Uma vez Simone de Beauvoir nos alertou que "basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados". O Brasil atual não apenas tem sido uma evidência dessa máxima, como também é exemplo do oportunismo em que essas pautas buscam eco nos espaços de decisão política mais altos do país. Não se trata, no entanto, de uma simples conveniência conjuntural, mas de um projeto de dissolução dos direitos das mulheres sobre suas próprias vidas e corpos.
Em São Paulo, temos visto, assombradas, a silenciosa e arbitrária cassação do direito reprodutivo das mulheres, mesmo as vitimadas por estupro. O Hospital da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte da capital, uma referência no país no procedimento de aborto legal e seguro, tornou-se um experimento deste autoritarismo por parte das autoridades do município e do estado. Perseguição a médicos, vazamento ilegal dos dados das pacientes, até o interrompimento brusco do serviço. O resultado desse processo está sendo imediato: temos visto casos de meninas menores de idade que, grávidas após sofrerem abuso sexual, precisam se mudar para outros estados a fim de se valerem de seu direito de não levar adiante uma gravidez forçada e originada de estupro – um claro exercício de tortura.
De acordo com estudo da revista Ciência & Saúde Coletiva, ao menos 26 meninas entre 10 e 14 anos se tornam mães no Brasil por dia. Esta estatística converge com outro dado importante: conforme o último Atlas da Violência publicado em 2024, crianças do sexo feminino com menos de 14 anos são as que mais sofrem violência sexual no país – uma taxa de 49,6%. A gravidez infantil no Brasil, resultado de estupro que, em mais de 70% dos casos, ocorre dentro de casa, é uma realidade brutal que ganhou mais um passo com o PL 1904/2024, que busca institucionalizar e legalizar a tortura com crianças através da gravidez forçada. Pior ainda: imputar sentença mais duras aos corpos femininos do que aos seus algozes, responsáveis pela violência.
As mulheres responderam rapidamente a esse grave retrocesso, que surpreendeu até referências internacionais da luta feminista, como a grande intelectual estadunidense Angela Davis. Como presidenta estadual do Psol, pude presenciar de perto como o movimento de mulheres, pessoas que gestam e de toda a sociedade civil em torno deste projeto de lei retrógrado se organizou rapidamente e ganhou a força de uma onda, que se materializou em atos nas ruas de todo o Brasil, campanhas online, pressão às principais organizações e também ao Congresso Nacional, responsável por pautar às pressas o "PL do Estupro" através de articulação de Arthur Lira com a extrema direita bolsonarista. A repercussão acabou ressoando mal inclusive entre mulheres evangélicas que não são de esquerda ou não se consideram necessariamente progressistas, mas que também se escandalizaram com o cerne do projeto.
O rápido recuo por parte destes setores da direita e do centrão não pode significar para nós uma vitória absoluta. Como parte deste projeto destrutivo, que tem Lira como atual fiador, os direitos reprodutivos das mulheres, pessoas que gestam e crianças continuam em jogo, na mão de parlamentares comprometidos com o saldo político que a promoção de pautas ultraconservadoras podem garantir nas próximas eleições municipais, no final do ano. O ponto para estes nunca foi, e nunca será, o interesse público, a saúde das mulheres e a aplicação da Constituição. Lembremos que o PL 1904 também foi uma "retaliação" declarada por parte do deputado federal Sóstenes Cavalcante, decorrente de uma ação de autoria do Psol no STF em relação a assistolia fetal, e que derrubaria a pauta se o partido também recuasse – o que sequer foi considerado.
Em São Paulo, esse cenário ganha tons ainda mais obscuros, com a forte articulação do prefeito Ricardo Nunes e do governador Tarcísio Freitas com Bolsonaro e sua base, o que pode indicar ainda mais acenos reacionários nas políticas públicas e serviços para a população.
A vigilância precisa ser permanente. E também a organização de toda a sociedade civil em torno do direito reprodutivo das mulheres, acesso a serviços de saúde que garantam tanto seu direito de escolha como sua própria preservação, além do combate com rigor à violência sexual, infantil e doméstica, uma face nefasta da misoginia que busca aprisionar, invisibilizar e matar as mulheres brasileiras. A tentativa de retrocessos tão escandalosos e abusivos como o do PL 1904, por vezes, pode nos fazer esquecer de que ainda estamos longe de um cenário no qual o corpo das mulheres pertence realmente a elas. Resistimos juntas, firmes, e agora é hora de darmos passos para a frente. Afinal, em uma próxima suposta "crise", sabemos exatamente quem será um dos alvos desta política de morte. E, neste momento, precisamos estar novamente prontas.
* Débora Lima é presidenta do Psol-SP e coordenadora nacional do MTST.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires