O Brasil assistiu nas últimas semanas a uma grande e improvável mobilização de mulheres contra retrocessos na legislação do aborto legal, uma conquista vigente desde a década de 40, do século passado. Improvável porque a direita vem dominando a chamada “pauta de costumes” no Brasil já há alguns anos. E o debate sobre aborto virou tabu, com os setores populares se esquivando por que a sociedade brasileira, segundo dizem, é conservadora.
Confiando nesse suposto conservadorismo, o presidente da Câmara colocou em votação a urgência do PL 1409/2023, aprovado sem conversa, em menos de 30 segundos. Seu conteúdo basicamente criminaliza mulheres que têm direito ao aborto legal. Se o fizerem depois de 22 semanas, podem ser condenadas a pegar até 20 anos de prisão, enquanto a legislação prevê a pena de, no máximo, 10 anos para quem for condenado por estupro. Ou seja, se aprovado esse projeto, poderíamos ter um condenado por estupro cumprindo pena de 10 anos e a mulher estuprada, caso tenha conseguido fazer o aborto só depois de 22 semanas, presa por 20 anos. Seu “crime” seria maior do que o dele. Isso diz muito sobre a característica do Congresso brasileiro, com baixíssima representação de mulheres e da população mais pobre.
No Brasil, têm direito ao aborto legal as mulheres vítimas de estupro, as que gestam fetos anencéfalos e quando a manutenção da gravidez traz risco de morte para a mãe. Alguns dados nos ajudam a entender a gravidade desse projeto. O Atlas da Violência 2024 mostra que crianças de zero aos nove anos correspondem a 30% das vítimas de violência sexual. A faixa dos 10 aos 14 anos representa 49,6% dos casos. Ou seja, a grande maioria das vítimas de abuso sexual são crianças de até 14 anos de idade.
Crianças e adolescentes negras são 40% dos casos de estupro registrado, o dobro da incidência em comparação com as meninas brancas, segundo pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper, com números do Sistema Nacional de Atendimento Médico do Ministério da Saúde.
Em âmbito nacional são poucos os hospitais que prestam o serviço de aborto legal. Não raro, a vítima de estupro que não deseja levar adiante a gravidez ou a gestante que corre risco de morrer precisa recorrer aos tribunais para garantir esse direito; e depois encontrar um serviço de saúde que se disponha a realizar o procedimento.
Apenas 1,8% das cidades brasileiras têm unidades de referência para serviço de aborto legal. Isso significa que em todas as demais, para garantir um direito, a mulher, menina ou criança precisa se deslocar para outro município. Com que dinheiro? As dificuldades são imensas.
Outro aspecto é que pode não ser fácil identificar a gravidez. Crianças e meninas de até 14 anos (79% dos casos) podem não saber que estão grávidas e só descobrirem depois de 22 semanas, muitas vezes porque a mãe ou outro familiar percebe. É justo obrigar crianças em situação de vulnerabilidade a levar adiante a gravidez?
As mulheres brasileiras e a população em geral responderam nas ruas que não é justo obrigar uma mulher vítima de violência sexual a levar adiante uma gravidez, ainda mais se for uma criança ou adolescente.
O Congresso brasileiro sentiu o golpe e o presidente da Câmara jogou para o segundo semestre a decisão sobre o projeto. Prometeu debate sobre o assunto, apesar de ter sido aprovada a urgência e não precisar passar pelas comissões da Câmara. Mas ainda é pouco.
Os movimentos de mulheres e a sociedade organizada exigem o arquivamento do PL 1904/2023, porque “criança não é mãe e estuprador não é pai”. A sociedade mostrou que não aceita mais esse retrocesso.
* Solange Caetano é presidenta da Federação Nacional dos Enfermeiros (FNE).