Enchentes no sul

'As eleições vão mostrar se a sociedade aprendeu com as cheias', dizem ambientalistas do RS

Para Arno Kaiser e Luana Rosa, o estado gaúcho segue em uma crescente de negacionismo climático e ambiental

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Luana Rosa é presidente do Movimento Roessler pela Defesa Ambiental e Arno Kaiser é fundador do ComiteSinos, o primeiro comitê de bacia hidrográfica do país - Foto: Alexandre Garcia

De pioneiro na defesa do meio ambiente no Brasil, o Rio Grande do Sul regrediu na pauta ambiental nos últimos anos. O que aconteceu com o estado que teve um efervescente movimento ambientalista nos anos 1970, raiz de mobilizações que conquistaram espaços e construíram leis e órgãos ambientais inovadores? Qual o papel dos governos e do empresariado nesse retrocesso que culminou com a grande inundação de maio passado?

Buscando entender essa involução, o Brasil de Fato RS conversou com o ecologista Arno Kaiser, fundador do ComiteSinos, o primeiro comitê de bacia hidrográfica do país, e com a pesquisadora em mudanças climáticas Luana Rosa, também presidente do Movimento Roessler pela Defesa Ambiental.

Brasil de Fato RS - O que aconteceu com o Rio Grande do Sul? O estado foi pioneiro do ambientalismo mas hoje vive um processo de desconstrução das leis e dos órgãos ambientais.

Arno Kayser - O movimento ecológico gaúcho, liderado pelo José Lutzenberger, veio junto com o movimento de redemocratização do Brasil. Várias frentes políticas naquele momento estavam avançando e esse processo de construção da legislação teve um grande esforço no Rio Grande do Sul. E esse movimento foi crescendo até 1992. Aí, naquele momento, o império começou a contra atacar.

Eles perceberam que o movimento ecológico poderia derrubar as bases do capitalismo. Então, começou uma reativação das forças econômicas para combater esse processo. A própria recessão econômica também contribuiu para desmobilizar. Os sindicatos, hoje, estão sofrendo com isso. Houve um ataque às bases dos movimentos sociais. O movimento ambientalista começou a perder espaço na grande mídia. E não por falta de iniciativa ou trabalho, mas a própria mídia começou a abandoná-lo.

BdF RS - A Agapan (Associação Gaúcha de Proteção do Ambiente Natural) foi fundada em 1971. Naquele momento, vivíamos a pior fase da ditadura, que foi o periodo Médici. Mas, para a imprensa em geral, o ambientalismo era uma maneira de questionar os valores do regime também.  Foi o desaguadouro de muitas insatisfações, não é?

Arno - Sim, ele não se filiava politicamente aos partidos de esquerda mas, como conta o pessoal mais antigo, o próprio DOPS [Departamento de Ordem Política e Social] espionava as reuniões da Agapan. 'Ah, eles estão a favor da natureza, mas eles estão contra o capital? Não, eles estão a favor da natureza'.

Na época, houve também a questão da Borregaard [fábrica de papel norueguesa que se instalou às margens do Guaíba, cujo mau cheiro da chaminé empesteava Porto Alegre] e aquilo fez com que a popularização do tema ambiental fosse muito forte. Todo mundo se sentia incomodado. Criou espaço, principalmente, no grande jornal da época, que era o Correio do Povo. Breno Caldas [dono do jornal] abriu espaço para os ecologistas. Tem até fotos do Lutzenberger e do Augusto Carneiro [outro fundador da Agapan] datilografando na redação do Correio.

Tenho visto um retrocesso programado para sucatear os órgãos ambientais

BdF RS - No velho Correio do Povo, da família Caldas, o pioneiro ambiental do Brasil, que é o Henrique Luis Roessler, de São Leopoldo (RS), tinha uma coluna sobre ambientalismo já nos anos 1950...

Arno - Roessler é um dos primeiros autores com esse viés de defesa da natureza. E ele fez a cabeça principalmente do Augusto Carneiro, um dos  grandes articuladores da construção da Agapan. Roessler está um pouco esquecido, mas era quase um mito…

BdF RS - Ele unia o discurso à prática. Era fiscal de caça e era um militante. Nunca esqueci uma frase do Lutz. Ele falou assim: 'Tu não conheces o Roessler? Ele foi o cara que começou tudo isso…' Foi o Roessler quem fundou a União Protetora da Natureza (UPN) em 1955.

Arno - O nosso fundador, que é o professor Kurt Friedrich, era militante da UPN. Fez o projeto de recuperação do Morro da Fundação, em Novo Hamburgo (RS). Tudo feito com o apoio do Roessler e dos estudantes. Quando, então, surgiu a ideia de criar um grupo ecológico em Novo Hamburgo deu-se o nome do Roessler.

O nome dele surgiu como uma homenagem. Inclusive a família do Roessler, que é de São Leopoldo, sempre dizia que todos eles ficavam muito comovidos porque de Novo Hamburgo, onde o Roessler tinha alguns dos piores inimigos, que eram os donos dos curtumes [operações de processamento do couro cru], saiu uma homenagem nesse gabarito. Hoje a própria Fepam [Fundação Estadual de Proteção Ambiental] leva o nome do Roessler.

BdF RS - O ambientalismo perdeu espaço na grande mídia mas, para além de ter perdido espaço, começou a ser criminalizado ou desqualificado. São os ecochatos, aqueles que andam contra o desenvolvimento…

Luana Rosa - Sim, foi se banalizando esse termo. Enquanto lá, na década de 1970, eles surgiram como heróis porque foi na época da ditadura [1964-1985].

BdF RS - Sim, tem aquele caso do menino que sobe na árvore [o estudante Carlos Dayrell escalou uma tipuana no centro de Porto Alegre (RS) para impedir sua derrubada e virou notícia nacional em 1975]…

Luana - Exatamente. Mas o que tem acontecido hoje? Posso falar da atualidade porque faço parte de conselhos, como o Conselho Municipal de Meio Ambiente (Comam) e o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema). Nessa última década, tenho visto um retrocesso programado. É programado justamente para sucatear esses órgãos ambientais. No Consema saí frustrada de todas as reuniões. Somos cinco entidades ambientalistas para lutar contra mais de 15 votos aparelhados entre governo e defensores do agronegócio. Fica complicado, a gente nunca vai ter uma paridade.

Um dos momentos mais frustrantes da minha vida aconteceu na votação contra o autolicenciamento, contra a LAC (Licença por Adesão e Compromisso). Naquele dia, tivemos seis votos contrários ao autolicenciamento e 17 votos favoráveis. Depois, ainda tivemos que ouvir de várias pessoas: 'os ambientalistas estavam onde? Onde estavam que não fizeram absolutamente nada?'

Infelizmente, o Brasil elegeu um Congresso também contra a natureza

Mas os ambientalistas estão aí virando muitas noites, escrevendo contra laudos, tentando explicar para a população, tentando explicar para o próprio conselho, pedindo vistas nos processos que são votados dentro do Consema. Mas tudo é programado para que essas leis sejam aprovadas. Para que não se consiga vencer essas barreiras.

BdF RS - Pelo que estás falando, houve uma lenta e contínua ocupação desses órgãos. Espaços criados pela luta ambientalista, mas que foram, aos poucos, ocupados pelo empresariado, pelo agronegócio.

Luana - Que foram banalizando esse processo, né? Banalizando o ambientalismo, fazendo com que figuras como o Roessler e o Lutzenberger fossem esquecidas pelo grande público.

Arno - Caio Lustosa foi o primeiro secretário de meio ambiente de Porto Alegre. Renato Ferreira foi do programa Pró-Guaíba. Nos anos 1980, os ambientalistas é que ocupavam [essas funções]. Meio ambiente nunca foi uma pauta muito importante, mesmo para os movimentos mais populares. A grande exceção é o Olívio Dutra. Para mim, é o político gaúcho que mais percebeu a questão ambiental.

Eu trabalhei no programa Guaíba Vive, que foi muito importante naquele momento. Mas, hoje em dia, temos políticos tipo Ricardo Salles [ex-ministro do meio ambiente no governo Bolsonaro] e Ana Pellini [ex-presidente da Fepam] que são pessoas do campo oposto. E, infelizmente, o Brasil elegeu um Congresso também contra a natureza.

A bancada ruralista, a bancada da bala, essa turma aí, que são uma distorção, inclusive, da representatividade brasileira. É uma característica do nosso sistema político. Essas pessoas estão sistematicamente desmontando as conquistas porque também o movimento social está enfraquecido, mais em uma posição de resistência do que de avanço.

Tem uma bancada ruralista enquanto não existe uma bancada ambientalista

BdF RS - Qual é a representação ambientalista no Congresso Nacional? Dá para contar nos dedos de uma mão, talvez. Mas o agronegócio, a Bancada do Boi, tem 300 pessoas.

Luana - Tem uma bancada ruralista enquanto não existe uma bancada ambientalista.

BdF RS - A Secretaria Municipal de Meio Ambiente está sofrendo um desmonte já há muitos anos.

