“A saúde mental dos palestinos está sendo deliberadamente visada. A ocupação é sobre matar o palestino fisicamente, e vemos isso muito claramente agora em Gaza, por bombardeio, fome e ataque ao sistema de saúde”, afirmou a psiquiatra e psicoterapeuta palestina, Samah Jabr, em entrevista ao jornal Brasil de Fato MG.
Nascida em Jerusalém Oriental em 1976, a médica atua nos setores público e privado no território onde nasceu e na Cisjordânia. Desde 2016, é chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde da Palestina.
Samah faz uma passagem pelo Brasil para uma série de atividades que tem como cerne o genocídio vivido pelo povo palestino. Os ataques de Israel já desalojaram cerca de 1,7 milhão de palestinos e mataram mais de 37 mil pessoas.
“É muito significativo para mim estar no Sul Global falando com brasileiros, que podem entender a experiência palestina, por causa de suas experiências anteriores de repressão e dominação política”, destacou.
No momento em que conversou com o Brasil de Fato MG, a psiquiatra participava do “1º Congresso Brasileiro de Psicologia e Migração (CBPM) – Por uma sociedade sem fronteiras”, realizado pelo Conselho Regional de Psicologia - Minas Gerais (CRP-MG), em Belo Horizonte, e que ocorreu entre os dias 19 e 21 de junho de 2024.
Henrique Galhano, conselheiro do CRP-MG e organizador do evento, reforçou a importância do debate em um contexto em que as pessoas são forçadas a se deslocar de seus próprios territórios devido às guerras.
“Para pensar a promoção de saúde mental dessas pessoas que estão em deslocamentos, sejam eles forçados ou voluntários, sobretudo no atual contexto que nós vivemos, de genocídio do povo palestino e onde as guerras estão cada vez mais acentuadas numa divisão entre o oriente e o ocidente”, apontou.
Confira a entrevista completa com Samah Jabr:
Brasil de Fato MG - Você veio ao Brasil para participar de uma série de atividades que tem como cerne a Palestina e o genocídio vivido pelo povo palestino. Uma dessas agendas é o lançamento, em português, no Congresso de Psicologia e Migração do, do livro “Sumud em tempos de genocídio”, que reúne alguns de seus escritos produzidos ao longo de duas décadas e publicados em diversos meios.
Quais principais denúncias você faz na publicação? E qual a importância de nós, brasileiros e brasileiras, estarmos implicados nesse tema?
Samah Jabr - Bem, eu realmente acredito que a experiência Palestina é uma experiência humana. Agora, a questão da dominação e das relações de poder não são exclusivas da Palestina. Existem muitas guerras, conflitos e situações de opressão no mundo. Talvez o exemplo palestino seja um exemplo muito vívido, mas não é exclusivo para nós e não devemos vivê-lo sozinhos. A Palestina não deve ser isolada do mundo.
Então, meu esforço para comunicar a voz palestina e a história palestina para um público mais amplo é uma pequena contribuição para minimizar o isolamento dos palestinos e nos conectar a uma comunidade mais ampla, e não simplesmente aceitar a ordem mundial dominante, que nos deixa como uma vítima fácil para as potências ocidentais.
:: Receba notícias de Minas Gerais no seu Whatsapp. Clique aqui ::
É muito significativo para mim estar no Sul Global, falando com brasileiros e pessoas que podem entender a experiência palestina, por causa de suas experiências anteriores de repressão e dominação política.
Quero dizer a vocês que ensinamos as pessoas e realizamos workshops sobre o trabalho de Paulo Freire. Nós também somos inspirados pela experiência brasileira e tomamos emprestado de intelectuais brasileiros, que nos servem na Palestina. Este é um material que espalhamos entre educadores e profissionais de saúde mental, para nos ajudar a entender nossa situação e como responder a ela.
Em uma entrevista para um portal brasileiro, você disse que "o sistema colonial israelense quer que os palestinos percam sua subjetividade como seres humanos, quer fazer deles sombras do que são". O que essa afirmação significa nos termos de um projeto político pautado na violência?
A experiência da ocupação da Palestina é uma experiência de colonialismo. É sobre apagamento do povo palestino e sua substituição por colonos.
Desde o início, era sobre expandir os palestinos para fora da geografia da Palestina e trazer colonos para tomar seu lugar. Esse processo resultou na matança de muitos. O poder militar excessivo tem sido usado ao longo de um século. É uma experiência de limpeza étnica.
Eles importaram pinheiros, por exemplo. O pinheiro não é original da Palestina. Mas o pinheiro foi importado da Europa e, por meio de Israel, ativistas doaram dinheiro para plantar pinheiros nas aldeias palestinas, para apagar a memória da presença palestina. É uma história de limpeza étnica que começou a ser implementada massivamente em 48, mas vemos até hoje a repetição das mesmas ações.
