“O governo do Maranhão não ajuda meu Boi / porque não sou de outro estado / ele traz de Salvador só cantor renomado / Chega aqui, já recebeu mais de 1 milhão adiantado / Cinco mil é o meu cachê / Não sei por que / eu tenho que receber atrasado”. A toada do mestre Zé Olhinho do grupo Bumba meu Boi de Unidos de Santa Fé, um dos mais tradicionais do Maranhão, viralizou.
A composição se espalhou pelas redes sem que o mestre tomasse conhecimento. Encontrou eco por sintetizar um sentimento que transcende os grupos de bumba meu boi.
Durante os festejos juninos de 2024, expressões culturais da diáspora africana que também são típicas do Maranhão, como o tambor de crioula e o cacuriá, estão representadas em outdoors, fotos sob o slogan “Maior São João do mundo” e matracas com logos de empresas distribuídas no aeroporto de São Luís.
Na visão de mestres ouvidos pelo Brasil de Fato, no entanto, a falta de espaço, remuneração e valorização destes grupos ajuda a descaracterizar justamente a forma de fazer os festejos juninos que, na publicidade turística, se busca vender.
“Aqui ainda é possível que haja retaliações para quem faz esta crítica”, acrescenta a antropóloga Wilmara Figueiredo, pesquisadora de patrimônio imaterial e cultura popular.
"Espero que não façam isso com o Boi de Santa Fé, um boi poderosíssimo que faz um trabalho lindo envolvendo a comunidade e cujo mestre está apenas expressando o sentimentos de muitos", diz Wilmara.
O governador Carlos Brandão (PSB) esteve na inauguração do "Bumba Meu São João”, espaço que, segundo a gestão, foi “promovido pela iniciativa privada” com “a colaboração do Governo do Estado”. “Serão 18 atrações nacionais”, anunciou. E em seguida, fez um adendo: “Mas é lógico que nós vamos ter, também, o protagonismo das nossas atrações locais”.
Dos nove dias de shows, um foi dedicado aos “protagonistas” locais. Entre os que estiveram no palco durante os outros, estão Zé Vaqueiro, Nattan, Luan Santana, Xand Avião, Mari Fernandez, Calcinha Preta e as duplas sertanejas Matheus e Kauan e Israel e Rodolfo.
Enquanto isso, no início de junho e após críticas, o deputado estadual Juscelino Marreca (Patriota) retirou de pauta o Projeto de Lei 247/2024, que visava tornar o “São João da Thay” um patrimônio cultural imaterial do Maranhão.
O festival feito pela influenciadora Thayanara OG é pago e privado. Na edição deste ano, convidou artistas como Wesley Safadão, Christian Chávez (ex-membro do RBD), Fafá de Belém, Alceu Valença e João Lucas (marido de Sasha Meneghel).
“O ‘São João da Thay’ pode ser maravilhoso para a nossa cidade. Traz a oportunidade de as pessoas daqui fazerem contato com outros artistas que são admirados nacionalmente”, opina Wilmara Figueiredo. “Mas na hora que chega o evento dela, vemos a desproporção de cachê e tempo de apresentação em relação aos grupos locais”.
O padrão que se repete em eventos de setores privados e do poder público, para a pesquisadora, é também uma desvalorização “étnico-racial”. “Não estou dizendo necessariamente que as gestões são racistas. Mas que as suas escolhas refletem pensamentos racistas, refletem”, diz Figueiredo. “Porque estão menorizando o tempo de vida, de trabalho, o conhecimento daquelas pessoas que quase invariavelmente são pretas e moradores de periferia ou da zona rural”, argumenta.
Os grupos de boi do sotaque de costa de mão, um dos estilos mais antigos, não tem a mesma fama que os outros. De acordo com brincantes ouvidos pela reportagem, é o que enfrenta a situação mais difícil para manter a tradição.