Arno - Ela foi unificada com a [secretaria de] infraestrutura e criou uma contradição. O órgão que executa políticas de desenvolvimento é, ao mesmo tempo, também administrado pela secretaria. Fica difícil. É uma contradição e isso se repete em muitas prefeituras do interior. Tem a Secretaria de Meio Ambiente e está junto com o Departamento de Agricultura ou coisa do gênero. Aqui, o Departamento de Meio Ambiente (DMA) surgiu dentro da [secretaria de] saúde, que tem muito mais a ver. Gestou os órgãos ambientais. A Fepam era um órgão que saiu da Saúde.

No Consema, a representação do governo é a metade. Junta-se ao setor empresarial e ele faz o que quiser

O espaço dos Comitês de Bacia é o mais democrático que a gente tem. É onde os ambientalistas têm peso igual ao da indústria. O Movimento Roessler participa. Eu já fui presidente [do Comitê da Bacia do Vale do Rio dos Sinos], a Luana trabalha no Verde Sinos, um dos projetos de recuperação da Bacia do Rio dos Sinos com verbas do Ministério Público.

Em outros espaços é diferente. No Consema, a composição desde a origem é distorcida. A representação do governo é a metade. Junta-se ao setor empresarial e ele faz o que quiser. Um voto ou dois e já tem tudo.

BdF RS - Acho que esse é o modelo. Quando se cria, já se cria uma estratégia de controle. Uma ideia de ter controle sobre aquele voto.

Arno - E vem junto com o desmonte da máquina pública, do serviço público, que é desqualificado historicamente no Brasil. Agora estão fazendo ode ao voluntariado. Maravilha, as pessoas voluntárias. Lindo, ótimo. É muito bonito isso. Mas quem está segurando mesmo as pontas e vai segurar as pontas são os órgãos públicos.

No nosso caso aqui do Dmae [Departamento Municipal de Agua e Esgotos de Porto Alegre], os sindicalistas denunciaram estar sem quase dois mil servidores. O Dmae já foi a empresa de saneamento número um do Brasil em termos de qualidade e eficiência. Com 99% de atendimento com água e índice altíssimo de tratamento de esgotos. Está quebrado.

BdF RS - O passo seguinte do processo é a privatização.

Arno - Tudo isso também afeta a luta ambiental. Temos forças mundiais, inclusive a indústria do petróleo, a indústria da guerra, que estão financiando movimentos políticos.  

BdF RS - Tem uma frase do dono da Havan que é a síntese dessa visão do grande capital. Em uma audiência pública em Santa Catarina, ele disse que os órgãos do meio ambiente são o câncer do país. Essa é a visão. Os ambientalistas, os órgãos reguladores, fiscalizadores, só atrapalham.

Luana - É um progresso sem medir causas. Estamos vendo os resultados desse suposto progresso. Na verdade, estamos tendo um retrocesso porque com toda a tragédia que aconteceu agora, esse progresso foi literalmente por água abaixo. Retrocedeu justamente por não se ouvir o óbvio. Agora, estão pensando em funcionalidades mirabolantes. O que fazer? Desde a década de 1970, os ambientalistas trazem uma solução muito simples. E, mais uma vez, não estão sendo ouvidos. Qual é a solução para tudo isso? É barragem? É dique? É simples: plantar árvores, recuperar áreas de banhado. E as pessoas ficam chocadas: 'não pode ser isso'.

Os lugares onde alagou em Porto Alegre foram aqueles onde era banhado. O rio só retomou o seu espaço

Arno - A tal cidade esponja que estão fazendo na China é, nada mais, nada menos, do que deixar as áreas úmidas dentro dos ambientes urbanos.

BdF RS - Tem que deixar a vaga dos rios para os rios.

Luana - Prova disso é que os lugares onde alagou aqui em Porto Alegre, por exemplo, foram aqueles onde era banhado [pelo rio]. O rio só retomou o seu espaço.

BdF RS - Assim como Eldorado do Sul e o [bairro de Canoas (RS)] Mathias Velho. Estavam dentro das áreas úmidas.

Arno - Por conta dos interesses da especulação imobiliária, principalmente. São as duas forças: o agronegócio e a especulação imobiliária. Os dois inimigos declarados das questões ambientais. A indústria já não impacta tanto quanto no passado. São dois setores muito refratários. O próprio setor agrícola, aqui dominado pela cultura do arroz, é contra o sistema estadual de recursos porque será cobrado pelo uso da água. O cara usa a natureza de graça, um patrimônio que é de todos. De todos nós, inclusive os outros seres. E não querem pagar para usar porque vão baixar seus lucros. E aí toca plantar em cima das APPs [áreas de preservação permanente].

Faz mais ou menos 250 anos que tem gente branca nesse estado destruindo a natureza. É basicamente isso que a gente tem feito. Então, como choveu um horror, os mecanismos naturais não aguentaram e os rios e o lago, todos voltaram aos espaços que têm e que os indígenas nunca ocuparam.  

