A Universidade de Brasília (UnB) foi criada em 1962 e é o resultado do sonho e do trabalho incansável de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Quem acessa o site da UnB logo se depara com a sua missão “de produzir, integrar e divulgar conhecimento, formando cidadãos comprometidos com a ética, a responsabilidade social e o desenvolvimento sustentável”. Mas, no tocante à contratação de docentes negros e negras na UnB, alguém já se perguntou qual é a eficácia da Lei nº 12.990/2014, a Lei de Cotas Raciais, no acesso ao serviço público federal?
De forma pioneira, a UnB oportunizou à sociedade brasileira a possibilidade de acesso a um dos mais importantes textos sobre justiça social, que deveria ser lido, obrigatoriamente, por todos os estudantes secundaristas e universitários. Referimo-nos ao voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 186 (ADPF 186).
A ADPF 186 tratou da reserva de vagas no ensino superior, por parte da UnB, com base em critério étnico-racial (cotas). O texto do ministro é um encontro com o Estado Democrático de Direito e uma aula de civilidade a uma sociedade que se pretende democrática. Inaugura, no âmbito da União, uma nova fase da democratização do acesso à universidade pública. Todos os ministros e ministras do STF convergiram para o mesmo entendimento de que é chegada uma nova etapa do processo civilizatório. Em seguida, o Governo Federal apresenta à sociedade esse modelo virtuoso através da Lei nº 12.711/2012, instituindo as cotas raciais como uma subcota da escola pública.
Certamente, com essa história de ações afirmativas, o sonho de Darcy Ribeiro e de Anísio Teixeira via ali sua consolidação: estudantes de escolas públicas e negros, antes tão distantes do saber científico, protagonizaram um encontro da UnB com o povo brasileiro! A democratização do saber sempre foi vista por Darcy Ribeiro como uma mola propulsora do nosso desenvolvimento.
No entanto, na implementação da Lei nº 12.990/2014, a UnB dá as costas ao Brasil, à civilidade e à justiça social. Essa política de ação afirmativa, primeira e única, com recorte exclusivamente racial, inaugurou uma nova etapa da tão sonhada e efetiva integração da população negra à burocracia estatal. O objetivo da Lei nº 12.990/2014 é de assegurar a negros a reserva de 20% das vagas em concursos públicos para o provimento de cargos, se aplicando sempre que os editais dispõem de mais de três vagas (Art. 1º). A partir da Lei nº 12.990/2014, esperava-se reduzir desigualdades no acesso de pessoas negras ao mercado de trabalho do serviço público federal e promover justiça social.
O que aconteceu na Universidade de Brasília, após o dia 9 de junho de 2014, data de vigência da Lei nº 12.990/2014? A análise dos editais dos concursos públicos da UnB evidencia que, há uma década, mantém-se um esforço institucional para impedir o acesso das pessoas negras ao quadro de docentes da instituição, conforme os elementos trazidos a seguir.
Vale lembrar que a finalidade das leis é organizar uma sociedade, regulando a convivência, estabelecendo direitos e deveres aos cidadãos e ao Estado. Nesse ínterim, qual direito a Lei nº 12.990/2014 inaugurou? Uma política de ação afirmativa de recorte racial. Qual dever ela impunha às instituições que tinham a obrigatoriedade de implementá-la? Garantir a máxima eficácia da política de ação afirmativa!
Mesmo antes da Constituição Federal de 1988, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por meio do Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942, já estabelecia uma regra básica do Estado Democrático de Direito, em seu art. 3º: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.
É esperado que a “casa do saber”, a universidade, compreenda exatamente o que isso significa. Por qual motivo, então, a UnB bloqueou a efetiva implementação da Lei nº 12.990/2014?
Em 2015, o Governo Federal, por meio da Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial (Seppir), vinculada à Presidência da República, produziu um documento destacando a falta de implementação da norma (Nota Técnica 43). Dois anos mais tarde, o Supremo Tribunal Federal, através da Ação Declaratória de Constitucionalidade 41 (ADC 41), alertava sobre a necessidade de garantir a máxima eficácia da norma e apontava, de forma cristalina, que um dos principais inimigos das cotas raciais seria a própria administração pública (Vide Parte III. Controle de fraudes). Seria ela que tentaria fraudar a Lei nº 12.990/2014, conforme observado, de forma muito transparente, no voto do Ministro Relator Luís Roberto Barroso.
