A disputa que o governo da Venezuela trava hoje com a Guiana pelo território de Essequibo se estende desde o século 19 e é retomada de tempos em tempos. Com as descobertas recentes de petróleo na região, o governo venezuelano voltou a carga e esquentou o assunto nos últimos meses. Mas a região tem uma série de territórios que passaram de país para país ao longo do tempo e há 120 anos o próprio Brasil abriu mão de um terreno no norte da América do Sul.
O terreno em questão é conhecido como a região do Pirara e fica no norte do Brasil, na fronteira entre o Estado de Roraima e a Guiana. O tema foi tratado no livro Os interesses Geopolíticos do Brasil na Guiana Essequiba, do pesquisador Ricardo De Toma pelo programa Sociedade e Fronteiras da Universidade Federal de Roraima, financiada pela Capes. Em sua obra, ele detalha como foram feitos os movimentos na região a partir de trocas de cartas e decisões dos governos da época.
A divisão dessas terras começou a ser discutida em 1842, entre o Ministério das Relações Exteriores do Brasil e o governo do Reino Unido, já que ainda naquela época, a Guiana era colônia britânica. Naquele ano, os dois países assinaram o Acordo de Neutralização sobre os territórios daquela região.
A ideia era usar os estudos geográficos que estavam sendo feitos pelo pesquisador Robert H. Schomburgk para o Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido. O texto também proibia qualquer ocupação militar de Brasil e Reino Unido nos espaços disputados e que as aldeias indígenas deveriam continuar na região. O documento também estabelecia que os dois países deveriam retirar tropas que ocupavam lugares em que havia missões católicas ou protestantes até que fosse resolvida a disputa pelos territórios.
Enquanto a questão não estava resolvida entre brasileiros e britânicos, a Venezuela assinou em 1850 um tratado parecido com o Reino Unido para a questão do Essequibo, que está na fronteira do que hoje é a Guiana e o território venezuelano. Em 1859 foi a vez de Venezuela e Brasil assinarem um acordo para a divisão dos territórios que estavam na região da fronteira entre os países.
No documento, os dois países chegam ao consenso de dividir da seguinte forma: os territórios da bacia do rio Amazonas, do rio Branco até o ponto mais alto da Serra Pacaraima eram do Brasil, enquanto a Venezuela ficava com as águas do rio Orinoco, Essequibo, Cuyuní e Caroní. Dessa forma, o Brasil reconheceu naquele momento que as águas do rio Essequibo que descem da Serra Mapuera e percorrem um trajeto de 800 quilômetros até desembocar no Oceano Atlântico seriam territórios venezuelanos, demarcando naturalmente as tradicionais fronteiras venezuelanas com a Guiana.
O acordo entre Venezuela e Brasil não mencionava a participação do Reino Unido nesta disputa e as terras que estavam sendo discutidas de forma separada entre cada dois países com a administração britânica.
Durante 10 anos, diplomatas venezuelanos pediram ao Reino Unido a retomada das negociações e sugeriram até a definição de um árbitro internacional que seria escolhido pelas duas partes, mas o pedido foi ignorado pelos britânicos que, em 1887, apresentaram os estudos de Schomburgk. O mapa apresentado incorporava para o Reino Unido as terras que estavam sendo discutidas com a Venezuela (região do Essequibo) e com o Brasil (Pirara).
A Venezuela passava também naquele momento por uma tensão envolvendo justamente os colonos da região do Demerara, na então Guiana britânica. Eles começaram a entrar na bacia do rio Orinoco para reivindicar os territórios que estavam “neutros” pelos acordos. Com isso, o governo venezuelano chegou a pedir ajuda para os Estados Unidos em 1882.
Relações diferentes
Depois da apresentação do mapa e das incursões dos colonos britânicos nos territórios que estavam em disputa, a Venezuela suspendeu as relações diplomáticas com o Reino Unido. Enquanto isso, o Brasil tentava manter as negociações na região do rio Pirara e, em outubro de 1888, assinou um memorando de entendimento pedindo a resolução da pendência que envolvia aquela região, já que os territórios seguiam “neutros”. O Ministério das Relações Exteriores brasileiro sugeriu a formação de uma comissão para discutir isso.
O governo britânico rejeitou a proposta e disse que era preciso traçar uma linha geral para a divisão dos territórios para só depois definir uma comissão que detalhasse essa divisão. Brasil e Venezuela articulam um debate bilateral para reivindicar esses territórios, mas o Brasil logo deixa esse movimento por entender que as situações eram distintas.
Em 1894 os Estados Unidos acataram o pedido dos venezuelanos e emitiram comunicado pedindo que o Reino Unido aceitasse a mediação internacional. Como resultado, em 1897 é assinado o Tratado de Washington relativo a essa questão. A arbitragem internacional foi favorável aos britânicos e a Venezuela teve que recuar no pedido.
O Brasil acompanhou todas essas movimentações e passou a ver ameaçada a sua soberania sobre o Pirara. Por isso, contestou a decisão da arbitragem internacional e enviou uma carta criticando essa decisão aos governos da Venezuela e Reino Unido. O Laudo Arbitral de Paris de 1899 sacramenta essa decisão até aquele momento e concede o Essequibo à Guiana britânica.
O acordo, no entanto, envolvia também o território do Pirara, que havia sido acordado com a Venezuela em 1859. O então chanceler brasileiro Olyntho de Magalhães questionou a decisão e disse que um terceiro país (neste caso os EUA), que não tinha envolvimento com o caso, não poderia decidir sobre as fronteiras em disputa de um território.
