Antimanicomial

Contra a indústria da loucura, só uma política da loucura

'Sem compreender lugar da raça no discurso científico, é impossível entender horror dos manicômios no Brasil'

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Ficha do escritor Lima Barreto no Hospital Nacional de Alienados, no Rio de Janeiro - Reprodução

“Barbacena foi cenário de significativo desequilíbrio ecológico. Atraídos pelas emanações fétidas de carniças humanas, urubus pousaram no hospital e passaram a se saciar com a produção abundante e crescente de cadáveres. O aroma das rosas do incipiente cultivo da cidade foi abafado pelos miasmas pútridos do hospital. Seu cemitério próprio logo teve a lotação esgotada. Com as “modernas” técnicas terapêuticas ali implantadas, a produção de cadáveres aumentou muito, e, transformados em peças anatômicas, passaram a ser vendidos em laboratórios de anatomia do país. Barbacena firma-se como o maior celeiro e exportador de restos humanos, iguaria predileta de abutres da indústria da loucura", diz Jairo Furtado Toledo em um trecho do livro (Colônia): uma tragédia silenciosa (2008).

Imagine mais de 5 mil internos com apenas 200 leitos; imagine trens abarrotados chegando cotidianamente com os “desajustados”; imagine dezenas de mortes diárias e corpos, na sua maioria negros, depositados em galpões; imagine algumas crianças esquecidas nesse inferno; imagine milhares de mulheres deixadas por pais e maridos. Imaginou? Agora volte à epígrafe que abre esse pequeno ensaio, talvez, e dependendo de sua sensibilidade, soe um questionamento: como isso foi possível?  

Se melhores que as respostas são as perguntas, eu tenho, no entanto, uma pista infalível para esta: as “modernas” técnicas terapêuticas, aliadas à autoridade psiquiátrica, não escaparam do imaginário herdado pela escravidão. E, assim, um asilo inaugurado em 1903 concentrou, nas suas sujas paredes, a verdade da modernização brasileira: o Hospital Colônia de Barbacena manteve os traços distintivos do que significa colonialismo.  

Sessenta mil pessoas morreram aí. A maioria internada à força. Cabeças raspadas, roupas arrancadas, rebatizadas com apelidos; uma imagem conhecida. Cerca de 70% delas não tinham diagnóstico de doença mental. Quem eram elas? Na maioria homossexuais, prostitutas, meninas grávidas e violentadas por seus patrões – estes que hoje votam naqueles que querem manter a criminalização do aborto – esposas abandonadas, filhas que perderam a virgindade antes do casamento, etc. A maioria carregava, no entanto, algo em comum: ser negra.

Assim, se existir um quadro capaz de sintetizar um resumo da violenta história brasileira na sua relação com os excluídos, da qual raça é componente central, sem dúvida, é Barbacena sua tela. Seus traços revelam a morfologia de uma passagem à modernização capitalista com uma paisagem delimitada pela racialização-racista de seu cotidiano. 

Não. Não estou sendo nenhum pouco exagerado aqui: basta olhar as inúmeras fotografias do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena para compreender como a regulação, a partir da exclusão racial, misógina e hetero-patriarcal, operava o discurso psiquiátrico à época (à época?). Aqui é preciso que levemos em consideração como o discurso médico manteve, sob à sombra de sua prática, o imaginário colonialista intocado.

Essa percepção sem dúvida atravessa as paredes de Colônia marcadas pela violência mais abjeta e na qual a raça, apesar de ser a língua privilegiada do hospital, era velada pela ideia cientificista de seus métodos. O princípio racial esteve presente não só nos pressupostos metodológicos de internações, que previam “emoções explosivas” dos negros, como foi fator determinante no controle de “vagabundos” que afluíam para esse verdadeiro campo de concentração, como deixou claro Franco Basaglia. 

Quando escrevo violência em Colônia, temo que o leitor não consiga sentir a profundidade dessa palavra aplicada aquele hospital. Lobotomias, choques elétricos, “hidroterapia” “feita com temperatura e volume de água controlados, também teve a finalidade deturpada no hospital. Os banhos gelados, promovidos na calada da noite como forma de castigo, eram mais uma maneira de debilitar organismos já fragilizados por doenças físicas e mentais”, relata Daniela Arbex em Holocausto brasileiro (2013). 

É nessa inaudita violência, exercida durante todo o século 20 – só nos anos 1980 Colônia passou a ser desativada –, legitimada pelo discurso científico e com “vistas grossas” de grande parte dos operadores do poder político, que se encontra toda a verdade da modernização brasileira. É pelas portas do Hospital Colônia que capturamos todo o horror que sustentou as formas de reprodução de nossa vida social. 

François Tosquelles, importante na batalha pela dignidade da loucura, certa vez disse que “um psiquiatra para ser bom, deve ser estrangeiro ou parecer estrangeiro”, no livro Uma política da loucura: e outros textos, tradução de Anderson Santos (2021). A verdade dessas palavras se encarna no gesto de Franco Basaglia que, vindo da Itália, observou que o rei estava nu. Para ele, o Hospital Colônia era uma verdadeira política nazista. É aqui que a questão racial ressoa como um leitmotiv da prática de exclusão sociorracial que se impregnava no discurso médico. É aqui, todavia, que ainda parece permanecer invisibilizada o fundamento da questão: a raça como condição de possibilidade do horror cientificista que lucrava com corpos vendidos para exercícios anatômicos.  

Para apreender essa questão, não esgotada em suas sutilezas, insisto que é preciso levar em consideração a racialização brasileira dominada pela herança colonial num país a ser o último a deixar a escravidão. É preciso também levar em consideração como a luva racial será vestida pelas mãos do discurso manicomial. Evidentemente, um trabalho imenso que excede essas curtas linhas e do qual aqui só teço traços possíveis de análise. 

