ENTREVISTA

'Desmemória da América Latina': peça de teatro em Belo Horizonte retoma história não contada

Espetáculo é inspirado na trilogia 'Memórias do Fogo', de Eduardo Galeano

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Foto: Daniel Protzner - "Desmemória da América Latina"

Você sabia que o povo brasileiro é latino? Pode parecer óbvio, mas, para muitas pessoas, não é. A construção da identidade brasileira, dada por diversas formas de miscigenação, o fato de não falarmos espanhol e as dimensões continentais de nosso país fazem com que muitos não se deem conta disso.

Por isso, a atriz e trabalhadora da cultura Michele Ferreira criou a peça “Desmemória da América Latina”, que está em cartaz em Belo Horizonte nos dias 6 e 7 de julho, a partir das 20 horas, no Teatro de Bolso do Sesc Palladium.

O espetáculo é inspirado na trilogia “Memórias do Fogo”, de Eduardo Galeano. Em conversa com o Brasil de Fato MG, Michele deu detalhes sobre o projeto. 

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato MG - Como surgiu a ideia de criar a peça? 

Michele Ferreira - “Desmemória da  América Latina” é o meu segundo solo. Em 2010, eu estreei o espetáculo “Apareceu Margarida”, do diretor carioca Roberto Ataíde, com direção de Camilo Lemos. A partir desse trabalho, eu comecei a fazer uma busca por festivais na América Latina. 

Fui para Cuba, onde recebemos os prêmios de melhor atriz e melhor espetáculo. Também fui para a Colômbia e para o  México, e comecei a perceber que tinha uma admiração grande pelo Eduardo Galeano. 

Ele era uma figura emblemática, não só como autor de “As Veias Abertas da América Latina”, que é a obra mais conhecida. Fiquei encantada com a forma com a qual ele transitava entre os gêneros literários e a literatura militante.

Eu me impressionei com a forma como ele traduzia a questão das identidades, da memória da América Latina, com um olhar voltado para a história, a partir dos povos colonizados.

Com essas andanças, me veio o desejo de fazer um trabalho que colocasse em debate quem somos enquanto povo, porque a gente se referencia muito nas culturas estadunidense e europeia. 

Como foi o processo de pesquisa e elaboração da peça?

A partir dali, também conheci a trilogia “Memória do Fogo”, que é um trabalho que Galeano passou quase dez anos escrevendo e que traz a história das Américas, a partir dos povos colonizados. São volumes muito bonitos, que trazem a cosmovisão indígena e africana.

Eu comecei a esboçar uma escrita dramatúrgica, pensando em quadros que são um tipo de manifesto de memória escrita.

Comecei a pesquisar editais de fomento e cheguei a um edital do México para residência entre artistas latino-americanos. Tive a alegria de ser contemplada e fiz um trabalho com Rodolfo Guilherme, que é um diretor de teatro, e nós fomos construindo e desconstruindo a obra. Então tudo começou ali.

O espetáculo é bilíngue. Fiz o trabalho todo em espanhol, e depois ele foi traduzido em português. É uma escrita muito viva. Como já passamos por diversas conjunturas nos últimos dez anos, o trabalho foi reescrito para acompanhar o contexto social e histórico.

Estamos em um momento no qual, ao mesmo tempo que se busca uma retomada de símbolos nacionais, como as cores da bandeira, passamos por uma ideia de nacionalidade deturpada, quase que subserviente aos Estados Unidos. Como a peça se encaixa neste contexto?

A peça vem exatamente no processo de entender as contradições, em uma perspectiva dialética, sobre a reviravolta que está acontecendo na América Latina. 

Ao mesmo tempo que há a ascensão de governos de extrema direita, não só na América Latina, mas no mundo, há um processo irrefreável dos movimentos sociais, dos grupos identitários. 

Daí também surge a necessidade de ampliar a relação intrínseca com a nossa memória, que nos foi furtada.

Na sua avaliação, por que o povo brasileiro tem dificuldade de se reconhecer como latino?

A peça vem questionar essa contradição. Nós, na condição de brasileiros, estamos nesse grande território e, muitas vezes, não nos reconhecemos como povo latino. A língua é outro fator que nos distancia dos demais países.

Também vivemos a contradição de sermos da periferia do capitalismo e termos uma relação subserviente aos Estados Unidos. A gente esquece que alimentamos essas potências, somos o celeiro dessas potências. 

Ao mesmo tempo, há hoje um maior letramento, um entendimento da história que sempre nos foi negada, dos povos colonizados, dos povos originários, dos povos africanos. Há um entendimento maior dessas identidades, dessa diversidade, que sempre nos foi roubada e silenciada, em prol das culturas hegemônicas.

Como a Michele, mulher, feminista, artista e ativista aparece na peça?

Sou uma dramaturga iniciante, mas tenho uma grande referência inspirada no Galeano. A partir das minhas andanças, da minha trajetória enquanto artista, mulher do teatro independente latino-americano, em contato com outras pessoas da América Latina e do mundo, eu busco trazer um pouco das minhas impressões.

Busco marcar culturalmente, socialmente e antropologicamente a questão da identidade e da memória. A memória como uma potência  revolucionária. 

A peça se chama desmemória, mas no fim, ela busca retomar memórias? 

O espetáculo se chama “Desmemória América Latina” porque representa o caminho inverso, como o Galeano fala: a América Latina é uma terra condenada à amnésia. É sobre o nosso esquecimento. 

Podemos, por exemplo, tratar de todo o processo que houve com a Comissão da Verdade, que foi um dos grandes propulsores da ira contra a Dilma Rousseff (PT), por parte dos que consumaram o golpe contra ela. E a gente se esquece. Também falamos sobre os desaparecidos e a tortura. 

Essa memória não é uma memória individual, que vai acabar quando eu ou você não estivermos mais aqui. Ela é coletiva. É uma memória que se perpetua, que ressoa ao longo do tempo e que nos constrói enquanto povo. 

Serviço 

A peça “Desmemória da América Latina” fica em cartaz em Belo Horizonte apenas neste fim de semana, nos dias 6 e 7 de julho, às 20 horas, no Teatro de Bolso do Sesc Palladium. Os ingressos custam R$ 20 a meia entrada e R$ 40 a inteira. 

 

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Ana Carolina Vasconcelos