Mundo multipolar

Como uma eventual desdolarização do Brics representa oportunidades para Cuba

A desdolarização abre oportunidade para países que sofrem sanções comerciais dos Estados Unidos, como Cuba

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Homem anda de bicicleta, ao longe a termoelétrica Che Guevara - YAMIL LAGE / AFP

Nos próximos anos, os países do BRICS têm se proposto a abandonar o uso exclusivo do dólar  estadunidense como moeda comercial. Uma mudança, que se  for implementada, significaria uma verdadeira reordenação global. 

Isso gerou várias controvérsias nos círculos acadêmicos e políticos, daqueles que estão a favor e contra, mas também entre quem estuda sua viabilidade. No entanto, há um certo consenso de que um mundo menos governado pelo sistema financeiro imposto pelo dólar poderia ser uma grande oportunidade para os países do Sul Global e, principalmente, para os países que sofrem com as sanções econômicas dos EUA. 

Cuba talvez seja um dos casos mais paradigmáticos entre nações que sofrem as consequências da hegemonia comercial e financeira dos EUA. Por mais de 60 anos, esta pequena ilha do Caribe tem sofrido com a arrogância da maior potência do mundo. Não apenas por meio de sanções contra a própria Cuba, mas também afetando terceiros por meio de sanções contra aqueles que comercializam e mantêm vínculos com a ilha. É nesse contexto que Cuba vem expressando sua "firme determinação de avançar em direção a um relacionamento mais próximo com o grupo BRICS". 

De acordo com o Banco Mundial, as economias dos cinco países que originalmente formam o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) representarão mais de um quarto do PIB mundial em 2022, assim como um total de 16,1% das exportações e 14,9% das importações, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC). 

Além disso, o Fundo Monetário Internacional estima que, para 2027, esses países serão responsáveis por o 33,9% do PIB mundial, deixando para trás o tradicional G7, que cairá para 28,26%.

Em agosto de 2023, durante a 15ª Cúpula do BRICS, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, anunciou a decisão de expandir o grupo com a entrada de seis novos países: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã. No início deste ano, esses países se juntaram formalmente ao grupo, com exceção da Argentina, que, após a vitória presidencial de Javier Milei, finalmente decidiu recusar a adesão.

Com a ampliação do grupo, ele agora responde por quase 70% das terras raras e dos minerais essenciais do mundo e por volta de 40% da produção mundial de petróleo. Isso significa que o BRICS podem vir a exercer um controle fundamental sobre a energia atual e a transição energética.   

China e Rússia têm sinalizado seu interesse em ampliar ainda mais o grupo. Essa abertura tem evidenciado a crescente gravidade que o BRICS alcançaram nos últimos anos. Cerca de vinte países, de diferentes convicções e tradições políticas, expressaram interesse em se tornar membros plenos do grupo. A maioria vê uma oportunidade de expandir suas relações econômicas e políticas para além da hegemonia dos Estados Unidos e da União Europeia.    

Interesses e oportunidades   

Em entrevista ao Brasil de Fato, Lourdes María Regueiro, pesquisadora do Centro de Pesquisa de Políticas Internacionais de Cuba, afirma que o crescimento do BRICS desafia a hegemonia das "potências históricas do Norte Global". 

No entanto, longe de uma visão idealizada das oportunidades de seu crescimento, Regueiro ressalta que uma das principais complexidades do BRICS é sua própria heterogeneidade de interesses e posições, o que - sem deixar de lado suas conquistas - implica, às vezes, uma dificuldade na construção de direções comuns em torno da multipolaridade.  

"O BRICS não é um grupo concebido contra o sistema. Mas eles defendem novas regras que permitam uma maior capacidade de negociação do Sul diante de uma ordem que foi concebida à imagem e semelhança dos interesses das potências históricas do Norte Global. Isso significa que eles estão propondo novas formas de inserção internacional que não passam pelos mecanismos desenhados pelo Norte", afirma Regueiro. 

O objetivo explícito do bloco é a promoção de acordos comerciais bilaterais entre os países membros, assim como o financiamento de projetos produtivos por meio do Novo Banco de Desenvolvimento. Entre suas prioridades para o período de 2022-2026, eles propõem a ampliação do grupo - algo que já começaram a fazer este ano - e que 30% do financiamento de seus projetos de desenvolvimento sejam financiados em moedas locais. 

Isso significa que o desenvolvimento de infraestrutura e os investimentos nos países membros podem ser financiados em outras moedas que não o dólar. Isso permite oportunidades de acesso a investimentos fora de organizações como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial. 

"Este grupo está propondo novas formas de inserção internacional que não passam pelos mecanismos projetados pelo Norte. Então, agora está adquirindo força em questões críticas, como energia, alimentos e tecnologia, que são decisivas. Mas, além disso, uma das questões que o grupo fundador dos BRICS estabeleceu como desafio é o desenvolvimento da cooperação. E isso pode ser um elemento extremamente importante porque é uma cooperação que não está politicamente condicionada. Essa diversificação das relações se traduz em maior autonomia, na medida em que dá aos países do Sul maior capacidade de negociação". 

Ao mesmo tempo, Regueiro ressalta que "uma das principais questões tem a ver com a multiplicidade de interesses que compõem o BRICS". Nos últimos anos, importantes disputas geopolíticas têm se acelerado em todo o mundo e estão redefinindo os alinhamentos internacionais.

"É um grupo que tem em comum o fato de serem países importantes que defendem não ter que se subordinar às grandes potências ocidentais. Mas, ao mesmo tempo, é um grupo muito heterogêneo em seus interesses e alianças políticas. Essa heterogeneidade é uma oportunidade, mas também um desafio ao qual eles devem estar constantemente atentos e que nem sempre é fácil de resolver". 

Os desafios da desdolarização 

O dólar continua sendo a moeda mais importante do mundo. No entanto, sua importância tem diminuído de forma gradual e constante nos últimos 20 anos, em função da maior relevância de outras moedas para comércio ou reserva de valor. 

Regueiro aponta que a instrumentalização do dólar como arma de coerção, por meio das sanções econômicas e comerciais impostas pelos EUA e seus aliados, desempenhou um papel importante na busca pela "desdolarização" de um número crescente de países.

"A generalização de medidas coercitivas como um instrumento de política externa é uma faca de dois gumes. Jack Lew, que atuou como Secretário do Tesouro durante o governo Obama em 2016, alertou que o uso de restrições ao uso do dólar como instrumento de política externa poderia levar muitos países a considerar a possibilidade de abandonar o dólar na medida de suas possibilidades. Não se trata apenas de uma decisão política, mas sim da necessidade de buscar alternativas para o estrangulamento econômico que essas sanções produzem. E acho que é isso que está acontecendo hoje", afirma.  

China, África do Sul e Rússia são países que sofrem sanções financeiras e comerciais dos Estados Unidos. Essa situação se agravou após a eclosão da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos congelaram os ativos em dólares do Banco Central da Rússia e confiscaram os bens de vários cidadãos russos. Regueiro explica que essa situação fez com que as importações russas em yuan crescessem extraordinariamente entre 2021 e 2022, de 3% para 20%. 

Ao mesmo tempo, estão sendo desenvolvidos sistemas de mensagens alternativos ao SWIFT (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), que estrutura o sistema bancário e de pagamentos em torno do dólar.   

É esse crescimento no uso de outras moedas que pode se tornar uma oportunidade para outros países que também sofrem com as sanções dos EUA, como Cuba ou Venezuela na América Latina e no Caribe. 

"Quanto mais essas alternativas crescerem, mais fraco se tornará o sistema de sanções imposto pelos Estados Unidos. E isso pode afetar positivamente Cuba, que há mais de 60 anos vem sendo sufocada por um bloqueio econômico, comercial e financeiro", explica. 

O bloqueio contra Cuba é um dos grandes exemplos da violação sistemática e constante do direito internacional. Todos os anos, desde 1992, a Assembleia Geral da ONU tem se pronunciado, por esmagadora maioria, contra o bloqueio mantido pelos Estados Unidos. Argumentando que se trata de uma política que viola "a igualdade soberana dos Estados, a não intervenção e a não interferência em seus assuntos internos e a liberdade de comércio e navegação internacionais". No entanto, ao longo dessas mais de três décadas, Washington manteve sua política autoritária com impunidade. 

De acordo com as últimas estimativas da ONU, o bloqueio gerou perdas de US$ 13 milhões de dólares (R$ 66 bi) por dia para o Estado cubano somente no ano passado. Uma quantidade gigantesca de recursos que o país está impedido de usar para melhorar a qualidade de vida de sua população.

Edição: Rodrigo Durão Coelho