A descriminalização da maconha para uso pessoal, decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na terça-feira (25), trouxe um panorama inédito para o país ao fixar uma quantidade máxima - 40 gramas de erva ou seis pés plantados - para a distinção entre traficantes e usuários e isentar, em tese, o segundo grupo de consequências no âmbito criminal.
Para a especialista Nathália Oliveira, a decisão é “histórica”, mas não necessariamente vai mudar a violência policial que atinge, especialmente, a população negra no país e que comumente é interpretada como traficante, não usuária, sendo assim submetida às maiores penalidades.
“No entendimento do STF, ficou que a decisão sobre o enquadramento do sujeito, se é usuário ou traficante, deve ser acompanhada por autoridade policial -- leia-se delegado. Na prática, a gente sabe que a cultura autoritária que constitui a formação das nossas forças de segurança pública tende a seguir como é. Imediatamente, não vislumbro uma mudança”, comenta ao programa Bem Viver desta quinta-feira (27).
Nathália Oliveira é membra do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) e acompanha a discussão do STF desde o momento em que o Recurso Extraordinário entrou em pauta.
“A gente tem um fato histórico que é mais uma vez o judiciário reconhecendo o racismo, e é histórico na medida em que ele reconhece diretamente a relação da aplicação da lei de drogas ao racismo”, comemora.
No entanto, a especialista faz um digressão histórica ao lembrar a abolição da escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888, que não foi sucedida de outra ações do Estado para “construir políticas de cidadania e leis que incluíssem nossos sujeitos negros como cidadãos”.
"Se fizermos uma analogia rápida, foi a princesa Isabel que assinou a lei Áurea e não escreveu uma linha sobre reparação histórica. Ruy Barbosa queimou os registros dos escravizados quando o movimento brasileiro abolicionista subiu o tom sobre reparação e divisão de terras".
Por isso, Oliveira questiona a respeito da decisão do STF: “Quer dizer que isso vai acabar com o racismo? Não necessariamente. O Brasil acabou com a escravização dos sujeitos negros e no dia seguinte não fez nada para reparar esses danos”.
"O fato da elite do judiciário reconhecer o racismo da instituição não quer dizer que está disposta a mudar, são depositadas muitas expectativas no sistema de justiça, um dos poderes menos democráticos do Brasil. Mas, inegavelmente [foi] uma fissura que ajuda a pautar a opinião pública e outros poderes. Quando os demais poderes reconhecerem isso, podemos pensar em mudanças estruturais
O tema chegou ao STF em 2011 e começou a ser analisado em agosto de 2015. Foram muitas idas e vindas, pedidos de vistas, até que o julgamento ganhasse ao ritmo que levou à conclusão do julgamento nesta semana.
O tribunal decidiu, então, que a substância segue proibida no país e que as autoridades policiais devem realizar a abordagem de quem for flagrado consumindo maconha. A diferença é que, a partir de agora, não haverá consequências no âmbito criminal.
Dessa forma, o novo entendimento do STF não legaliza a maconha no país. A decisão do tribunal apenas modifica a definição natureza da ilicitude, antes considerada de natureza criminal, e agora administrativa.
Confira a entrevista na íntegra
Podemos dizer que a decisão do STF foi histórica?
Olha, para mim que acompanho essa pauta a um certo tempo, quase uma década, ainda estou cautelosa para emitir opinião sobre uma mudança que veio de forma repentina.
Essa decisão do STF veio cheia de reviravoltas. Até a semana passada o voto do Dias Toffoli parecia que não somaria maioria para a descriminalização, depois ele apareceu no plenário do STF revendo o posicionamento.
Mas sim, a gente tem um fato histórico que é mais uma vez o judiciário reconhecendo o racismo, e é histórico na medida em que ele reconhece diretamente a relação da aplicação da lei de drogas ao racismo.
Quer dizer que isso vai acabar com o racismo? Não necessariamente. O Brasil acabou com a escravização dos sujeitos negros e no dia seguinte não fez nada para reparar esses danos ou construir políticas de cidadania e leis que incluíssem nossos sujeitos negros como cidadãos.
Vejo também como positivos os juízes reforçarem os padrões de tratamento e cuidado para o uso de álcool e outras drogas na atenção em liberdade, com parâmetros a partir da Organização Mundial de Saúde, reforçando a nossa rede de saúde mental, as estratégias de redução de danos, os próprios Centros de Atenção Psicossocial [CAPS], que no último período ficaram bastante sucateados, seja por desinvestimento no governo Bolsonaro e até uma tentativa de desmontes da rede de saúde mental.