Originário de Cururupu, litoral noroeste do Maranhão, o sotaque carrega este nome porque é assim, com a costa da mão, que os pandeiros são tocados. Seus criadores, ainda no período escravista, precisavam preservar a frente das mãos, comumente feridas por castigos e trabalhos manuais.
Este ano, circulou pelas redes uma campanha de solidariedade com o Boi Brilho da Sociedade, de Cururupu. "Estamos enfrentando dificuldades para custear o transporte necessário para nossas apresentações em São Luís", dizia a mensagem, acompanhada de um pix.
Ainda assim, as brincadeiras, como são chamadas as manifestações tradicionais, estão nas ruas. “Mas não de maneira que prestigie essa diversidade”, avalia Wilmara. “O que justifica [o poder público] não contratar, por exemplo, a Turma dos Crioulos, que é considerado o tambor de crioula mais antigo da cidade?”, questiona.
Disruptura
Nascida em Cururupu (MA), mestra Rosa Barbosa se mudou para São Luís aos 10 anos de idade, há 55 anos. É caixeira, como sua avó. E coureira, como seu pai. Mas também parteira, rezadeira e artesã. “Graças a Deus, tudo da cultura eu faço um pouco”, diz.
“E para mim é um prazer passar um pouco do que eu sei para as pessoas. Me sinto muito bem, entendeu?” afirma a mestra, sentada em frente a uma pilha de caixas, tambores feitos por ela.
É na sua casa, no quilombo urbano Liberdade, a sede dos dois grupos que comanda: o Filhos de São Benedito, que faz todo mês de setembro há 45 anos o festejo de São Cosme e Damião, e o Turma dos Crioulos. Este último vai completar 80 anos no próximo domingo (30).
Para Wilmara, pesquisadora de grupos de cultura popular há duas décadas, seus interlocutores “sentem que estamos vivendo um momento propício para uma disruptura em relação a essa maneira de celebrar o nosso São João. Porque há tanta interferência que está gerando esse enfraquecimento do elo com a sociedade como um todo”.
“Porque se eu não conheço, eu não vou tomar aquilo como minha herança. E se não tomo como minha herança, não vou cuidar”, explica. “O que aquece o meu coração é quando eu vejo não só nos arraiais, mas principalmente nos viveiros - que é como chamamos as sedes de grupos - as crianças participando”, conta Wilmara.
Questionada, a Secretaria de Cultura do Estado do Maranhão não se posicionou sobre o assunto até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
De geração em geração
Foi assim, desde criança acompanhando seu pai, mestre Tunico, que Ana Keila aprendeu a brincar o bumba meu boi de zabumba. Hoje, aos 43, ela preside o mais antigo grupo do gênero do Quilombo da Liberdade, o Bumba meu Boi Fé em Deus.
Mas mesmo a participação das crianças tem encontrado obstáculos. No ano passado, Ana Keila foi surpreendida com um ofício da Vara da Infância e Juventude do Ministério Público do Maranhão estipulando um horário limite para a participação das crianças e adolescentes do grupo nos arraiais.
“Como é que a gente vai apresentar o boi?”, questiona Ana Keila. “É uma situação, além de constrangedora, muito difícil para nós”, classifica. “As crianças gostam de ir, querem ir. Como dizer a elas que não podem dançar? Eles [promotores] podem achar que a gente está fazendo mal, mas as crianças estão se sentindo bem”, argumenta.
“Tem tanta criança que realmente está precisando de atenção, de um cuidar, de um olhar em relação a tantas situações. Então por que se voltar para essas crianças que estão fazendo cultura, que estão adquirindo conhecimento para lá na frente, passar essas informações e, quem sabe, ser líder de um grupo e continuar o nosso movimento cultural?”, reflete Ana Keila.
Neste ano, a presidente do Boi Fé em Deus já tem na mão o alvará de autorização do MP-MA para cada uma das 14 crianças abaixo de 12 anos que integram o grupo. “Eu fico triste por essa burocratização toda”, lamenta, mas ressalta que a participação dos mais novos está garantida.