O poder militar excessivo foi usado também para acabar com indivíduos que se opusessem. Para intimidar suas famílias e toda a sociedade palestina. Eles impõem algo que chamam de lei militar, que foi criada para punir qualquer palestino que se levantasse contra o status quo. Essa punição severa resultou na detenção política de pelo menos 20% do povo palestino, torturando a vasta maioria deles.
Essa lei e essa mentalidade foram criadas para fazer de qualquer palestino que queira sobreviver uma sombra, uma pessoa que perderia sua subjetividade e aceitaria uma posição de desamparo e pararia de tentar enfrentar a situação. Esse processo foi orquestrado. A ideia era que fosse muito eficaz, mas os seres humanos não são animais de laboratório. Então, o plano não saiu como deveria. Há grupos de palestinos que não aceitam o canto do desamparo e são capazes de se opor a essa realidade. E eles resistem, usando muitas formas diferentes de resistência.
Às vezes, usando diretamente a resistência militar, mas muito frequentemente, e todos os dias, usando sua educação, sua arte, sua cultura, como formas de resistência. Estamos vivendo uma das temporadas de resistência e enfrentando a situação.
Israel e seus aliados no oeste, com os Estados Unidos e Reino Unido, principalmente, mas também mais alguns amigos no oeste, estão permitindo um enorme ataque militar aos palestinos, que pode ser considerado genocídio.
Atualmente, quais são os principais desafios na Unidade de Saúde Mental da Palestina? Como o contexto de guerra impacta a saúde mental do povo palestino?
A saúde mental dos palestinos está sendo deliberadamente visada. A ocupação é sobre matar o palestino fisicamente, em usar necropolítica para perecê-lo fisicamente, e vemos isso muito claramente agora em Gaza, por bombardeio, fome e ataque ao sistema de saúde.
É difícil matar todos os palestinos, mas, se eles matam palestinos de uma forma tão massiva e tão impressionante, os outros perderão sua saúde mental, e perderão sua subjetividade, e perderão sua capacidade de enfrentar essa realidade. E eles serão sombras vazias.
O impacto é enorme e os palestinos têm muitas maneiras de mitigar o efeito da violência política. Há muitos estudos que tentam usar indivíduos como unidades de medida para medir o impacto da violência política, mas questionei a metodologia desses estudos.
Existem alguns estudos concluindo que 70% das pessoas em Gaza sofrem de depressão e 58% das pessoas na Cisjordânia sofrem de depressão, e o problema com esses tipos de estudos, que tentam medir o impacto usando unidades de medida individuais, é que eles não contam a história toda e tendem a patologizar os indivíduos palestinos.
Podemos entender que um impacto é deliberado. É uma estratégia que não afeta apenas os indivíduos, mas afeta nossa visão de nós mesmos, nossa visão do mundo e a interconexão entre as pessoas. Afeta o tecido social.
Então, quando você priva uma nação de sua cultura, da língua, quando você a isola do mundo, quando você cria representações negativas sobre ela, como bárbaros, você pode imaginar que, novamente, isso contribui para desumanizar e criar cadáveres vazios, sombras dessas pessoas.
Há muita dor psicológica na Palestina, mas a dor psicológica não é patológica. É normal para essa realidade. E a solução não é mudar o tecido cerebral das pessoas e dar a elas medicamentos. Quando usamos a unidade de medida individual e dizemos que essas pessoas estão deprimidas, e então fornecemos a elas terapia e medicamentos individuais, estamos perdendo o quadro geral. Estamos perdendo o contexto. Acho que precisamos intervir no contexto.
Precisamos ajudar as pessoas a não ficarem desamparadas, mas a se defenderem da situação. Não é apenas um sintoma de depressão, é um sintoma de opressão.
Se você não entende o contexto, é fácil patologizar as pessoas. Não entendemos a história verdadeira e acho que muitos dos sintomas que vemos na clínica são sintomas do contexto, sintomas do que está acontecendo na realidade. Agora, por um lado, é claro, essas pessoas precisam ser apoiadas, mas não devemos patologizar suas reações. Nós as apoiamos enquanto reconhecemos que a verdadeira patologia, a verdadeira loucura, está no contexto.
Acho mais apropriado intervir coletivamente e ajudar as pessoas a processar o que passaram coletivamente. Os profissionais de saúde mental palestinos precisam ser muito sofisticados sobre essa rápida patologização dos palestinos e enfrentar a pesquisa ocidental.
De forma geral, como esse contexto deixa ainda mais vulneráveis grupos que historicamente já são vulnerabilizados na sociedade, como mulheres e crianças?
Eu acho que o sistema de repressão que está sendo usado pela ocupação de Israel é tão sofisticado e bem projetado, bem pensado, que tem especificidades de gênero. E tem como alvo palestinos mais jovens.
A adolescência é uma fase muito vulnerável da vida de uma pessoa. Normalmente, é durante a adolescência que as pessoas desenvolvem uma identidade social. Então, enquanto as pessoas estão formando sua identidade social, elas entram em confronto com a ocupação muito facilmente.
