Todos os dias meninas são violadas nos espaços domésticos pela família patriarcal, o espaço que, idealizado pela Igreja e pelos costumes europeus, deveria ser lar protetor.
Sabe-se, porém, que a desproteção do Estado reflete diretamente no cotidiano das famílias, uma vez que a ausência ou o desmonte de políticas públicas que garantam condições mínimas de sobrevivência comprometem o papel de cuidado socialmente estabelecido e atribuído à família.
O grande quantitativo de estupros no país se dão majoritariamente (68,3%) na residência da vítima que, de acordo com dados do Fórum de Segurança Pública de 2023 são, em maior parte (61,4%), crianças de 0 a 13 anos do sexo feminino. Isso quer dizer que, a maioria das meninas estupradas e, por muitas vezes, grávidas na infância, são fruto de crimes praticados dentro de casa.
O recorte de idade até 13 anos é importante porque é marcado pela compreensão legal de que esse é o tempo mínimo de vida considerado válido para o consentimento sexual a partir da perspectiva de seu amadurecimento, para poder exercer seu direito de escolha.
Essas meninas, em sua maioria quase absoluta, tem o direito ao aborto legal e seguro negado e dificultado, mesmo estando esse direito previsto no artigo 128 do Código Penal brasileiro desde a década de 1940.
Portanto, podemos afirmar que o direito à dignidade e à proteção integral da infância é negado a essas meninas. Elas são obrigadas pela família e/ou pelo Estado a serem mães ainda crianças por omissão na concretização de uma política pública de décadas atrás.
Embora o PL 1904/24, que tem levado milhares às ruas, atinja de forma predominante crianças, o aborto, ao contrário dos estereótipos, são também exercidos por mulheres comuns.
O aborto já ocorre de maneira recorrente entre jovens e mulheres que já são ou possuem o desejo de se tornarem mães. As mulheres que abortam são esposas, solteiras, trabalhadoras, desempregadas, de todas as regiões do Brasil, de todas as classes sociais, de todos os grupos raciais, de todos os níveis educacionais e pertencem a todas as grandes religiões do país.
Isto não quer dizer, porém, que o aborto ocorra de forma homogênea em todos esses grupos sociais. Há diferenças, de fato. As que mais morrem ou têm complicações são as com baixa escolaridade e renda, negras, pardas e indígenas, além das expressivas diferenças regionais.
No entanto, não dá para falar de legalização do aborto sem considerar o ascenso do fundamentalismo religioso no nosso país. As pautas morais defendidas por esses grupos, vinculadas principalmente aos direitos reprodutivos e à sexualidade, são bandeiras importantes que vinculam boa parte da classe trabalhadora a um projeto ao qual são a principal vítima.
Essas bandeiras que antes se manifestavam nos discursos tempestuosos de alguns pastores midiáticos ou nos grandes templos e igrejinhas de bairro, hoje, sobretudo após a gestão de Jair Bolsonaro, assumem e sustentam as suas pautas no poder Executivo e no Judiciário, como no caso desse PL.
Por isso, é uma disputa de projeto ideológico e não biomédico e muito menos jurídico, uma vez que, como já disse Debora Diniz: “o aborto é um procedimento menos arriscado para um corpo de dez anos do que o parto”.
A luta contra o PL 1904 e pela legalização e descriminalização do aborto é a luta para que muitas dessas meninas vivendo um não-lugar, a maioria delas negras e pobres, tenham o direito de serem crianças.
Lutar pela legalização é romper com a violência estatal que incide mediante omissão das autoridades médicas (e jurídicas) em garantir-lhes o acesso ao aborto legal e seguro para assegurar a dignidade das mulheres, as quais são cotidianamente revitimizadas por uma nova violência.
Para o capitalismo, dar à mulher o direito de escolher sobre sua capacidade reprodutiva é tirar do Estado (o responsável por administrar os interesses da classe dominante) o poder de decidir a quantidade de operários sobrantes, que desvalorizam a força de trabalho e garantem excedente ao capitalista.
Agora é tempo de lutar contra um retrocesso, mas também de anunciar o aborto como uma questão de saúde pública, contra a criminalização das mulheres e pela autonomia dos nossos corpos frente ao Estado, ao Capital e aos homens.
*Ana Keil é fonoaudióloga e integra a coordenação nacional do Levante Popular da Juventude
**Maria Clara Radi é assistente social e coordenação estadual do Levante Popular da Juventude
***As opiniões expressas nesse texto são de responsabilidade autoral e não representam, necessariamente, a posição do jornal Brasil de Fato Paraná
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano