A produção do algodão agroecológico no Brasil, a construção tecnologias de convivência com o semiárido como as cisternas de captação de água das chuvas, o cultivo de hortas em mandala, entre outras, são práticas já bastante difundidas pelos movimentos populares que se tornaram políticas públicas.
Nessa trajetória, o Esplar – Centro de Pesquisa e Assessoria, organização não governamental cearense, foi fundamental para difusão desses aprendizados. Este ano, a ONG completa 50 anos de atuação dedicados ao fortalecimento da agricultura familiar, a promoção da agroecologia e a defesa dos direitos das mulheres no semiárido cearense. Para conhecer mais sobre essa história conversamos com Magnólia Said, advogada, feminista, educadora popular e técnica da entidade.
Brasil de Fato Ceará: O que é o Esplar?
Magnólia Said: O Esplar foi fundado em 1974 como um escritório de planejamento rural, e somente em 1984 ele se constituiu como uma organização não governamental (ONG), com atuação intensiva em algumas regiões do estado, como a região dos Inhamuns, em Crateús; Sertão Central; Sertões de Canindé; regiões de Sobral; Vale do Jaguaribe; e Região Metropolitana de Fortaleza.
Nós começamos trabalhando com pesquisa, avaliações socioeconômicas e assessorias sindicais a trabalhadores e trabalhadoras rurais, e entidades ligadas à Igreja Católica, encampando as lutas dos agricultores familiares, como a luta pelo pagamento da renda da terra, de acordo com o Estatuto da Terra, e, há alguns anos, estamos trabalhando com a pauta indígena também.
Além disso, também atuamos no desenvolvimento de sistemas agroecológicos; na promoção da igualdade de gênero com enfoques feministas de classe; na justiça ambiental e qualidade de vida; na qualidade da água e defesa da biodiversidade; e no enfrentamento a discriminação de raça, etnia e orientação sexual.
A partir desses fatos, a nossa atuação política e pedagógica está centrada no desenvolvimento de alguns tipos de projetos relacionados, em especial, à tecnologia de captação de água de qualidade; a consórcios agroecológicos, colocando o algodão no comércio justo relacionado ao manejo de sementes crioulas, fortalecendo e incentivando a formação de casas de sementes comunitárias; à implantação de quintais produtivos; à educação ambiental nas escolas; ao enfrentamento à violência contra a mulher, por meio de processos formativos.
Este ano, o Esplar completa 50 anos. O que todos esses anos representam?
A primeira coisa é que o Esplar sempre teve um lado, o lado dos povos do semiárido e dos territórios indígenas. Por isso, nós sempre trabalhamos para efetivar direitos e conquistar novos direitos para o nosso público. O Esplar vem de um período em que os temas que se trabalham hoje, sustentabilidade, agricultura de baixo carbono, resiliência, mitigação, conceitos que foram incorporados pela academia, nós já trabalhávamos esses conceitos, talvez com outros nomes, desde sempre, e isso demonstra que sempre estivemos no rumo certo, tentamos evitar os desastres na natureza e na vida das pessoas através do nosso trabalho.
Como o Esplar atua nesses territórios?
Nosso trabalho sempre reconheceu o território na sua integralidade, valorizando dinâmicas próprias do território. A agroecologia trabalha toda a dimensão de um território onde está sendo desenvolvida. A gente chega nos territórios com o saber acadêmico e reconstruímos esse saber a partir do conhecimento que já se tem, a partir do conhecimento que as populações têm, que é parte da pedagogia de Paulo Freire. A gente só chegou nesses 50 anos porque tivemos aceitação e participação de famílias de agricultores e agricultoras pautadas nessa pedagogia, e também porque tivemos desde o início apoiadores que acreditaram e que acreditam ainda hoje nos processos propositivos do Esplar e nas mudanças que poderiam advir desses processos.
Dentro desse bojo da atuação, é importante registrar a construção de um centro de treinamento em agroecologia em 1987, no município de Quixeramobim, com o apoio de uma cooperação internacional. E qual foi o objetivo da criação desse centro? Era uma casa grande com espaço para plantio, lazer, aulas, mas que também possuía espaço para dormir e para alimentação. Esse centro era utilizado para testar a aplicação de tecnologias alternativas com a realização de cursos de formação, treinamentos, realização de resgate de conservação de sementes crioulas, além de promover intercâmbios com instituições e pessoas, tanto do estado do Ceará, como de outros estados, além de pesquisadores de outros países que ouviam falar no Esplar e vinham conhecer nosso trabalho.
O Esplar tem um trabalho muito voltado para agroecologia, agricultura familiar e para o direito das mulheres. Para além de todas as bandeiras de luta que existem, quais são as principais pautas dessas temáticas que o Esplar atua?
Eu queria enumerar algumas como principais. O algodão agroecológico é uma delas. O Esplar é vanguarda no tema da agroecologia. O nosso trabalho colocou o Brasil nas estatísticas mundiais a partir dessa atuação no estado do Ceará, com o algodão orgânico, começando em Tauá pelo grupo de agricultores que nós assessoramos e continuamos assessorando até hoje, que é a Associação de Desenvolvimento Comunitário (ADEC).
No início quem apoiava essa produção de algodão eram, principalmente, as cooperativas internacionais, mas foi a partir das políticas públicas, como a PDHC [Projeto Dom Helder Câmara], que esse trabalho se ampliou e possibilitou, por exemplo, a produção de algodão agroecológico em grande escala, sendo possível o fornecimento para grandes parceiros, como a Veja Fair Trade, que chegou até o Esplar a partir de registros e matérias nacionais, e escolheram o Esplar para ser o foco da intervenção deles, através do investimento de recursos em projetos sustentáveis.
Outra parceira nossa foi a Ajusta Trama, cooperativa de mulheres costureiras no Rio Grande do Sul que se organizou para comprar o algodão desde o ano de 2004, antes da Veja, e transformar esse algodão em roupas. Infelizmente, com essa catástrofe, as mulheres costureiras perderam suas produções, mas não perderam o galpão onde estocavam esse algodão.
Outro foco do nosso trabalho é em relação aos organismos transgênicos. Aqui no estado somos vanguardas no monitoramento da transgenia, tanto do algodão como do milho. Até hoje, realizamos testes em sementes que sempre apontam positivo, principalmente aquelas sementes no início de Canindé e Tauá, dos municípios que não adotaram uma política alinhada com o agroecológico. E qual a questão? Esses testes são caros e quase ninguém quer apoiar, apesar de importante. Mas seguimos insistindo na importância de realizar os testes de transgenia, porque, por exemplo, a proliferação dos transgênicos fragilizou o Código de Defesa do Consumidor de uma forma impressionante. E aí você vê a legislação dizendo que um produto de origem transgênica deve conter um ‘T’ na embalagem, mas nem sempre a gente presta atenção.
Ainda nesse campo da transgenia, o Esplar foi promotor, junto com várias outras organizações, da Campanha Nacional por um Brasil Livre de Transgênicos, em 1998, que teve apoio também de algumas agências internacionais. E aqui nós lançamos a campanha, realizamos a produção e a divulgação de material em todos os lugares, fomos às escolas construir espaços formativos e de capacitação para crianças e pré-adolescentes, realizamos ações de intervenção em supermercados e restaurantes no centro da cidade. E por fim, realizamos o primeiro tribunal popular para julgar os transgênicos, tribunal nacional que teve uma repercussão enorme aqui no Ceará, porque nós chamamos pesquisadores da Embrapa, acadêmicos e trabalhadores e trabalhadoras rurais.
O Esplar é também vanguardista no Projeto Um Milhão de Cisternas e Placas desde os anos 2000, e esse trabalho vem sendo feito junto à Articulação do Semiárido Nacional (ASA) e as instituições que compõem a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Todo esse trabalho em conjunto é para que possamos avançar nessa questão do direito à água como uma grande estratégia de convivência no semiárido, que é a estocagem de água e de alimentos.
A terceira pauta fundamental para o Esplar é o trabalho com as mulheres, trabalho esse que se tornou uma das nossas maiores prioridades, quando atuamos junto a mulheres rurais, mulheres indígenas, mulheres periféricas no campo da formação sobre os temas em geral do desenvolvimento, os temas da macroeconomia, no campo da produção de material didático também, muito focado na questão da violência contra a mulher.
Além disso, realizamos ainda trabalhos de tradução em linguagem acessível das legislações relacionadas as mulheres, por exemplo, a Lei Maria da Penha, a lei do feminicídio, a lei de assédio sexual, a lei da violência política e a lei da previdência. Esse é o trabalho que a gente faz, seja com mulheres rurais, seja com mulheres indígenas, seja com mulheres periféricas, e a gente discute também a questão orçamentária com elas.
