Dinheiro público

Benefício que aumenta salário de magistrados em até 33% já custou mais de R$ 284 milhões

Penduricalho de 2023 permite que remuneração de magistrados possa furar teto antes do Congresso votar regra de reajuste

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Sede do CNJ, em Brasília - Gil Ferreira/Agência CNJ

Enquanto o Congresso não decide sobre a proposta de aumento de 5% do salário do topo do funcionalismo público a cada cinco anos de serviço, os magistrados criaram mais um penduricalho que infla seus contracheques. A partir de uma resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a categoria implementou em outubro do ano passado a licença compensatória: uma gratificação que dribla o teto constitucional e tem turbinado a remuneração de juízes e desembargadores em até um terço. 

Um levantamento da ONG Transparência Brasil a pedido da Agência Pública mostra que o benefício já consumiu pelo menos R$ 284 milhões dos cofres públicos até maio deste ano. As informações obtidas em 27 órgãos estaduais e federais do Judiciário ainda são subnotificadas, conforme alertou a diretora executiva da Transparência Brasil, Juliana Sakai. 

“Há uma falta de padronização nos dados. Só consideramos no levantamento o que vem carimbado no contracheque explicitamente como licença compensatória, mas ela pode estar incluída em outras categorias”, explicou. Segundo Sakai, a organização identificou mais de 2 mil categorias diferentes, ou seja, “dados com nomes diferentes”. “Na prática, a gente não consegue fazer um mapeamento completo, e isso prejudica a transparência”, observou. 

O benefício garante aos magistrados que acumulam funções administrativas ou “processuais extraordinárias” um dia de descanso ou compensação financeira a cada três dias de trabalho. Em um mês, eles podem tirar até dez dias de folga ou receber o valor desse período como indenização. O limite é de 120 compensados por ano. A categoria tem direito também a até dois meses de férias anuais, podendo converter parte delas em dinheiro. 

Como o penduricalho tem caráter indenizatório, ele não incide no Imposto de Renda e não está sujeito ao teto constitucional, que é vinculado ao subsídio dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), no valor de R$ 44 mil. A Transparência Brasil identificou que, além do aumento da remuneração líquida média, que pode chegar a até R$ 14,7 mil por mês, com a nova gratificação, mais magistrados passaram a ganhar acima do teto. 

No Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), por exemplo, os supersalários saltaram de 874 em agosto de 2023 para 933 em setembro do mesmo ano – quando a licença compensatória começou a ser paga. No último mês, esse número cresceu para 1.059. 

Informações publicadas pelo professor da Fundação Dom Cabral Bruno Carazza no livro O país dos privilégios mostram que, em 2022, 94,8% dos juízes e desembargadores tiveram um rendimento líquido superior ao dos ministros do STF e em 2023 foram 93%. “Às vezes, um juiz no início de carreira, por causa desses penduricalhos, ganha mais do que o ministro do Supremo. É uma subversão, inclusive, da ordem lógica das coisas”, ressaltou. 

Ele avalia que “é necessário acabar com a possibilidade de se criar benefícios com a classificação de verbas indenizatórias”. “Isso é um caminho para você furar o teto. Precisamos recuperar a autoridade do teto, ele tem que ser cumprido e não pode ser ultrapassado”, acrescenta Carazza, cuja obra mostra ainda que de 2018 a 2023 foram pagos R$ 39,8 bilhões em penduricalhos.

A Resolução 528/23 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) abriu caminho para que o Judiciário de todo o país adotasse a licença compensatória. A norma assinada em 20 de outubro de 2023 pelo presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, reeditou uma resolução de 2011 do conselho que já garantia aos juízes e desembargadores os mesmos “direitos” dos procuradores e promotores. 

Dois tribunais de justiça, o de Mato Grosso do Sul (TJMS) e o do Paraná (TJPR) se anteciparam ao CNJ e concederam o benefício antes mesmo da publicação da resolução. Entre os 27 órgãos analisados pela ONG Transparência Brasil, o TJPR também se destaca por ser o que mais gastou com a licença compensatória até o momento: ao todo, foram R$ 98,7 milhões.

A aprovação da resolução ocorreu em meio à discussão no Senado da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 10/2023, que estabelece um adicional de 5% do salário a cada cinco anos para a elite do funcionalismo, que inclui os magistrados. A PEC do Quinquênio, como ficou conhecida, foi retirada de pauta após a tragédia do Rio Grande do Sul.