Isso tem como um efeito prático o crescimento do financiamento das comunidades terapêuticas, que não é uma condição no governo Bolsonaro, ela segue em curso no governo Lula.
Então, reafirmar o óbvio e o sensato hoje em dia, diante de tantos absurdos que a gente acompanha, já é um respiro.
Ver que tem um poder, ou às vezes parte de outros poderes, que tem um entendimento próximo do razoável, que não tenta retomar a perspectiva de internação forçada ou a lógica manicomial.
Mas para por aí. Para por aí no sentido que é histórico esse reconhecimento, mas não podemos afirmar que outras mudanças estruturais vão acontecer necessariamente.
De qualquer forma, a decisão abre brecha para que essa discussão também se amplie, junto com a opinião pública. Após o entendimento da STF, que veio na terça-feira [25], foi possível já observar setores que não se pronunciavam sobre a pauta falando sobre isso: setores que tratam de gastronomia, páginas de comida, artistas que não se pronunciavam sobre isso, se pronunciando... acho que muita coisa ainda pode acontecer.
Parece que o STF, de alguma maneira, desinterdita, deixa as pessoas mais à vontade para emitirem sua opinião. Isso também é um ponto positivo e é fruto desse julgamento.
E como você vê a PEC 45? É uma ameaça a esse avanço do STF?
É uma questão de preocupação. Essa PEC inclusive surgiu já como resposta a esse julgamento que tramitava no STF, com uma negação por parte do legislativo dizendo que entendia que o STF estava fazendo uma invasão de competências ao olhar para essa temática e tentar legislar sobre isso.
Isso é preocupante porque se por um lado no STF foram anos para a gente chega nesse entendimento, no Congresso Nacional não é bem assim.
Foi muito rápido a tramitação da PEC 45 [conhecida como PEC das drogas] no Senado e também caminha com uma certa velocidade na Câmara dos Deputados.
Isso pode desencadear na tentativa de criação de leis municipais que buscam a criminalização de usuários. Esse movimento tem acontecido em algumas regiões do Brasil desde o ano passado em algumas cidades.
Infelizmente essas leis passaram, algumas preveem pena, outras assumem publicamente uma internação compulsória de usuários, então mesmo que eventualmente a PEC não passe, a gente pode ver um processo de pipocamento de leis em municípios e estados que busquem aumentar de alguma maneira o controle e pena para usuários.
Voltando a falar sobre a decisão do STF, podemos afirmar que há um avanço no cenário de violência policial, especialmente contra a população negra e marginalizada?
Apesar da crítica do Superior Tribunal Federal à maneira como isso [abordagens policiais] acontece, a gente não tem uma nova orientação para as forças de segurança publica atuarem.
Na decisão do STF, inclusive, ficou [entendido] que deve ser acompanhada por autoridade policial -- leia-se delegado --, a decisão sobre o enquadramento do sujeito, se é usuário ou traficante.
Na prática a gente sabe que a cultura autoritária que constitui a formação das nossas forças de segurança pública tende a seguir como é. Imediatamente, não vislumbro uma mudança.
Até porque há muito tempo a gente alimenta um imaginário social de que o tráfico de drogas está nas favelas e nas periferias e de que por isso são territórios mais violentos. Ao invés da gente entender esses territórios como violentados. Violentados, inclusive, nos seus orçamentos.
É muito comum quando a gente vai fazer uma análise orçamentária de investimento em territórios de favelas, [perceber um] pequeno investimento em cultura, muitas vezes inexistente, ou outras políticas como esporte, saúde pública, educação, sempre um investimento menor em relação ao investimento, que nunca deixa de acontecer, das forças policiais,
[Segue] a construção no imaginário popular de que o crime organizado, as facções ainda estão nas favelas. Aquela ideia ainda muito imaginada de um líder, um rei da favela, ainda é alimentada.
Ela é ruim por dois motivos, primeiro porque a gente não consegue fazer um combate ao crime organizado que não seja só enxugar gelo. As biqueiras, como são conhecidas, são hoje franquias, elas não são o grande lucro do crime.
Na verdade, o crime organizado hoje já diversificou suas fontes de lucro, com a ocupação de contratos públicos, lavagem de dinheiro, disputa de territórios, inclusive em regiões como da Amazônia.
O Brasil é a terceira maior população carcerária e um dos países que mais mata pessoas no mundo. Tem uma das polícias mais violentas.
Quando a gente vai olhar o que são esses jovens de favela, que são aqueles que a TV adora mostrar, são jovens que não vão passar muitas vezes os 30 anos de idade, né? A média de idade desses jovens vai ficar entre 27 anos, muitas vezes nem conseguindo a passagem da idade da juventude.
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Edição: Nathallia Fonseca