Em alguns momentos, é com violência que ele vai ter que responder. Em outros, com arte, com poesia
Há mais de um século do nascimento de João Francisco dos Santos, mais conhecido como Madame Satã, sua figura segue emblemática e ainda indecifrável até mesmo para quem se dedica a estudar sua biografia.
Em entrevista ao programa Bem Viver desta sexta-feira (28), a professora Geisa Rodrigues, da Universidade Federal Fluminense, não soube precisar em qual letra da sigla LGBTQIAP+ Madame Satã se encaixaria, mas uma coisa é certa: sua existência ultrapassou qualquer estereótipo.
"Ninguém é uma coisa só", diz a autora do livro As múltiplas faces de Madame Satã, que faz uma análise sociocultural do Brasil do século 20 a partir desse personagem lendário da malandragem e da boemia cariocas.
Nascido em Glória do Goitá, na Zona da Mata de Pernambuco, mudou-se ainda pequeno para o Rio de Janeiro (RJ), onde se desenvolveria como artista, performer, além de aprender a jogar capoeira como poucos. A capoeira se tornou sua principal arma para se defender e bater na polícia.
"Como ele sofreu violência, se tornou uma pessoa violenta... Não sei se é só isso. Eu acho que era a forma dele de ser e estar no mundo. Era uma resposta à violência, mas também um jogo. No sentido de que, em alguns momentos, é com violência que ele vai ter que responder. Em outros momentos, com arte, com poesia”, argumenta a professora.
A especialista defende que ele foi alvo de curiosidade e interpretações variadas, das mais conservadoras às mais transgressoras. Foi uma figura emblemática que causou perplexidade no imaginário acerca da sexualidade homoerótica masculina.
Rodrigues faz referência, principalmente, a uma célebre entrevista concedida por Madame Satã ao tradicional jornal de esquerda Pasquim, no anos 1970, pouco antes da morte do capoeirista.
A professora lembra que o contexto era o da ditadura militar (1964-1985), então, um dos objetivos da publicação era justamente explorar a imagem transgressora de Madame Satã, que para a professora foi muito implantada pela própria visão conservadora do jornal.
"Havia um desejo muito grande por aquela imagem de homossexual que, a princípio, se opunha de malandro. Pensando nessa ordem binária, mesmo, no sentido de que o malandro seria um representante de uma masculinidade, da violência, de um universo que deveria ser masculino", explica. "A grande questão é que não havia uma tentativa de separação, mas de mostrar o personagem dentro de uma lógica que se pressupõe a heteronormativa para chocar."
Para a professora, há uma virada de chave com o filme Madame Satã, de Karim Ainouz, de 2002, estrelando Lázaro Ramos no papel do protagonista.
"O filme do Karim Ainouz foi importante nesse sentido. A questão da sexualidade é colocada em cena a partir do desejo, entre outras questões ali. O filme mostra toda a potencialidade política da homossexualidade."
Apesar da falta de certeza sobre a data correta, o ano de nascimento registrado de João Francisco dos Santos é 1900. Ele vive até 1976, quando faleceu em Angra dos Reis e foi enterrado na Ilha Grande, no Rio de Janeiro. Foi neste local que passou parte da vida preso. Por diversas vezes foi detido, algumas delas, acusado de homicídio, crimes que ele negou na entrevista ao Pasquim.
João Francisco se casou aos 34 anos com Maria Faissal. Juntos, criaram seis filhos de adoção. Em fevereiro de 1976, João foi encontrado internado em um hospital em Angra dos Reis. Dois meses depois, faleceu, aos 76 anos, devido a um câncer pulmonar.
Confira a entrevista na íntegra
A partir das suas pesquisas, quem foi Madame Satã?
Para mostrar a complexidade dessa personagem, a gente pode começar pensando em algumas mudanças que a gente está vendo. Quando eu escrevi o livro, eu usei o 'o' Madame Satã, porque essa era a forma como ele se nomeia na autobiografia, em diversos depoimentos e nas entrevistas. Mas há bem pouco tempo eu fui fazer um trabalho e as pessoas tiveram cuidado de falar, 'a' madame Satã, isso já reflete algum tipo de mudança.
Mas Madame Satã é essa personagem que permeou o imaginário, sobretudo o imaginário midiático brasileiro durante um bom tempo, e sofreu uma mudança depois do filme do Karim Aïnouz, na década de 2000.
Essa questão do registro era um pouco mais confusa nesse período, mas o que se tem é que ele teria nascido exatamente no início do século. Então, nasceu exatamente em 1900, no interior de Pernambuco e vem pra cá [Rio de Janeiro] e já é um menino de rua. Ele vem com uma pessoa e acaba vivendo nas ruas.
De forma livre também, de uma certa forma. Por exemplo, ele conta que, num dado momento, decidiu que ele gostava mais de estar com homens, porque ele participava de alguns bacanais, isso já adolescente.
Ao mesmo tempo, ele vai crescendo naquele universo da malandragem, do dia a dia, enfim, de se virar, de viver a boemia da Lapa, onde ele cresceu.
Madame Satã só recebe esse nome muitos anos depois, já com mais de 30 anos de idade, porque um delegado coloca esse apelido nele, e aí ele resolve adotar.
E o delegado coloca esse apelido nele numa batida policial. Um dia ele [Madame Satã] está conversando no passeio público com umas bichas amigas, e aí ele é levado junto com elas [pelos policiais]. Como todos tinham o nome de guerra, o delegado fala "não, você tem que ter um nome de guerra".
E ele [Madame Satã] tinha ganhado um concurso de fantasia no Bale de Viados com uma fantasia de morcego, e o cara fala "não é você que tava fantasiado de Madame Satã?", que era o nome do filme do Cecil B. DeMille, Madame Satan. E aí, com o passar do tempo, ele mesmo começou a adotar essa identidade.
O que também serviu, durante muito tempo, para ir construindo esse mito em torno da personalidade.
Sempre bom lembrar que as grandes referências que temos sobre Madame Satã vem da entrevista ao Pasquim, que ele dá nos anos 70, muitos anos depois.
Eu tenho a sensação de que ele foi, durante muito tempo, retratado como um paradoxo. No sentido dele pertencer a esse universo da malandragem e ao mesmo tempo da homossexualidade. Isso foi muito mais construído por um olhar conservador do que pela vivência dele próprio Madame Satã.
Você sente que até hoje há uma influência de Madame Satã na sociedade brasileira?
Acho que hoje a gente tem bem mais acesso. Na época que eu investiguei, fiz muita pesquisa no Arquivo Nacional, mas hoje o acesso é muito mais facilitado, e o filme do Karim Ainouz foi importante nesse sentido.
A questão da sexualidade é colocada em cena a partir do desejo, entre outras questões ali. Isso traz de volta a curiosidade em torno do personagem, mas por uma outra chave, que era muito diferente da curiosidade que aconteceu que ocorreu nos anos 70.
E tem uma coisa que eu narro que é bem curiosa. Quando eu fui ver o filme, num cinema em Botafogo, às 14h, estava vazio o cinema. Tinha três pessoas, acho que três velhinhos, assistindo ao filme. E eu tive a sensação de que eles estavam olhando nessa expectativa de encontrar aquele malandro do imaginário dos anos 70
Pode ser uma impressão minha, mas eu lembro que os três saíram antes do filme terminar, justamente por essa frustração do filme não trazer esse malandro imaginado dos anos 70.
As pessoas tinham uma expectativa com relação ao saudosismo em torno da malandragem, com aquele personagem idílico que, de alguma forma, o Pasquim, no conservadorismo daquela esquerda, eternizou.
Claro que, até hoje, a gente vai ver coisas estereotipadas também, no sentido de reforçar esse suposto paradoxo. Sendo que isso não era tão paradoxal assim. Mas o filme traz essa virada de chave, de mostra a potência política da homossexualidade.
Mas havia uma vontade do Pasquim e de outros setores da esquerda de afastar a imagem de homossexual do malandro?
Eu não sei se era uma tentativa de afastar, porque havia um desejo muito grande por aquela imagem, aquela imagem de homossexual que, a princípio, se opunha a de malandro.
Pensando nessa ordem binária mesmo, no sentido de que o malandro seria um representante de uma masculinidade, da violência, de um universo que deveria ser masculino.
A grande questão é que não havia uma tentativa de separação, mas uma tentativa de mostrar o personagem dentro de uma lógica que se pressupõe a heteronormativa para chocar.
Naquele momento isso era muito importante porque a gente estava em pleno regime militar, então qualquer personagem que pudesse estar, de alguma forma, na transgressão à norma, seria interessante. Claro que para o Pasquim e essa esquerda do período, essa transgressão tem um limite na entrevista, porque eles acabam se prendendo muito a lógica binária.
E como devemos olhar para o estigma de violento que se atribui a ele? Você entende que Madame Satã usou da violência como resposta às agressões, exclusões e estigmas que sofria?
É curioso isso porque essa imagem realmente circulou muito, mas você vê depoimentos de outras pessoas dizendo: "poxa, mas me parecia uma pessoa tão tranquila, como assim era violento?".
Acho que a gente pode falar de violência na ordem do jogo, que tem um pouco a ver com a ordem da capoeira, do jogo de corpo. Eu não sei se é só uma questão de estímulo e resposta.
Como ele sofreu a violência, ele se tornou uma pessoa violenta... Não sei se é só isso. Eu acho que era uma forma dele de ser e de estar no mundo. Também resposta à violência, mas também como um jogo.
No sentido de que, em alguns momentos, é com violência que ele vai ter que responder. Em outros, é com arte, com poesia. Até porque ele foi, por exemplo, o pai adotivo de várias crianças e ele realmente foi casada com uma mulher, a Maria Faissal, no papel. E as crianças levam o nomes dos dois. Tem todo um histórico. Ninguém é uma coisa só.
Ele realmente não tinha medo de bater em polícia, então tinha essa questão dele se impor. Mas eu prefiro pensar que era da ordem do jogo, mesmo, não só de alguém que é vítima, mas de alguém que soube se colocar em alguns momentos. Talvez não tenha conseguido [se colocar] sempre, senão, não teria preso tantas vezes.
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Edição: Martina Medina