Contestação brasileira
Brasil e Reino Unido entregaram então a disputa pela região do Pirara à uma arbitragem internacional, que seria decidida pelo então Rei da Itália, Vítor Emanuel 3º. O diplomata Joaquim Nabuco defendeu a causa brasileira na questão. Ele apresentou um trabalho que se tornou referência para a discussão de fronteiras internacionais e mais tarde escreveu um livro chamado O Direito do Brasil, que explica a formação do norte do país.
Ainda assim, a decisão da arbitragem internacional italiana foi por uma divisão favorável aos britânicos, que ficaram com 60% do território (19.600 km²), enquanto o Brasil ficou com os outros 40% (15.500 km²).
Mesmo com uma conclusão desfavorável, o Brasil aceitou a decisão. De acordo com Ricardo De Toma, há duas possíveis leituras para essa conformação do governo brasileiro. A primeira delas foi falta de apoio por parte da Venezuela neste caso. O governo brasileiro já tinha tido uma posição favorável à Venezuela na disputa em torno do Essequibo.
A falta de reciprocidade dos venezuelanos acabou desestimulando os brasileiros que, mais tarde, mudaram a sua própria posição em relação ao território disputado pela Venezuela e adotou um tom neutro nessa questão.
Uma segunda possível leitura eram as disputas que tinha com outros países da região. O Brasil havia assinado em 1903 o Tratado de Petrópolis com a Bolívia depois de um conflito envolvendo os dois países, que selou a passagem do Acre para a administração brasileira. Com a guerra do Paraguai ainda fresca (conflito que dizimou a população paraguaia), o governo brasileiro tinha receio de contestar uma decisão internacional e reabrir outros casos com países vizinhos e se prejudicar.
“O Brasil se solidarizou sobre os excessos do laudo de 1899, a Venezuela tinha tanta confusão interna que a diplomacia era desorganizada que não se solidarizou na reivindicação do Brasil sobre o Pirara. O Brasil também tinha outras questões territoriais na região, então reativar essa questão poderia abrir uma caixa de pandora que seria ruim para o Brasil”, disse ao Brasil de Fato.
Essequibo em discussão
O debate em torno do território ainda está aberto entre Venezuela e Guiana. De tempos em tempos, governos venezuelanos dão demonstrações de querer resolver o conflito e incorporar de forma definitiva o território. A Guiana foi ocupada primeiro por espanhóis, que chegaram em 1499 no norte da América do Sul. O território passou a ser controlado por holandeses no século 16 por acreditarem que na região estava a mítica cidade de El Dorado (terra com ouro abundante).
Os holandeses implementaram no século 18 um amplo sistema de irrigação que atraiu colonos ingleses de ilhas caribenhas. A ocupação britânica foi crescendo, até que no final do século 18 já superava a presença de colonos holandeses. Com a expansão da França na Europa pela Revolução Francesa, os holandeses passaram parte de suas colônias para a administração inglesa para se proteger. A Guiana se torna independente em 1966, mas ainda hoje segue parte do grupo de ex-colônias britânicas.
De acordo com Ricardo De Toma, apesar de o governo de Nicolás Maduro ter reavivado essa discussão nos últimos meses, a questão continua sendo um aspecto nacional.
“O Essequibo é uma das maiores humilhações e feridas do orgulho nacional. A impotência que gerou essa usurpação e o jeito como os britânicos aplicaram sanções econômicas, bloqueio de portos, humilhações… Isso detonou a autoestima do venezuelano em algo que permaneceu em diferentes gerações. O tema foi continuamente incentivado para reativar o sentimento nacionalista. É como as Malvinas para os argentinos, a diferença é que não teve uma guerra. No entanto, com o aumento da crise, a questão fica mais moral e não é uma prioridade dos venezuelanos hoje”, afirmou.
A controvérsia ganhou novos contornos após 2015, quando a empresa estadunidense Exxon Mobil encontrou enormes reservas marítimas de petróleo na costa do enclave.
A Guiana, então, entregou concessões para que a empresa pudesse explorar as reservas que são estimadas em mais de 11 bilhões de barris de petróleo e fizeram o PIB guianês ser o que mais cresce no mundo, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI).
O governo do presidente Nicolás Maduro chegou a acusar seu homólogo guianês de seguir os interesses da Exxon Mobil e incitar um conflito na região. Já a Guiana acusa o vizinho de "intenções expansionistas" e desde setembro vem permitindo exercícios militares dos EUA na fronteira.
Em 2023, a Venezuela realizou um referendo para ouvir a opinião da população sobre a incorporação de Essequibo. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral, cerca de 10,5 milhões de eleitores participaram do referendo e 95,93% aceitaram incorporar a Guiana ao mapa e conceder cidadania aos mais de 120 mil guianenses que vivem na região.
Os presidentes da Venezuela, Nicolás Maduro, e da Guiana, Irfaan Ali, se reuniram em dezembro para discutir a disputa pelo território. Pelas redes sociais, a Presidência venezuelana celebrou o encontro e disse que os mandatários manifestaram "disposição de continuar o diálogo para dirimir a controvérsia em relação ao território do Essequibo".
Já o presidente guianês afirmou que manifestou a Maduro "a posição clara da Guiana que nós somos um país e um povo pacífico, não temos outras ambições do que buscar a coexistência pacífica com a Venezuela". No entanto, Ali disse que defendeu "que a controvérsia deve ser resolvida na Corte Internacional de Justiça [CIJ]", âmbito que é rejeitado por Caracas.
Edição: Rodrigo Durão Coelho