O colonialismo estético destrói a presença das nossas cuias, das nossas cerâmicas, das nossas folhas
No imaginário da população brasileira, sair para jantar em um lugar caro, muitas vezes, remete a um restaurante onde será apresentado um menu com refeições descritas em palavras estrangeiras e o prato em si terá ingredientes diferentes do feijão, arroz e farinha de mandioca. Dentro da cozinha, o chef estará com seu chapéu toque blanche, gritando com os colegas enquanto labaredas sobem do fogão.
É um cenário bem diferente de como a ativista indígena Tainá Marajoara aprendeu a cozinhar, ao lado de sua mãe, em Belém do Pará. No entanto, para ela, o que mais diferencia esses dois ambientes é a origem dos alimentos que estão sendo servidos nestes locais.
"Quando você está buscando falar de gastronomia sustentável, você está falando da questão dos circuitos para o alimento ao sair da ponta e chegar na outra, as formas de produção, os modos de produção, os modelos de produção. É uma outra perspectiva, que não é simplesmente essa do exibicionismo técnico e elitista", afirma em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (3).
Membra do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Tainá Marajoara administra desde 2009 o ponto de cultura alimentar Iacitata Amazônia Viva. A ativista defende que a consolidação desse imaginário europeu sobre a nossa alimentação é um elemento do racismo alimentar.
"Esse colonialismo estético destrói a presença das nossas cuias, das nossas cerâmicas, das nossas folhas. Isso tudo é a presença do imperialismo na cozinha. E aí a gente sai da gastronomia sustentável para o imperialismo gastronômico".
Para a cozinheira, discutir gastronomia sustentável significa pensar em toda a cadeia produtiva do alimento, investigando de que maneira aqueles recursos foram extraídos e sob quais condições.
"A gastronomia sustentável versa também sobre a garantia de direitos, entre o direito humano à alimentação e nutrição adequadas e também à não precarização do trabalho", diz. "Isso é diferente do que se vê muitas vezes nos espaços, não só de restaurantes caros, como também de toda cadeira produtiva do agronegócio."
"Gastronomia sustentável não é quando te entregam um prato com uma formiguinha muito bem torradinha, com uma farinha apimentada... Não é isso. Tem a ver com um processo, toda a cadeia, o que estávamos falando sobre o circuito do alimento, de onde ele vem e como ele vem", afirma.
"E aí são utilizados termos como herança, de que a gastronomia reconhece a herança dos povos indígenas na cozinha para isso. Não é herança, herança deixa a quem está morto e a nossa cozinha está viva."
Confira a entrevista na íntegra
Como devemos entender o conceito de gastronomia sustentável?
A gastronomia sustentável pode ser entendida de diversas formas, não só no âmbito daquele restaurante do homem branco, sudestino, com seu chapéu toque blanche gigante em cima da cabeça.
É uma imagem de uma comida completamente higienista, praticamente estéril e extremamente técnica, onde o ingrediente acaba sendo uma grande estrela somado ao exímio saber executar das técnicas criadas no hemisfério norte.
Quando você está buscando falar de gastronomia sustentável, você está falando da questão dos circuitos para o alimento sair da ponta e chegar na outra, as formas de produção, os modos de produção, os modelos de produção, numa outra perspectiva que não é simplesmente essa do exibicionismo técnico e elitista.
No entanto, a intenção de transformar a gastronomia é sempre algo muito elitista, muito distante da realidade. Também é uma forma de provocar um ilusionismo aos olhos daqueles que buscam essa alimentação.
Porque esse padrão branco do hemisfério norte acaba sendo colocado como uma métrica para que as nossas cozinheiras e cozinheiros originários e camponeses se espelhem nessas práticas; para que essas cozinhas periféricas se espelhem nessas práticas e tenham uma questão estética referencial daquilo que destrói a sua própria cultura.
Esse colonialismo estético destrói a presença das nossas cuias, das nossas cerâmicas, das nossas folhas. Isso tudo é a presença do imperialismo na cozinha. E aí a gente sai da gastronomia sustentável para o imperialismo gastronômico.
A destruição da cultura é uma destruição estética, é uma destruição política, é uma destruição identitária e uma ruptura imediata de vínculo territorial que é aquilo que mais está se buscado pelo setor da indústria de alimentos e do agronegócio.
Se nós formos pensar, é muito importante também o papel da mulher nesse sentido, porque somos nós, mulheres e cozinheiras, que estamos na frente da valorização e do reconhecimento.
É necessário que seja reconhecido em todo o processo a presença da mulher, não só aquela chefe cozinheira, mas também aquela que está no campo, na luta pela reforma agrária, na demarcação de terras.
Quando pensamos gastronomia ou gourmet nosso imaginário nos leva pra imagem do Ratatouille. Isso é racismo alimentar?
Tu acabou de trazer um exemplo para a gente, o Ratatouille. É um exemplo francês que faz parte exatamente desse imaginário, de que a excelência vem de lá. Nunca é um cocar, nunca é um turbante, né?
Nunca são os nossos utensílios, nunca é o tipiti, nunca é arupemba, vai ser sempre um fouet, vai ser sempre uma outra coisa com o nome que a gente desconhece na nossa realidade.
Isso também é reconhecer que existe o racismo alimentar. Porque, quando se fala do racismo alimentar, a gente não está falando só da exclusão do alimento da boca da pessoa negra ou indígena.
O racismo alimentar acontece quando você associa, por exemplo, um alimento indígena a algo primitivo, sem tecnologia, muito simples e sem técnica.
E isso vai acentuar o outro erro que está no conceito de gastronomia sustentável. Gastronomia sustentável não é quando te entregam um prato com uma formiguinha muito bem torradinha, com uma farinha apimentada... não é isso.
Tem a ver com um processo, com toda a cadeira, o que estávamos falando sobre o circuito do alimento, de onde ele vem e como ele vem.
E aí são utilizados termos como herança, de que a gastronomia reconhece a herança dos povos indígenas na cozinha para isso.
Não é herança, herança deixa a quem está morto e a nossa cozinha está viva.
Então, quando se fala de uma gastronomia sustentável, tema do dia 18 de junho, estabelecido pela [Organização das Nações Unidas] ONU, ela versa também sobre a garantia de direitos, entre o direito humano à alimentação e nutrição adequadas e à não precarização do trabalho.
Isso é diferente do que se vê muitas vezes nesses espaços, não só em restaurantes caros, como também em toda cadeira produtiva do agronegócio.
E tem a ver com quantidade também, né? Não é à toa que esse pratos glamourizados trazem pouco comida, certo?
São formas de manutenção de poder, manutenção de poder e da dominação. Então, isso é uma presença explícita do colonialismo também no processo alimentar.
Por exemplo, nas práticas de distribuição de alimentos. Quando é jogado diretamente para a população empobrecida de povos originários e comunidades tradicionais, especialmente que não tem dinheiro, os ultraprocessados.
Então, se hoje um chefe de cozinha consegue vender um menu de degustação acima de mil reais, é porque existe o mestre, uma guardiã comercializando seu alimento em um outro custo, mais baixo, tendo seu trabalho precarizado e explorado.
E isso faz parte também desses espaços brancos, colonialistas, especialmente sudestinos, onde se diz "nós vamos salvar a Amazônia, nós estamos reconhecendo o valor da cultura nordestina, nós reconhecemos o valor da cozinha caipira e trouxemos para cima da mesa”.
Não é disso que a gente está falando. A gente está falando de uma necessidade urgente primordial de descentralização, de ruptura de poderes e de queda do patriarcado, de quebra do capitalismo.
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Edição: Martina Medina