No epílogo do seu livro Mudar: método (Todavia, 2024), depois de quase 240 páginas contando todos seus esforços de transformação, busca por ascensão social, sobrevivência à homofobia e à violência sexual, o escritor Édouard Louis passa a elencar uma série de imagens fragmentadas de seu próprio passado. Um passado do qual ele luta arduamente para escapar a qualquer custo - material, geográfica e emocionalmente.
A infância e juventude do jovem escritor foram traumatizantes. Em seu primeiro romance, O fim de Eddy (Tusquets, 2018), ele narra a opressão de um ambiente homofóbico asfixiante ao qual tentava inutilmente se adaptar para sobreviver. Uma das estratégias era a de repetir, sistematicamente, quase como uma oração para si mesmo: “Hoje eu vou ser um durão”. No livro seguinte, História da Violência (Tusquets, 2020), o escritor ficcionaliza um estupro que sofreu em Paris, quando finalmente sua vida parecia apontar para um caminho melhor.
Édouard Louis tem todos os motivos para abandonar a si mesmo e deixar o passado para trás. Ao longo da obra, ele busca saídas por meio da educação, atolando-se em livros, da convivência com mentores mais ricos e eruditos, deslocando-se do interior para a efervescência da capital francesa. Chegando até a mudar seu nome.
Não há, porém, qualquer orgulho de sua situação de pobreza. Há inadequação, desconforto, uma consciência intuitiva que o faz tentar se mover para fora da sua classe social de origem. Ao perceber as desigualdades castigando sua família e a si mesmo, ele deseja uma vida melhor.
“Aprendi a fazer apenas uma refeição por dia para economizar e, hoje, esse hábito me acompanha.”
Mas se até o nome ele deixa para trás, não há qualquer nostalgia da opressão, por que retomar essas imagens ao final do romance?
“Não tenho saudade da pobreza”, diz o narrador, “mas dos cheiros e das imagens”. A relação com o passado é ambígua.
Em uma dessas imagens, Édouard afirma que gostaria de voltar para os sábado nos quais pegaria o ônibus com seu primo Dylan para passar a tarde em um supermercado: “sem poder comprar nada além de uma latinha de Coca-Cola ou chá gelado, mas felizes por estar ali, cercados por uma abundância infinita de mercadorias que nunca poderíamos ter. E recomeçar essa viagem todos os sábados à tarde, sem exceção e sempre com o mesmo prazer a cada vez. A burguesia ia ao teatro ou à ópera. Para nós era o supermercado que nos fazia sonhar”.
Uma investigação profunda de si revela a verdade do mundo
Longe do solipsismo que marca o senso comum da contemporaneidade, (do exibicionismo monetizado, de algoritmização do real, da atomização das relações), as obras como a do jovem francês, que foi confirmado como um dos convidados da Flip 2024, estão inseridas numa longa tradição de busca pela verdade dentro de si mesmo.
Uma busca que não se resume a mera cognição instrumental, mas toma a forma de uma prática do cuidado, que envolve o ser humano integral. Ou seja, necessariamente ligada ao espaço social em que ele está inserido.
Nessa perspectiva, a liberdade não é qualquer quimera estéril, um sentimento interior trancado a sete chaves no coração do homem, mas a conquista de condições materiais e práticas para agir no mundo.
Vida ou morte
“Você tinha consciência de que, para você, a política era questão de vida ou morte”, escreve Édouard Louis no livro Quem matou meu pai (Todavia, 2023).
E continua:
“Um dia, no outono, o bônus de volta às aulas pago todos os anos às famílias como ajuda para a compra de material escolar, cadernos e mochilas, aumentou quase cem euros. Você ficou louco de alegria, gritou na sala: 'Vamos para a praia!', e fomos, os seis, no nosso carro de cinco lugares - fui dentro do porta-malas, como um refém nos filmes de espionagem, era desses que eu mais gostava. O dia todo foi uma festa. Entre aqueles que têm tudo, nunca vi uma família ir à praia comemorar uma decisão política”.