Seja como for, a introjeção da noção racial na formação do discurso científico é, como mostra Denise Ferreira, central: a raça é a mais importante condicionante epistemológica que elabora quem é o ser e quem não é. Sem entender isso de maneira radical, não entendemos como algo insustentável, do ponto de vista da dignidade humana, o Hospital Colônia, foi possível. Há uma forma de construção epistemológica, que institui um imaginário organizando subcidadãos e subhumanos, implícita aos discursos.  

Outro importante psiquiatra jogou luz nessa questão: Frantz Fanon que jamais reduziu o colonialismo à pratica material da escravocracia, mostra como o colonialismo, sobrevivente no imaginário moderno, é o responsável pela formação do espírito da própria modernidade. Uma negação à humanidade do Outro – racializado –, que traduz relações concretas, cujo reflexo se dá na prática clínica. 

Assim, se quisermos compreender como o Hospital Colônia foi possível, e outros podem se repetir – se é que já não estão em livre curso no país –, precisamos levar em consideração que, embora a escravidão colonial tenha se tornado economicamente obsoleta, a estrutura de construção racial responsável pela organização imaginária, que exclui e oprime o outro, se manteve intocada. Não precisamos ir tão longe para perceber como aqueles marcados pela racialização sofrem diferentes tratamentos na hora de receber atendimento médico-hospitalar.

Fanon percebeu, como nenhum outro antes dele, que a mudança do regime econômico colonial sem a superação de sua organização ideológico-imaginária determinou a forma como a construção sócio-política foi organizada. Aqui o próprio discurso científico acompanhou essa estrutura forjando sua legitimação e encontrando na sua práxis formas de ajustar os “desajustes” e isolar os “desajustados”. 

Não é de surpreender que dois dos nossos mais ilustres escritores tenham se debruçado sobre o discurso psiquiátrico e encontrado nele o racismo à brasileira que exclui, violenta, e, na impossibilidade do “ajuste”, mata aqueles que não se adequam. Durante sua internação no Hospital Nacional de Alienados, entre dezembro de 1919 e fevereiro de 1920, Lima Barreto faz uma crítica acerba das formas como aparecem o racismo implícito e explicito naquele hospício. “Não me incomodo muito com o Hospício”, ele escreve no seu importante diário, “mas o que me aborrece é essa intromissão da polícia na minha vida”. Não há como negar aqui a simbiose entre o discurso médico e o policiamento desses “desajustados” que não por acaso tem um corpo marcado pela racialização, algo também em curso no Hospital Colônia. 

Já Machado de Assis escreveu um dos contos mais importantes da história da literatura mundial sobre a psiquiatria e sua desmesura: o famoso O Alienista. Em ambos se pode ler o quanto a prática dita científica se baliza pela relação ideológica investida socialmente. Espero que o leitor saiba que nessas linhas não se trata de abandonar o campo da ciência ou de reduzir a psiquiatria – na sua multiplicidade prática – à ideologia, mas nelas se busca trazer a campo a invisibilidade daquilo que organiza alguns pressupostos metodológicos que, se não observados, mantem a excludente prática racista do cientificismo que alimentou esse país. 

E, sendo assim, sem levar em consideração o campo imaginário – herdado pelo colonialismo – que organiza as regras simbólicas, e dão arrimo a qualquer epistemologia, não poderemos compreender como aquela violência ocorrida em Colônia, à sombra da racialização da vida social e da sua estrutura hetero-patriarcal, se normatizou como prática médica. Portanto, sendo a noção de raça uma operação de controle e produção de uma sociabilidade desigual, sua força estrutural molda a forma de construção da subjetividade do indivíduo racializado, daquele que não se vê como racializado, e dos discursos que permeiam o horizonte social afetando a prática epistemológica.

O título desse pequeníssimo ensaio é “contra a indústria da loucura, só uma política da loucura” e, portanto, carece um tantinho de explicação: a indústria da loucura hoje lucra de maneira escandalosa com a aliança entre psiquiatria e farmacologia. Nesse lucro não está em questão absolutamente nada do que foi debatido nos parágrafos acima. Na verdade, a psiquiatria tem cada vez mais adotado uma posição organicista e fisiológica que, para aqueles que pensam sobre os estragos do racismo e da desigualdade brasileira, se torna assustadora. 

Ocorre hoje o contrário do que buscava, por exemplo, Basaglia: separam a doença do sujeito e o descartam como um objeto qualquer. No discurso organicista da prática hegemônica atual, ele é desnecessário. Lacan, outro psiquiatra, há muito já alertara sobre a cooperação entre saber e poder na tentativa de controlar aquilo que destoa, “desajusta”, à sociedade. Num país viciado em ansiolítico, e cuja tendência manicomial volta permeada por um discurso fundamentalista, por todos os lados se tenta calar e asilar a loucura fazendo da saúde mental um grande mercado.

Uma política da loucura é, portanto, aquela que a visibiliza, que a inclui como característica humana e que, sobretudo, tenta dar voz aqueles que a sofrem. Substituindo a heteronomia de um discurso clínico alheio ao sujeito, pela autonomia desse sujeito que se articula por sua voz e dá sentido ao seu sofrimento, uma política da loucura enxerga a doença como algo demasiadamente humano, não subhumano ou diabólico. Pensando bem, uma política da loucura coloca em perspectiva uma psiquiatria democrática, como queria o velho Basaglia.

* Douglas Rodrigues Barros é psicanalista, doutor em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.