BdF RS - Vocês tem alguma expectativa de que essa lição seja aprendida? Políticos que estão, digamos, dentro do espectro da direita dizem: 'temos que criar melhores sistemas para alertar as pessoas para quando chover muito. Temos que municiar melhor a Defesa Civil'. Ou seja, vamos fugir melhor da próxima vez. Não é para resolver o problema.

Luana - Até porque são eles que causam o problema…

Agora, o desequilíbrio também está cobrando o seu preço

BdF RS - Não é para tratar da causa do problema mas para, da próxima vez, deixar morrer menos gente. A grande questão é a derrubada das matas ciliares, o uso intensivo de agrotóxicos, a entrega do campo nativo para a lavoura...

Arno - O próprio plantio direto, que foi colocado como protetor dos solos, tem solos agrícolas arrasados, propriedades onde foi tudo lavado, porque pararam de fazer práticas de conservação. E a agricultura saudável precisa de uma relação saudável com a natureza, porque senão… Agora, o desequilíbrio também está cobrando o seu preço.

Luana - Citaste a questão do morrer menos gente, não é? É horrível falar isso, mas não vai morrer menos gente enquanto continuarmos com as mesmas políticas. Podemos citar até o projeto de lei do deputado [Luciano Lorenzini] Zucco [PL-RS]. Estávamos debaixo d´água e ele tentava passar uma lei para fazer açudes, para proteger os arrozeiros, dentro de áreas de preservação permanente. Mas a causa desses problemas é justamente a ocupação irregular desses espaços. Enquanto estamos tentando refrear esse retrocesso, eles continuam avançando nessas leis antiambientais.

A comunicação e a conscientização serão muito importantes porque vamos ter que lutar cada vez mais para trazer a informação correta e contra as fake news. Já tínhamos uma guerra de discursos e agora vão jogar a fake news que for mais conveniente.

Quando começou o caos, chamaram os empresários. Os comitês de bacias sequer foram mencionados

BdF RS - Quais as bases para uma reconstrução realmente sustentável do Rio Grande do Sul?

Luana - Quando começou todo esse caos chamaram os empresários para falar a respeito. Os comitês de bacias sequer foram mencionados. E estamos falando sobre água. O Rio Grande do Sul ficou mais de 90% debaixo d'água. Então, se falamos sobre recursos hídricos, quem deveria ser ouvido? Os especialistas não foram ouvidos... Negacionismo ambiental de forma geral. Precisamos ouvir quem, de fato, entende do assunto. Quem está há 50 anos falando sobre isso são aos ambientalistas.

Arno - E [ouvir] os movimentos sociais organizados. Nós temos no Rio Grande do Sul, a maior produção de arroz orgânico da América Latina. Está aqui, na volta de Porto Alegre. Temos o Pampa, um ecossistema no qual, se criares gado, vais ganhar muito mais dinheiro do que plantando soja. O gado mantém o Pampa. Substitui as populações de ruminantes que foram extintas pelos indígenas quando chegaram aqui. E consegue manter essa paisagem. A própria agricultura familiar, os negócios com base na economia solidária.

Temos uma oportunidade para repensar a infraestrutura que foi destruída

Na minha visão, a diferença entre direita e esquerda, é que a direita pensa o que é bom para mim, para o 'eu'. Mas temos que pensar no plural. O que é bom para nós? Se eu estiver bem, os outros também vão estar bem. E se os outros estiverem bem, eu também estarei bem. Em qualquer país desenvolvido é assim. A sociedade é mais equilibrada.

Temos uma oportunidade de repensar a infraestrutura que foi destruída. Avançar na questão da energia solar, em outras fontes de energia e, aos poucos, fazer essa transição de matriz energética. Senão o mundo vai continuar tendo cada vez mais esse terror.  As pessoas dizem 'Ah, a natureza está em guerra'. Não, a natureza está fazendo o que ela sempre faz. É causa e efeito.  

Luana - Enquanto a gente continuar extraindo cada vez mais combustível fóssil, a natureza vai dar a sua resposta.

BdF RS - O problema vai ser enfrentar, digamos, o consolidado. Os órgãos ambientais tomados, o Congresso, as assembleias estaduais, as câmaras de vereadores... Fala-se muito no poder executivo mas esquecemos [do papel] do legislativo [no retrocesso ambiental]...

Arno - É um dos grandes erros do voto do brasileiro. Vota em um vereador pensando em uma coisa mais imediatista, mais assistencialista. Mas as eleições estão aí. Vai ser, talvez, um momento de avaliar o quanto a sociedade aprendeu.

* Esta é uma versão compacta do podcast De Fato. Assista à edição completa abaixo:


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira