesso ao aborto negado pelo Estado salvadorenho, mesmo tendo um feto que, segundo os médicos, apresentava patologias médicas incompatíveis com a vida fora do útero. No entanto, a Assembleia Legislativa de 2021-2024, dominada pelo partido governista Novas Ideias, enviou todos os arquivos herdados das legislaturas anteriores para o arquivo. Durante vários anos, nenhuma das propostas obteve os votos necessários para aprovação, e a última apresentada (set/2021) foi rejeitada pelo Congresso em outubro de 2021, com os votos de 73 dos 84 deputados.

Qual é a correlação de forças políticas em El Salvador para mudar essa lei?

Nula, uma vez que o partido do governo detém toda a Assembleia Legislativa, todos os deputados eleitos pelo partido do governo são conservadores e ortodoxos em seu pensamento. A partir de 1º de maio de 2024, os deputados declarados oficialmente eleitos pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) formarão a nova Assembleia Legislativa até 30 de abril de 2027. Essa legislatura terá a particularidade de que foi reduzida para 60 parlamentares, após uma reforma no Código Eleitoral, aprovada com dispensa de formalidades em 7 de junho de 2023.

De acordo com o órgão colegiado, os resultados da contagem final deram ao Nuevas Ideas (NI) 54 assentos, à Alianza Republicana Nacionalista (Arena) 2, ao Partido de Concertación Nacional (PCN) 2, ao Vamos 1 e ao Partido Demócrata Cristiano (PDC) 1.

O TSE informou que os seguintes partidos ficaram sem representação no Plenário Legislativo no Plenário Legislativo: Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN), Gran Alianza por la Unidad Nacional (GANA), Nuestro Tiempo (NT), Fuerza Solidaria (FS) e Cambio Democrático (CD). Por outro lado, os seis parlamentares de outros partidos políticos foram reeleitos em sua totalidade: Marcela Villatoro e Francisco Lira, da ARENA, Reynaldo Cardoza e Serafín Orantes, do PCN, e Reynaldo Cardoza e Serafín Orantes, do PCN, Claudia Ortiz, da VAMOS, e Reinaldo Carballo, do PDC.

Em termos gerais, o fundamentalismo e a agenda antidireitos estão em ascensão em nosso país e na região, avançando de forma constante e perigosa, demonizando a educação sexual abrangente, os direitos sexuais e reprodutivos, a diversidade sexual e a abordagem de gênero e outros. Continuamos a denunciar e a lutar.

Edição: Rodrigo Durão Coelho