Em 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos apresentou à sociedade um relatório, produzido pela Escola Nacional de Administração Pública e pela Universidade de Brasília. No documento, os resultados da avaliação institucional não incomodaram a UnB. Não houve incômodo nem perplexidade em saber que o quadro docente não havia enegrecido. Não houve incômodo com o racismo institucional na UnB. Ninguém se importou! O relatório revelava que, nas instituições de ensino superior, de cada 1.000 potenciais beneficiários da lei de cotas raciais, apenas 5 tomaram posse.
Em 2024, o Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará), da Universidade Federal do Vale do São Francisco, apresentou à sociedade brasileira o relatório “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”. Sim, um cenário devastador de fraudes impediu o ingresso de pessoas negras como docentes na maioria das instituições de ensino superior.
Os resultados da análise de editais da UnB evidenciam que a lei atravessou os 10 anos de sua vigência sem que a instituição esboçasse qualquer reação à efetiva integração dos talentos negros e negras ao seu quadro de docente. Na implementação da Lei nº 12.990/2014, a UnB coloca na lata do lixo sua história virtuosa de construção de uma sociedade verdadeiramente democrática por meio do saber.
Os resultados apresentados se baseiam em dados e informações extraídas no período compreendido entre 9 de junho de 2014 e 9 de junho de 2024, elementos obtidos a partir do site da UnB pela equipe do Opará. No entanto, é importante alertar que, para a análise que segue, os dados de 2014 não foram capturados no site de concursos da UnB, pela falta de disponibilidade dos editais. Esse fato gera dúvidas se conseguimos alcançar todos os editais de concursos!
Após o início da vigência da Lei nº 12.990/2014, em 2014, localizamos 20 editais de concursos públicos para o cargo efetivo de Professor do Magistério Superior. Ao todo foram disponibilizadas 20 vagas, ou seja, foi aberta uma vaga em cada edital.
Se somadas, essas 20 vagas teriam garantido, caso a UnB tivesse implementado a Lei nº 12.990/2014, a contratação de 4 docentes negros ou negras, pelas cotas raciais. Considerando que a lei exige um mínimo de 3 vagas, no mesmo edital, para um mesmo cargo efetivo, e considerando que a UnB manteve o fracionamento de seus editais com apenas 1 vaga, ela se sentiu autorizada a não implementar a lei. O início da vigência da primeira lei de cotas raciais para o acesso ao serviço público federal não foi suficiente para que a UnB mudasse de comportamento e garantisse plena efetividade às cotas raciais.
Produzir concursos individuais com uma vaga apenas constitui uma forma eficiente de garantir a plena ineficácia da norma, transformando o planejamento em uma quimera. Universidades maiores do que a UnB conseguem fazer de um a dois editais por ano, concentrando o número de vagas para docentes e garantindo que mais vagas oportunizem a implementação da Lei nº 12.990/2014.
A lei veio para promover diversidade e inclusão nos cargos públicos. Para tanto, esperava-se que as instituições responsáveis por sua implementação promovessem a mudança no comportamento, que até não resultava em inclusão da população negra no serviço público, vide a justificativa do PL 6738/2013 (que, após aprovado, tornou-se a Lei nº 12.990/2014). Naquela época, constatava-se a presença de apenas 30% de servidores e servidoras que se autodeclararam negros. No entanto, apesar da vigência da lei, a UnB preferiu enfrentar o Estado Democrático de Direito e manter sua lógica de fracionamento de editais, como pode ser observado na tabela abaixo.
