“As massas são portadoras da tocha da cultura”, declarou Amílcar Cabral em seu discurso, O papel da cultura na luta pela independência, em uma reunião da Unesco em Paris, em julho de 1972. “Elas são a fonte da cultura e, ao mesmo tempo, a única entidade realmente capaz de criá-la e preservá-la, de fazer história”. Embora Cabral seja mais conhecido enquanto uma liderança do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), um pan-africanista e um agrônomo, ele também foi um poeta revolucionário. Das trincheiras, ele teorizou o papel do trabalho cultural militante na luta anticolonial. Para Cabral, a cultura era um dos quatro pilares fundamentais da resistência, ao lado da resistência política, econômica e armada. Ele a descreveu como fundamental para “a reconquista dos direitos do povo que ela representa – o direito de fazer sua própria história e o direito de dispor livremente de seus próprios recursos produtivos”. Pouco mais de seis meses após esse discurso, Cabral foi assassinado, não vivendo para ver seu país expulsar os colonialistas portugueses pouco tempo depois.
Amílcar Cabral e Patrice Lumumba participaram da Conferência do Povo Africano em Acra, Gana, em dezembro de 1958, organizada pelo primeiro-ministro ganense Kwame Nkrumah. Revolucionários de toda a África se reuniram para compartilhar estratégias de libertação nacional, liberdade econômica das potências coloniais e unidade africana. Quase dois anos depois, em 30 de junho de 1960, Patrice Lumumba, que se tornaria o primeiro-ministro da República Democrática do Congo, fez um discurso crítico ao regime colonial diante da realeza belga na cerimônia oficial de independência do país. Menos de seis meses depois, Lumumba também foi assassinado.
Da França à Bélgica, de Portugal à Inglaterra, as nações colonizadoras não estavam – e talvez ainda não estejam – prontas para permitir o direito do povo africano de fazer sua história e dispor livremente de seus próprios recursos produtivos, mesmo depois de cederem a independência formal. No entanto, como disse Cabral ao se dirigir a uma multidão na Lincoln University, nos EUA, “o povo só consegue criar e desenvolver o movimento de libertação porque mantém sua cultura viva (…) e porque continua resistindo culturalmente mesmo quando sua resistência político-militar é destruída”. A resistência cultural, portanto, não só leva a luta adiante em tempos de grande repressão, mas é a partir da “cultura das massas em revolta” que o povo obtém e preserva sua dignidade, que perdura por muito tempo após o assassinato de uma única liderança.
Esse compromisso com a cultura das massas em revolta continua vivo nos jovens ativistas congoleses de hoje. A resistência em massa dos congoleses, que se estende por séculos, é o tema central de nosso dossiê de junho de 2024, "A luta congolesa por sua própria riqueza", produzido em conjunto por nós, o Centre Culturel Andrée Blouin, o Centre for Research on the Congo-Kinshasa (Cereck) e o Likambo Ya Mabele (Movimento de Soberania pela Terrat).
Nesse dossiê, lançado no mês da independência da RDC, a cultura é uma das oito áreas que os jovens ativistas congoleses apontaram como fundamentais para a construção de um caminho para a liberdade. Além de exigir direitos à terra e autonomia econômica, eles convocam para a produção e a disseminação da cultura patriótica congolesa. Eles escrevem:
"Devemos ilustrar a visão do Congo e do mundo em que queremos viver por meio das artes, da cultura, dos esportes e de todas as atividades em que nos envolvemos, que devem ser disponibilizadas em nossos idiomas locais. Por meio da liderança coletiva, devemos desenvolver valores comuns com base na tomada de decisões inclusivas para reformar nossa cultura."
Para tornar essa visão uma realidade e elevar as duradouras lutas congolesas pela soberania nacional, nosso departamento de arte colaborou com o coletivo de artistas do Centre Culturel Andrée Blouin, em Kinshasa, para criar ilustrações originais. Com base em fotografias históricas e contemporâneas que foram pesquisadas coletivamente, as imagens criadas colocam o povo congolês como protagonista, e não como vítima, da história. Conversamos com alguns dos artistas sobre seu processo criativo coletivo.
Monsembula Nzaaba Richard, que também atende pelo nome de Monzari, é advogado por formação e um artista autodidata que criou a arte da capa de nosso dossiê n. 77. Monzari queria testemunhar a resistência dos congoleses contra a opressão e a exploração, retratando a revolta dos mineiros em Katanga, em 1941. A greve foi apoiada por famílias de camponeses e, mais tarde, transformou-se em um motim de soldados contra a Force Publique [Força Pública], ou o exército colonial. Naquela época, somente os brancos podiam ter carros e os trabalhadores congoleses eram relegados à mineração do estanho que produzia esses carros. Nesse momento de ruptura, os trabalhadores exigiram o direito de possuir automóveis, produzidos com o próprio estanho que extraíam. Em outras palavras, eles exigiam a propriedade dos frutos de seu trabalho.
