O Santo Daime é uma religião tipicamente brasileira
Por Caroline Apple*
Há quem diga que o Santo Daime é apropriação cultural. Há quem diga que é a "caboclização" do cristianismo. Mas, independente de que lado você está nessa discussão, é inegável que essa doutrina que tem como fundamento a consagração da ayahuasca pode servir de ponte para uma conexão com a floresta que muitos de nós que vivem em centros urbanos talvez nunca tenham a oportunidade de ter. E assim foi comigo.
Acabei de voltar de uma rápida e intensa imersão em comunidades tradicionais daimistas no Acre. Lá pude constatar mais uma vez a potência das religiões ayahuasqueiras como um grande portal de acesso à luta dos povos indígenas e da floresta em pé, além do encontro de um conforto sobre contornos da identidade brasileira.
Meu trabalho como jornalista sempre foi voltado de alguma maneira para as questões relacionadas aos direitos humanos. Como uma população em estado de vulnerabilidade, os indígenas estavam contemplados dentro dos meus ideais e lutas, porém, o verdadeiro interesse, intensidade e confluência se apresentou para mim através do Santo Daime. Há sete anos troquei viagens "convencionais" para me adentrar na Floresta Amazônica acreana, visitando e me envolvendo com os povos indígenas e as comunidades tradicionais daimistas.
Nesses ambientes eu pude ter a oportunidade de conhecer um pouco de algumas culturas e espiritualidades pindorâmicas e também aquelas genuinamente brasileiras, que nos enche de tristeza diante da diáspora africana e do genocídio dos povos indígenas, mas também de alegria com a riqueza, coragem e resiliência de um povo que conseguiu bravamente manter sua cultura presente de alguma forma, mesmo diante das violências como aquelas promovidas pelas religiões judaico-cristãs. Não se trata de romantizar um ato de sobrevivência, e sim de reverenciá-lo, porque, gostemos ou não, essa é nossa história e as referências de quem somos estão aqui e são fruto de toda essa complexidade que é viver em um país que foi invadido e colonizado.
O Santo Daime é uma religião tipicamente brasileira que tem a ousadia de propor a ressignificação de signos cristãos e tem como referência de conduta não a Bíblia, mas sim a consciência de cada um através da disciplina e respeito aos ensinamentos "enviados" pela espiritualidade através da ayahuasca. Os hinos nos convidam a "replantar" as ideias tortas cultivadas por anos pela igreja numa nítida luta desigual por poder. Algumas palavras fortes do cristianismo também aparecem, como o pecado e o sofrimento de quem peca, porém, assim como uma hermenêutica atualizada da Bíblia é muito bem-vinda, os hinos também carecem desse olhar para que não se cometa anacronismo.
O Daime foi a maneira mais incrível que eu encontrei de voltar a me relacionar com os ensinamentos de Cristo, como o amor, o perdão e a união, e a espiritualidade cristã sem me sentir maculada pelas atrocidades cometidas pelas instituições. É a chance de colocar a espiritualidade cristã no lugar dela: como mais uma espiritualidade em meio a tantas outras e nunca como a única verdade, porque não é. É a hora de congregar com uma religião que nasceu a partir da união de saberes indígenas e de um homem preto maranhense, que já trazia consigo como verdade a espiritualidade cristã e seus signos, mas incorporou os encantados em seus hinos e outras referências de sua terra que fazem parte da construção da identidade religiosa brasileira. Se olhar de perto, é tudo que a igreja tradicional combate há séculos: minorias, outras religiões e substâncias.
A questão patriarcal está presente em todas as estruturas sociais, e no Daime não é diferente. Entretanto, em sua essência, o papel da mulher é fundamental, porque é a única religião que tem a figura de uma mulher, a Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta, como patrona, sendo a força mais exaltada dentro da doutrina.
É verdade que as igrejas de linhas do daime ou independentes que estão espalhadas pelo Brasil e pelo mundo precisam criar maneiras de manter os guardiões dessa medicina presentes dentro da doutrina, mas é verdade também que o Santo Daime já é uma ponte para a floresta e suas demandas, magias, forças e mistérios independente de qualquer coisa, basta querer, assim como eu um dia quis e aqui estou.
*Caroline Apple é jornalista há quase 20 anos com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil, abordando, principalmente, temas relacionados aos Direitos Humanos, como a causa indígena. É uma das primeiras jornalistas no país a se especializar na cobertura de cannabis para fins medicinais. Daimista, ayahuasqueira e psiconauta, Carol é influenciadora digital sobre temas relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento com ênfase no uso da ayahuasca em contexto urbano.
**Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Thalita Pires