“Porque é aí que nasce, entendeu?”, ressalta Wilmara a respeito da transmissão da tradição entre gerações. “É aí que você aprende que aquilo é parte da tua história, da tua memória, e aquilo passa a ser parte, consequentemente, de quem tu é. E cria esse vínculo a ponto de tu querer fazer parte”, descreve. “É a transmissão destes saberes o que faz com que a máquina gire há muito tempo”.
Mestre Tunico, como é conhecido Antônio Ribeiro, se encantou pela zabumba quando tinha oito anos de idade. “Desde que me entendi”, resume.
“Todas essas brincadeiras vieram da África, né? Só que lá era um tipo. Aqui inventaram mais, aperfeiçoaram. Vieram primeiro para Alcântara. Aí aperfeiçoou, foi para Guimarães. Por isso o boi de zabumba chama sotaque de Guimarães”, explica.
“Foi de zabumba que vieram os bois de Cururupu, costa de mão, matraca da ilha, o da baixada”, conta mestre Tunico, se referindo aos diferentes estilos de bumba meu boi nos quais se dividem a tradição: zabumba, matraca, orquestra, costa de mão e baixada.
“O primeiro boi é esse, zabumba. É a raiz. Que hoje não estão dando valor como merece”, salienta mestre Tunico. “Nós brincamos em 2023, viemos receber em 2024. Entendeu? Aí, como é que pode uma brincadeira conseguir seguir?”, ilustra.
No caso do Fé em Deus, a ida às ruas se garante por conta de credores que emprestam dinheiro para que os instrumentos, o boi, a indumentária e os outros preparativos para o São João aconteçam. São reembolsados quando chega o cachê das apresentações. Por vezes, no ano seguinte.
“Desafiam o tempo”
“Esses grupos não estão ali para ganhar dinheiro propriamente”, afirma Figueiredo. “Estão ali por conta de um elo espiritual, de um amor muito grande por aquele saber fazer, que é uma herança que pegou do pai, do bisavô, que aprendeu ali na sua comunidade. Mas que é traduzido em tempo de vida”, diz.
“Esse tempo de vida é trabalho o ano inteiro para poder fazer essas brincadeiras. E essa manifestações salvam vidas nas suas comunidades. Literalmente. Dando motivação, injetando autoestima, principalmente num lugar como o Maranhão, que é o estado mais pobre do Brasil”, menciona Wilmara.
Segundo o estudo do Instituto Jones dos Santos Neves divulgado em abril deste ano, o estado maranhense figura no topo do ranking do país, com 51,6% da sua população abaixo do nível de pobreza.
“E só não é pior porque o povo dá um jeito de fazer com que as coisas continuem”, constata a antropóloga. “Essas manifestações desafiam o tempo. O que inclui os ditames sociais e econômicos”, descreve.
Mestre Tunico se estabeleceu no bairro Fé em Deus em 1965. “Cheguei e comecei logo a brincar esse boi aqui. E até ontem à noite estava brincando”, conta rindo.
Com orgulho, mestra Rosa conta que quando vai ao interior, o povo olha sua bisneta de seis anos e comenta “é teu fruto, né Rosa?”. Segundo ela, a menina leva jeito para bater caixa, tambor e dançar. Eu digo ‘tenho que passar, ela gosta’”, conta.
Na parede da sua sala, ao lado de uma estátua de São Benedito, o santo protetor dos negros e padroeiro do tambor de crioula, está pendurado um banner com a foto da garota sorrindo. Costuma passar finais de semana com a bisavó.
“Eles [governantes] podem fazer de tudo, não conseguem acabar com a cultura”, fala mestra Rosa, com serenidade.
“Olha, política é só quatro anos. E cultura é o tempo todo, que passa de pai para a filha. Então nunca termina, entendeu?”, diz.
Edição: Nathallia Fonseca