Desde outubro de 2023, o Comitê Olímpico Internacional (COI) tem evitado se pronunciar sobre os ataques de Israel contra a população palestina na Faixa de Gaza. O massacre - considerado genocídio por pelo menos 13 países - já causou mais de 38 mil mortes, mas a entidade esportiva se protege juridicamente atrás da “solução de dois Estados”, já que os Comitês Olímpicos nacionais israelense e palestino "coexistem" (ao menos na teoria), desde 1995.
Apesar de os bombardeios israelenses terem destruído as principais instituições esportivas em Gaza e matado personalidades palestinas do mundo olímpico, nunca esteve em discussão, no âmbito do COI, que os atletas israelenses deveriam ser punidos ou o país sofrer qualquer sanção. Já a invasão russa da Ucrânia com o apoio de Belarus em fevereiro de 2022 teve como resposta do COI o banimento de atletas russos e bielorrussos de quase todo o esporte mundial, veto que durou até março de 2023.
Em princípio, os ucranianos ameaçaram boicotar os Jogos se a sua presença na capital francesa fosse permitida, mas Kiev acabou por abandonar essa posição em meados de 2023. O COI então orquestrou uma reintegração progressiva de russos e bielorrussos em competições internacionais sob condições estritas: a título individual, sob uma bandeira neutra e desde que não tivessem "apoiado ativamente a guerra na Ucrânia" e que não tenham contrato com o exército ou com as agências de segurança do seu país.
Para Layla Dawood, professora do departamento de Relações Internacionais da Uerj, a principal diferença está na anexação formal dos territórios ucranianos feita pela Rússia. O banimento é justificado pelo COI como uma consequência da decisão do Comitê Olímpico Russo de ter colocado sob sua autoridade cinco organizações regionais ucranianas: Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia. A ação, que legitima a ocupação russa, fere o Movimento Olímpico, segundo o argumento do Comitê.
"O COI alega que a Rússia fere a carta porque anexa formalmente unidades regionais esportivas que estavam sob a nacionalidade ucraniana. No caso israelense, a gente, pelo menos no momento, não tem uma anexação formal de Gaza. O COI então, seguindo o entendimento internacional, entende que existem duas unidades nacionais esportivas a palestina e a israelense, e essas unidades convivem. Então as situações geopolíticas são diferentes e as justificativas são diferentes também. O que o governo russo fez é juridicamente diferente do que Israel faz, então as punições são relacionadas a situação jurídica, diferente desses dois conflitos."
Mas existe precedente
Apesar desse entendimento do COI, Dawood aponta que existe um paralelo entre a situação da Palestina com aquele vivenciado pela África do Sul durante o regime de apartheid, quando o país chegou a ficar de fora dos Jogos Olímpicos em duas ocasiões: 1964 e 1992.
"Embora as situações de conflito com a Palestina e o conflito na Rússia sejam muito diferentes, há analistas que ligam a situação palestina à da África do Sul, com base na ideia de que Israel promove uma espécie de discriminação e um tipo de tratamento dos palestinos, que é similar ao que acontecia entre negros e brancos na África do Sul. Então, já que se condenou a África do Sul, será que não se pode condenar Israel?".
A socióloga e historiadora Vanessa Gil considera que ao punir a Rússia e não punir Israel, o COI atua com pesos e medidas diferentes. "O Comitê Olímpico tem por obrigação aplicar os seus princípios e impedir a participação de Israel, dos atletas israelenses nas Olimpíadas".
"Considerando que a Palestina não pode também levar os seus, por ser vítima de um genocídio, e considerando que as Olimpíadas têm um histórico de busca pelos direitos humanos. Lembrando que em 64 e 92, a África do Sul foi banida dos Jogos Olímpicos como parte dos esforços internacionais para desmantelar o regime de apartheid."
Nas olímpiadas de 2016 no Rio de Janeiro, os seis atletas da delegação palestina chegaram para os jogos sem seus uniformes de treino, de competição e da cerimônia de abertura do evento, porque ficaram presos na alfândega de Israel. Gil aponta que os ataques israelenses contra as delegações esportivas da Palestina são sistemáticos e configuram violação dos princípios do COI.
"Por décadas, Israel ataca a comunidade esportiva palestina. Cada vez que atletas da Palestina precisam participar de uma competição internacional são obrigados a passar pelos postos de controle, e Israel não libera a saída. E além disso, o que fazer com a quantidade de atletas mutilados por Israel? Os centros desportivos palestinos estão em áreas ocupadas por Israel, e tem sido bombardeados durante décadas. Isso viola os princípios da Carta Olímpica, que fala sobre defender a dignidade humana."
Plataforma palestina
O Comitê Olímpico palestino, que segundo o COI deveria ter "seis a oito representantes" graças aos convites, espera pelo menos usar os Jogos como plataforma perante o mundo. Vanessa Gil que também é mãe do atleta de alto rendimento Lucas Gil, aponta que a presença da delegação palestina nos jogos deste ano é o principal símbolo de resistência ao colonialismo deste século.
"A presença da delegação palestina é o símbolo mais forte que nós podemos assistir, neste século, de resistência de um povo em sofrimento, que passa por um processo de genocídio. É a síntese das forças dos povos que lutam por um mundo justo, soberano e com autonomia do seu território. É muito importante que se reforce que os atletas palestinos são símbolos de resistência ao colonialismo, ao Norte Global e seu poderio bélico."
Para Layla Dawood, a presença palestina nos jogos, mantém viva a esperança de reconhecimento do Estado palestino. "Representa uma expectativa de normalização da situação palestina e que efetivamente, a tão sonhada solução de dois Estados aconteça, embora o Estado palestino ainda não tenha a sua concretização formal. O fato de que uma organização não governamental inclua um comitê nacional palestino representa exatamente essa esperança de que a gente consiga chegar a uma situação de solução do conflito entre os dois Estados, que convivam pacificamente. Então, tem uma simbologia muito grande."
*Com AFP
Edição: Rodrigo Durão Coelho