A concepção de Justiça da Lava Jato não foi derrotada nem destruída
"É um mito dizer que a esquerda não sabe lidar com corrupção, com o combate à corrupção. Aí, parece que quando a gente critica a Lava Jato, [estamos] defendendo a corrupção. Não é verdade", afirma o historiador Luis Eduardo Fernandes sobre a falsa narrativa criada em torno da famosa operação da Polícia Federal (PF).
Para analisar os 10 anos da operação Lava Jato, assim como os seus impactos sociais, econômicos e para a soberania nacional, o episódio desta sexta-feira (12) do podcast Três por Quatro, produzido pelo Brasil de Fato, conversa com Luís Eduardo Fernandes, autor do livro A Internacional da Lava Jato: Imperialismo, Nova Direita e o Combate à Corrupção como Farsa, publicado pela Autonomia Literária. O comentarista fixo do programa José Genoino, ex-presidente do PT, também participou do episódio.
A operação da PF, iniciada em 17 de março de 2014, na 13º Vara Federal de Curitiba, teve ligações com o modelo internacional de combate à corrupção estadunidense. A operação mirou no combate à corrupção, mas acabou culminando na destruição de cadeias produtivas nacionais, no golpe de 2016 contra a ex-presidente Dilma Rousseff e na projeção de uma nova direita no Brasil.
A força-tarefa, impulsionada por um vasto esquema midiático, capitaneado principalmente pela rede Globo e pela revista Veja, transformou um juiz de primeira instância e um grupo de procuradores de Curitiba em "salvadores da nação".
Nesse sentido, Fernandes argumenta que a operação foi instrumentalizada como parte de uma ofensiva liderada pelos Estados Unidos contra governos não alinhados aos seus interesses. Para ele, o surgimento da operação se deu a partir do "longo acúmulo de forças da chamada 'pauta anticorrupção' na sociedade, e também na institucionalidade no Brasil".
Outro ponto destacado pelo especialista é o envolvimento e, posteriormente, o declínio de personagens centrais na operação, como o ex-procurador Deltan Dallagnol e o ex-juíz Sergio Moro, que participaram de uma série de cursos e eventos sobre a temática da anticorrupção entre os anos de 2008 e 2010, vinculados aos Estados Unidos.
"Quando a gente fala de Lava Jato, a gente acha que é 2014, mas é um acúmulo político jurídico institucional de médio prazo", diz. Nesse contexto, o pesquisador explica que "ao longo dos anos 90, com as contra-reformas neoliberais, vai ganhar espaço esse modelo de combate à corrupção, que tem a ver com um modelo mais privatista (...). Então, a Lava Jato é uma experiência que vai ser uma resultante desse acúmulo de forças, que tem a ver com forças sociais nacionais, mas, principalmente, [forças] externas".
Ainda em sua avaliação, além do aspecto jurídico, a Lava Jato também apresenta um braço que se liga tanto à questão econômica, quanto um braço ideológico cultural, de criação de mitos. 'O mito de que o estado cria corrupção, o mito da Petrobras como grande antro de corrupção no Brasil e o mito de que a iniciativa privada não tem corrupção são mitos que mais do que entraram na questão jurídica e política, eles [disputam] a hegemonia na sociedade", pontua.
Instrumentalização e ofensiva internacional
Para Genoino, é necessário situar historicamente a crise das esquerdas no mundo no início do século 21 para uma maior compreensão do tema e possíveis implicações. "A ofensiva dos Estados Unidos através de [Adolf] Hitler e Margaret Thatcher fez a luta de classe, a globalização, o estado mínimo e as privatizações. Isso desemboca em um modelo de guerra."
Na visão do presidente do PT, os Estados Unidos concederam três tipos de guerra, sendo elas: a guerra contra as drogas, contra o terrorismo e, por fim, contra a corrupção.
Ao fazer uma reflexão sobre o histórico da Lava Jato, Genoino aponta que ela "é uma concepção de justiça autoritária, é a justiça do espetáculo, é a justiça que cria a figura do inimigo (...) Tem que ter um inimigo para ser destruído. Em vez de matar, você destrói reputação, relações familiares, a imagem das pessoas e as afasta da política".
Segundo o historiador Luis Fernando, "a guerra contra a corrupção, ao lado da guerra do terror e a guerra às drogas, fazem parte da doutrina de nova hegemonia dos Estados Unidos pós 11 de setembro de 2001". Para ele, a política anticorrupção internacional vai além de governos dos Estados Unidos.
Sobre a troca de experiências e informações entre agentes públicos brasileiros e o governo americano, Fernandes afirma que existe uma série de financiamentos e organizações sobre a questão do combate à corrupção e a relação que se tem com agentes públicos privados no Brasil. "Isso se dá através de tanques de pensamento [os também chamados think tanks] e de ONGs."
Organizações e Think Tanks na retaguarda
Durante as pesquisas do livro, Fernandes relata que o que mais lhe chamou a atenção foram justamente "esses tanques de pensamento [estrangeiros] que vão defender a Lava Jato e vão ter relações próximas com outros tanques de pensamento e organizações empresariais do Brasil. A gente pode falar do Instituto Milênio, [e do] próprio MBL [por exemplo]". Dessa forma, cria-se "uma espécie de hábitos em comum entre esses agentes, que vão trocar experiências, ideologias e ações políticas sociais [entre si]".
Outro ponto é que a operação pode ser vista também como um instrumento de guerra econômica, estando diretamente ligada à destruição das cadeias nacionais produtivas. "Hoje, ainda mais no mercado mundial globalizado (...), você precisa ter uma taxa de exploração, um desemprego maior na periferia para, nos países centrais, ter condições de imposição maior do capital sobre a classe trabalhadora. Então, a Lava Jato é [bem] funcional nesse sentido aqui no Brasil", afirma o escritor.
Ao aprofundar o aspecto ideológico cultural, o convidado ainda aponta que o lavajatismo é "uma renovação do discurso anticorrupção [historicamente] utilizado pelas direitas no Brasil. Ele ainda é funcional. Por isso, não é totalmente desgastado".
Genoino concorda e acrescenta: "a concepção de Justiça da Lava Jato não foi derrotada nem destruída. A concepção filosófica do inimigo, da destruição, do espetáculo, não foi alterada. [É preciso] uma reforma profunda".
Ainda, outro elemento chave e, por vezes, agressivo da operação, foi a mídia hegemônica. Sobre esse aspecto, Genoino aponta: "na ditadura, a tortura começa no corpo e chega na alma. Na Lava Jato (...) a tortura começa na alma e chega no corpo. É essa a diferença. E qual é o grande inimigo da Lava Jato? As pessoas. É o inimigo que [precisa] ser destruído. E qual é o instrumento? A imprensa".
Na visão de Fernandes, apesar do desgaste de agentes da operação, a pauta da anticorrupção ainda é muito funcional para a própria burguesia, principalmente nessa ordem de crise do neoliberalismo e do capitalismo em geral. "A gente está defendendo a corrupção? Pelo contrário. É possível combater a corrupção, mas garantindo direitos, a soberania nacional e o desenvolvimento econômico soberano", finaliza.
Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.
Edição: Martina Medina