E quando os jovens são detidos, a experiência é muito difícil. Eles são informados de que os seus amigos, seus primos, informaram sobre eles. Então, esta é uma experiência que cria desconfiança em seu entorno.
Eles passaram por tortura. Eles se apresentam diante do tribunal sem nenhum adulto da família ou sem um advogado, sem um assistente social que os apoie. Eles acabam exaustos psicologicamente e assinando grandes papéis em hebraico que não entendem. Quando eles saem da prisão, não podem voltar à infância. Não podem continuar em sua vida adulta de uma forma normal.
Ouvimos também declarações terrivelmente horríveis de mulheres. As mulheres que participaram da marcha do retorno são consideradas menos femininas, ou então criam a ideia de que elas estão desonrando suas famílias. Esse tipo de fala pode provocar certos homens a criar ainda mais controle para que as mulheres palestinas não possam continuar com o seu ativismo em geral.
Quando algumas mulheres foram feitas refém, foram informadas que se elas quisessem absorventes teriam que beijar a bandeira israelense e dançar o hino nacional israelense, por exemplo.
Qual papel a mídia, e especificamente os jornais, têm cumprido na cobertura da causa palestina?
Vamos primeiro reconhecer que a mídia internacional, e principalmente ocidental, é a mídia comercial. E a mídia comercial ocidental tem desempenhado um papel cruel ao criar deturpação dos palestinos ou fazer silêncio diante das experiências dos palestinos. A mídia comercial serviu à ocupação de muitas maneiras, mas ficou claro no início deste ataque como a mídia tradicional replicou as mentiras de Israel sobre 40 bebês decapitados, estupros de mulheres israelenses, para os quais não houve nenhuma imagem ou fato produzido até agora.
O único bebê decapitado que vimos estava no último ataque em Rafah. E o último massacre que resultou na morte de 280 palestinos foi chamado pela mídia ocidental como uma operação de resgate, para resgatar o presidente israelense. Então, a mídia tem sido usada como outra ferramenta na dominação e ocupação do povo palestino. A mídia nos prejudicou em grande medida.
Agora, jornalistas e cidadãos na Palestina, meninas e meninos estudantes, que filmam certas coisas e as espalham nas mídias sociais, estão tentando desafiar essa enorme máquina da mídia ocidental. Eles estão tentando criar algum equilíbrio, e eu acho que isso é muito importante, porque em situações de guerra e opressão, a verdade é a primeira vítima. E as pessoas estão tentando declarar sua verdade.
Uma das grandes questões pautadas no congresso é a hegemonia da violência, que coloca em risco toda a estrutura protetiva internacional da dignidade humana, e o dia a dia dos profissionais de saúde mental. Como esses profissionais têm se organizado para lidar com esse cenário? A longo prazo, quais podem ser os principais impactos de lidar com essa constância da violência?
Os profissionais de saúde mental na Palestina são muito poucos. E o mesmo vale para psicólogos clínicos e enfermeiros psiquiátricos. Somos uma comunidade profissional muito pequena e estamos envolvidos no treinamento de médicos generalistas, enfermeiros, conselheiros escolares, professores e conselheiros religiosos.
Então, estamos correndo. É um número pequeno de profissionais, mas o sistema que comandamos é eficaz e temos estratégias nacionais de saúde mental, estratégia de prevenção da sociedade.
Em novembro de 2023, escrevi uma carta explicando a situação em Gaza. Eu costumava ir lá e apoiar o sistema de saúde mental e treinar pessoas. Cinco dos seis Centros Comunitários de Saúde Mental e o único Hospital Psiquiátrico foram demolidos.
E soubemos que nove dos colegas que treinei, que trabalham para o Ministério da Saúde, e outros seis que trabalham para o Centro Comunitário de Saúde Mental de Gaza, foram mortos. Todos os outros perderam familiares, seus filhos tiveram partes do corpo amputadas. Há perdas graves. Então, isso esgota a capacidade da equipe de saúde mental de fornecer uma resposta adequada.
No passado, eu costumava argumentar que um lugar seguro é um requisito básico para intervenção psicológica. Mas não há um lugar seguro para fornecer uma resposta de saúde mental em Gaza agora. As possibilidades são muito poucas e podemos imaginar que nossos colegas estão muito exaustos e vejo muitos de nossos colegas na Cisjordânia também reagindo fortemente. Não somos separados, somos uma comunidade, temos irmãos, amigos e familiares.
Outra coisa que aprendemos com a América Latina e talvez com o Brasil, que pode ser usado mais tarde, é o teatro dos oprimidos. Isso pode ser relevante para os palestinos. Quando as pessoas retornarem à segurança, isso as ajudará a ajudar pessoas com experiências indizíveis e interpretar a própria experiência.
Entrevista traduzida com apoio da psicóloga brasileira-palestina Hyatt Omar. Ela é ativista pela causa da Palestina e, por meio das redes sociais, educa as pessoas sobre orientalismo, culturas árabes, islamismo e geopolítica.
Fonte: BdF Minas Gerais
Edição: Ana Carolina Vasconcelos