Alegria não é uma emoção inata, um bonequinho colorido de desenho animado trancado dentro cabeça, mas a condição material de descansar, se movimentar, comemorar. Viver.
O escritor conclui o raciocínio dizendo que percebeu, em Paris, anos mais tarde, que para a classe dominante e os poderosos uma emenda política não causava nenhum problema digestivo, ou triturava as costas. “Eles fazem a política, mas a política não tem quase nenhum efeito sobre suas vidas (...) Para os poderosos, na maior parte do tempo a política é uma questão estética: uma forma de pensar, uma forma de ver o mundo, de construir sua persona. Para nós, significa viver ou morrer”.
Tudo é movimento
Falta repertório histórico a quem apressadamente afirma que a escrita de si é um modismo narcisista.
Desde a “dúvida metódica” de Descartes (1596-1650), trancado em seu quarto buscando uma verdade capaz de sustentar o mundo dentro de si mesmo. E antes dele, os antigos cristãos-gnósticos, banidos como hereges pelo cânone do Vaticano, já buscavam uma luz interior que irradiasse a verdade sagrada dentro de si. No conhece-te a ti mesmo socrático, nas Meditações de Marco Aurélio (121 - 180 d.C), nos ensaios de Montaigne (1533-1592), ou nas milenares práticas não ocidentais, prevalece a postura ética, relacional, que ultrapassa o ego.
Aqui todo debate sobre identificação literal do eu biográfico com eu ficcional soa um tanto estéril e sem sentido, porque toma os efeitos pelas causas. Como um físico grandiloquente que tentasse explicar o erro de um relógio parado pelo fuso horário, quando na verdade o problema é a falta de pilha.
A investigação autobiográfica é sempre um relato de uma transformação, “uma mudança interna do narrador”, como diz a pesquisadora Diana Klinger, no seu livro Escritas de si, escritas do outro (7 Letras, 2012). É assim com o bildungsroman, ou com “Como me tornei quem eu sou” nietzscheano.
O gesto de escrita opera um corte, que inaugura uma diferença, uma distância entre o passado e o presente. Uma inevitável estranheza entre o eu que escreve e o eu biografado. Não é a identidade que gera uma verdade, isto é igual aquilo, logo “é real”. A verdade dialética surge da constatação da diferença: tudo é movimento. O eu torna-se outro.
Arte de viver
Foucault, que rastreou as práticas do cuidado de si desde a Antiguidade, disse que um dos primeiros gestos feitos com a invenção dos signos gráficos é tentar descobrir quem eu sou. Ao comentar as reflexões de Atanásio (296 - 373 d.C), o filósofo francês mostrou que a escrita de si era “como uma arma no combate espiritual”. Ao captar os movimentos da alma, “a escrita dissipa a sombra interior onde se tecem as tramas do inimigo”.
Já na Antiguidade, antes do cristianismo, com valores e procedimentos diversos, a escrita é um treino de si sobre si mesmo: uma técnica da vida, uma arte de viver. Como Foucault mostra em uma das cartas de Sêneca: “o papel da escrita é constituir um corpo (...), a escrita transforma a coisa vista ou ouvida ‘em forças e em sangue’”.
A escrita é uma prática relacional. Toda linguagem é um gesto que não escapa da política: não existe linguagem individual. É um campo de disputas, um phármakon, remédio ou veneno, como disse Derrida, na sua leitura desconfiada do desconfiado Fedro de Platão.
“Disseram-me que literatura nunca deveria soar como um manifesto político”, diz Édouard Louis nas primeiras páginas de Lutas e metamorfoses de uma mulher (Todavia, 2023), livro no qual narra as transformações e libertação de sua mãe de uma vida infeliz ao lado do marido. E prossegue: “e, no entanto, afio cada uma das minhas frases como se afia a lâmina de uma faca. Porque, sei agora, construíram o que chamam de literatura contra vidas e corpos como o dela. Porque, sei agora, que escrever sobre ela, escrever sobre a sua vida, é escrever contra a literatura”.
* Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e é autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023). www.marcosviniciusalmeida.com
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Nicolau Soares