Resolução do CNJ assinada pelo ministro Luís Roberto Barroso dribla o teto constitucional / Felipe Sampaio/STF

Ganha-ganha com dinheiro público 

A norma do CNJ permitiu que os órgãos do Judiciário replicassem a licença compensatória adotada pelo MP em janeiro de 2023. 

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) já havia garantido o benefício baseado no bônus pelo exercício cumulativo, criado pelo próprio Judiciário em 2020, mas o valor era uma gratificação, parte do salário, ou seja, sujeito à regra do teto. 

O que gerou o efeito cascata de aumento nos contracheques das duas categorias foi o fato de que, ao adotar a licença compensatória em forma de indenização, o MP não considerou a obrigação de o pagamento ser parte do salário e ficar dentro do limite remuneratório estabelecido pela Constituição. 

O Judiciário entendeu estar em “desvantagem” e também transformou o benefício em verba indenizatória. Ou seja, a gratificação passou a ser paga aos magistrados livre de descontos, ou como dia de descanso. 

Se monitorar os gastos do Judiciário é uma tarefa hercúlea devido à falta de padronização dos dados, a mesma missão em relação ao Ministério Público, segundo a diretora executiva da Transparência Brasil, seria ainda mais desafiadora, uma vez que o CNMP não disponibiliza, em uma única base de dados a informação dos salários dos procuradores e promotores. “Não há dados abertos para o MP. O trabalho da sociedade civil fica infinitamente maior. O que nos permite dizer que o Ministério Público é um órgão super ‘opaco’”. 

“Essa arte, esse truque, esse ilusionismo de converter verbas adicionais da remuneração em verbas indenizatórias é o grande pulo do gato. Desta forma, não só multiplicam ao infinito a remuneração dessas carreiras de forma fraudulenta e desonesta – porque chamam de indenização o que é uma remuneração –, mas, ainda por cima, sobre essa remuneração não incidem impostos. Então é profundamente ilegal isso”, ressaltou o professor de direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP) Conrado Hübner. 

Segundo ele, “não há nenhum lugar da Constituição que está sendo dito que a simetria entre as carreiras implica dever de absoluta igualdade remuneratória”. “É um salto interpretativo deles. Claro que lhes interessa afirmar isso, normalizar isso e dar isso como um argumento inquestionável. Mas, se for assim, então, ministérios públicos e judiciários do país inteiro, estadual e federal, deveriam ganhar o mesmo salário.” 

Em nota, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) defendeu que a resolução do CNJ “apenas garantiu a equiparação de direitos e deveres entre membros da magistratura e do Ministério Público, em conformidade com o que determina a Constituição”. O CNJ não respondeu aos questionamentos da Pública sobre o assunto.


TCU sugeriu a interrupção do pagamento do benefício, mas foi ignorado

Técnicos do TCU apontaram indícios de irregularidade


Após a resolução do CNJ, o Conselho da Justiça Federal (CJF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT) editaram suas próprias normas e tornaram o pagamento da gratificação por acúmulo de serviço um benefício que foge do teto, em um efeito cascata que repercutiu na Justiça Estadual. 

De acordo com a resolução do CJF, têm direito a esse benefício magistrados que dirijam escola de magistratura ou fórum federal, coordenem conciliação, sejam conselheiros dirigentes de associação, integrem ou auxiliem a cúpula dos Tribunais Regionais Federais, entre outros.

O penduricalho foi estendido também para os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), uma vez que, segundo a Constituição, eles têm equiparação de prerrogativas e direitos com os membros do STJ. 

Conforme mostrou a Folha de S.Paulo, um parecer da Unidade de Auditoria Especializada em Pessoal do TCU sugeriu a interrupção do pagamento do benefício, mas foi ignorado pelos ministros da corte.  

A área técnica do órgão constatou a existência “de robustos indícios de irregularidades” e chamou o pagamento de “peculiar” e “totalmente desproporcional”. Segundo os técnicos, a medida tem potencial de representar um dano de cerca de R$ 865 milhões ao erário.

Apesar disso, o relator do processo, ministro Antonio Anastasia, pediu o arquivamento do caso. Ele foi acompanhado pelos demais ministros.

Edição: Ed Wanderley