Um grande resultado do nosso trabalho junto às mulheres, em especial as mulheres indígenas, foi uma proposta de projeto de lei que apresentamos à deputada Augusta Brito, em 2019, quando Diana Pitaguary, mulher indígena, foi brutalmente assassinada pelo marido. A partir desse episódio, chamei uma conversa com as mulheres da Articulação de Mulheres Indígenas do Estado do Ceará (Amice), porque a gente sempre trabalhou com representações dos povos indígenas e, no nosso caso, mais diretamente com Amice. Depois da apresentação do projeto, a então deputada e hoje senadora acatou a iniciativa e a levou para a assembleia, que posteriormente foi aprovada como lei, em 2019. A lei institui que toda primeira semana de agosto, a Semana Diana Pitaguary seja construída nas escolas indígenas, cabendo à Seduc [Secretaria de Educação do Estado do Ceará] gerir e realizar a semana em parceria com as organizações da sociedade civil e com organizações indígenas.
Todo ano, nós fazemos um seminário preparatório de dois dias com as professoras indígenas de todo o estado, de todas as aldeias e, ao final do seminário, elas retornam para as salas de aula e realizam as formações e capacitações com os estudantes. Isso significa que o estado tem que ter destinação orçamentária para isso, para que a lei seja executada nas escolas, na prática, e para alegria nossa, essa lei tem sido bastante divulgada. Vinculado a essa iniciativa, nós temos discutido através da Coordenação da Juventude Indígena do Estado do Ceará, a Cojice, uma campanha com os homens pelo fim da violência contra a mulher, para que eles também se sensibilizem e assumam essa causa de defesa da mulher contra a violência.
O Esplar fala muito sobre a questão da convivência com o semiárido. Explica pra gente o que é essa convivência?
Acho que primeiro é preciso entender que o semiárido tem umas características muito específicas de solo, vegetação e clima. Além disso, o semiárido é uma região com uma rica biodiversidade de fauna e flora tanto quanto a Amazônia, só que foi criado um estigma de que o semiárido não é um lugar bom de se viver, e o Esplar veio provar exatamente o contrário.
Dentro da nossa concepção do que é bem viver, a gente vê a capacidade do semiárido de desenvolver atividades onde as famílias de agricultores possam conviver com essa realidade, portanto, a partir disso, a gente desenvolve ações que reconheçam essas características e que saibamos aproveitá-las para o melhor convívio dessas famílias nesses territórios. É essa convivência que faz com que as coisas funcionem, faz com que se tenha uma produção agroecológica belíssima, faz com que se tenha consórcios agroecológicos onde se possa produzir, para além do algodão, outros produtos da agricultura familiar e colocar no mercado.
Qual a importância dos trabalhos realizados pelo Esplar em relação à convivência com o semiárido, a soberania alimentar e a agricultura familiar?
É de extrema importância. Primeiro porque o Esplar é um ONG, mas ele tem assumido um papel que deveria ser do Estado. Seja falando do Estado brasileiro como do estado do Ceará no campo das políticas públicas, onde ele está bastante ausente. O nosso papel não é suprir essa ausência, nosso papel é contribuir com as políticas públicas, seja políticas agrícolas, sociais, ambientais de proteção à mulher para o campo, em uma perspectiva libertária e respeitando as diferenças e necessidades. Esse é o nosso papel, mas a gente não pode implementar, porque nós não somos governo, nós não temos orçamento para isso, o nosso orçamento vem de apoio nacional e internacional.
Por esse motivo, o Esplar insiste na agricultura familiar, principalmente quando falamos de uma agricultura familiar de base agroecológica, por ela estar sempre a reboque dos planos econômicos e dos projetos de desenvolvimento que só desenvolvem uma pequena parcela desse país: as elites e os milionários.
Existe um setor da sociedade que acredita que a agricultura familiar não funciona porque ela é pequena, e só quem funciona é o agronegócio, que é enorme. A produção da agricultura familiar não é pequena, ela é proporcional ao tamanho da família, ou seja, a família não vai produzir mais se a área for ampliada. Ela vai produzir mais a partir da ampliação do número de famílias agricultoras, por isso é importante organizarmos ainda mais famílias na política agroecológica, para que possam construir junto com a gente esse processo de produção.
Fonte: BdF Ceará
Edição: Camila Garcia