Ecoando a obra Liberty Leading the People (1830) [A liberdade guiando o povo], do artista francês Eugène Delacroix, Monzari descreve o trabalho: “No centro, uma mulher destemida, usando um lenço simbólico, segura orgulhosamente a bandeira da RDC em uma das mãos e uma picareta na outra, simbolizando a força e a determinação dos trabalhadores. Ao lado dela, dois homens vigorosos ficam de guarda, prontos para defender a causa da revolta”. A trabalhadora está liderando a revolta, enquanto os mineiros emergem do fundo em silhueta – um poço de mina no formato da RDC. Para Monzari, o coletivo de artistas tem como objetivo promover a arte e a cultura africanas e apoiar artistas emergentes, pois eles acreditam firmemente que “a arte é uma ferramenta poderosa para educar, inspirar e unir comunidades”.
“Passamos muito tempo em grupo discutindo os temas e as mensagens que queríamos transmitir por meio de nossas obras de arte”, compartilha Julienne Masaka Mayangi, outro membro do coletivo, que descreveu como o estudo coletivo e animados debates foram uma parte central de sua colaboração. Ela elaborou mais:
"Um dos aspectos mais importantes de nossa colaboração foi a troca de ideias e a busca coletiva por símbolos fortes que representassem nossa história e nossas aspirações. Discutimos amplamente a importância da história e da memória coletiva, e como esses elementos podem inspirar os jovens a se levantarem e defenderem seus direitos."
Essa recuperação da memória histórica é fundamental para a batalha de ideias e para a batalha pelos corações e mentes da juventude congolesa de hoje, que já está há mais de seis décadas longe dos dias de Lumumba e da luta pela libertação nacional. Discutimos essa luta pela memória com Lubangi Muniania, historiadora de arte africana especializada em artes visuais e cênicas e ex-diretora do departamento de educação do Museum for African Art, em Nova York. Muniania, conselheira de longa data do coletivo de artistas do Centre Culturel Andrée Blouin. Ela nos disse que:
"A história geralmente é extraída de um conjunto de memórias para traçar uma linha bem coordenada para elevar um povo e sua nação. Entretanto, os jovens da RDC constituem a maioria da população e não sabem muito sobre os aspectos positivos da história de nosso país. Eles também não sabem como usar o conhecimento histórico a seu favor. A velha mentalidade colonial parece voltar por causa da falta de conhecimento histórico positivo."
De acordo com Muniania, como resultado dessa falta de enraizamento cultural, os jovens são atraídos pela “cultura do bling-bling”, que por meio de “filmes, videoclipes e mídias sociais [mantém] uma forte influência. Portanto, há pouco incentivo para que eles se orgulhem de sua criatividade e identidade. Por exemplo, a autoimagem coletiva de nossa nação foi destruída pela máquina de propaganda da mídia ocidental. As pessoas acreditaram nisso, o que as deixou confusas e sem respostas”.
Para Muniania, a exploração mineral como uma continuação do colonialismo tem consequências não apenas para a terra e a soberania nacional, mas deixa marcas prejudiciais na psique e na cultura congolesas. “O colonialismo destruiu grande parte das tradições congolesas, impôs o trabalho forçado, promoveu alguns grupos étnicos e cores de pele em detrimento de outros e privilegiou certas raças. Promoveu repetidamente religiões e idiomas estrangeiros, de modo que, até hoje, a visão de mundo da psique congolesa ainda é europeia. Parece que a guerra mineral (…) reforça a inferioridade congolesa”.
No entanto, ele acrescentou que “os congoleses são muito resistentes, eles sentem e sabem quando são levados ao limite”. Durante todo esse processo de orientação dos artistas na produção das obras de arte para o dossiê, uma palavra se destacou para ele: “resistência”, um conceito e um ato que definiu o povo congolês.
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Caso não tenha visto, você pode ver algumas das produções do nosso departamento de arte na Galeria de pôsteres em solidariedade às mulheres palestinas, como a arte da capa de Izimpabanga Zomhlabaa, primeira tradução isiZulu de Os condenados da terra, de Frantz Fanon, feita pela Inkani Books, e na exposição Rosa: Revolução ou Barbárie, na Cidade do México.
Como parte de nossas comemorações mensais do Dia do Livro Vermelho, no dia 21, tivemos o prazer de compartilhar a criação de Gabriela Barraza, inspirada no livro Defensa del marxismo [Defesa do marxismo], do marxista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930). Barraza é afiliado à Escola José Carlos Mariátegui. Esse livro de referência foi um dos primeiros a introduzir uma concepção materialista da história a partir de uma perspectiva indígena nas Américas. Para Mariátegui, transformar o marxismo em uma teoria revolucionária no Peru e nas Américas não poderia ser “nem imitação nem cópia, mas uma criação heroica”. Da mesma forma, a luta do povo congolês por suas próprias riquezas e destinos continua a ser uma criação heroica, constantemente revivendo e gerando culturas das massas em revolta.
*Tings Chak é diretora de arte do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato
Edição: Lucas Estanislau