Ano |
Nº Editais |
Nº vagas |
Média |
2014 |
20 |
20 |
1,00 |
2015 |
97 |
121 |
1,25 |
2016 |
81 |
93 |
1,15 |
2017 |
42 |
47 |
1,2 |
2018 |
50 |
52 |
1,04 |
2019 |
80 |
82 |
1,03 |
2020 |
19 |
19 |
1,00 |
2021 |
45 |
49 |
1,09 |
2022 |
50 |
53 |
1,06 |
2023 |
33 |
35 |
1,06 |
2024 |
21 |
21 |
1,00 |
Tabela lista número de editais e número de vagas por ano e média de vagas/edital em concursos públicos para o cargo efetivo de Professor do Magistério Superior, na Universidade de Brasília (UnB) / Fonte: dados da pesquisa
Identificamos a publicação no Diário Oficial da União (DOU) de 18 editais em um único dia, 31/08/2016, e 14, no dia 03/05/2019. Em nenhum desses editais foi prevista reserva de vagas às pessoas negras. Durante os 10 anos de implementação da Lei nº 12.990/2014, na UnB foram previstas apenas 5 vagas imediatas para as cotas raciais [Edital 4/2016 (06/01/2016); Edital 72/2016 (03/03/2016); Edital 258/2016 (20/06/2016); Edital 296/2022 (01/09/2022); Edital 136/2023 (19/10/2023)].
Estranhamente, também, no relatório sobre a implementação da Lei nº 12.990/2014 produzido pela Escola Nacional de Administração Pública em parceria com a UnB, financiado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 2021, a universidade, mesmo tendo reservado até então apenas 3 vagas para cotistas, se colocou como uma das instituições que mais contratou docentes negros (10ª posição), vide a página 35 do relatório.
Até 2018 havia uma certa “sinceridade” por parte da UnB em relação aos direitos da população negra. A instituição não se sentia obrigada a evidenciar à população negra sobre os direitos que ela não alcançava, a lei nem mesmo era citada em seus editais. A partir de 2019, o cinismo começa a prevalecer, pois 96,77% dos editais (240) tiveram apenas uma vaga e a instituição pontuava: “Somente haverá reserva imediata de vagas para os candidatos que se autodeclararem pretos ou pardos nos cargos/especialidades com número de vagas igual ou superior a 3 (três)”. Com editais sequenciais de uma vaga sendo produzidos no mesmo dia, semana ou mês, era inviabilizada qualquer possibilidade de assegurar direitos à população negra no acesso ao cargo de Professor do Magistério Superior.
Ao impedir o acesso das pessoas negras ao seu quadro de docência, a UnB prestou um desserviço à luta antirracista e colaborou de forma decisiva para o Brasil ser mais desigual, contrariando o sonho de Darcy Ribeiro e negando sua história. Qual o motivo de tanta resistência? A leitura da entrevista do Prof. Dr. José Jorge de Carvalho (UnB) nos ajuda a compreender melhor a resistência da instituição a uma cultura antirracista.
Para fazer um reencontro com sua história, a UnB precisará reparar todas as vagas que seriam destinadas às cotas raciais de forma voluntária; assim como fizeram a Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e a Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Essa última, com proposição do Opará, promoveu a discussão no Conselho Universitário, sendo aprovada sem nenhum voto contrário. Autonomia universitária deve ser para promover justiça, e não sua antítese!
Receber recurso de descentralização orçamentária do Ministério da Igualdade Racial (Termo de Execução Descentralizada nº 26/2023) para promover políticas de igualdade racial, como no Projeto Redes Antirracistas, lançado no dia 5 de julho de 2024, não será suficiente, ou será?
Por fim, caso seja aprovado o novo projeto de lei das cotas raciais no concurso público (PL 1.958/2021), que estabelece a aplicação da regra das cotas quando houver um mínimo de 2 vagas no certame, se mantido o padrão de condução dos concursos públicos da UnB, a instituição estará dispensada de implementar a norma, como aconteceu em 91,63% de seus editais, que só possuem 1 vaga. Seria essa a compreensão de redução de desigualdades da Universidade de Brasília, no século XXI?
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Acesse os editais analisados na pesquisa em: https://www.observatorioopara.com.br/docs/Editais_UnB_2014_a_2024.pdf.
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*Edmilson Santos dos Santos é professor doutor da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco). Integrante do Opará (Observatório das Políticas Afirmativas Raciais).
**Ana Luisa Araujo de Oliveira é professora doutora da Univasf (Universidade Federal do Vale do São Francisco). Integrante do Opará (Observatório das Políticas Afirmativas Raciais).
***Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Integrante do Opará (Observatório das Políticas Afirmativas Raciais).
****Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Rodrigo Chagas