imóvel no centro

Empresa de amigo de Ricardo Nunes é beneficiada com desapropriação de prédio em São Paulo

Prédio tem dívida de R$ 10 milhões; especialistas criticam que indenização é “prêmio” para quem deixa imóvel ocioso

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Para especialistas, prefeito não usou o procedimento correto - Rovena Rosa/Agência Brasil

A prefeitura de São Paulo vai pagar cerca de R$ 20 milhões pela desapropriação de cinco imóveis no centro da cidade, sendo um deles da empresa de um amigo do prefeito Ricardo Nunes (MDB). Apuração da Agência Pública mostra que Fauzi Nacle Hamuche é sócio-administrador da Axel Empreendimentos Imobiliários. A empresa é a dona de um edifício na rua General Carneiro, no centro histórico de São Paulo, que será desapropriado e destinado para Habitação de Interesse Social (HIS).

Em junho deste ano, Nunes anunciou a desapropriação de cinco imóveis ociosos na região central da capital. Segundo informações da própria prefeitura, os imóveis tinham sido notificados por não cumprirem a função social e serão repassados para a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab-SP), que vai transformá-los em Habitação de Interesse Social através de parceria público-privado.

Segundo o Portal da Dívida Ativa de São Paulo, o imóvel da empresa Axel que será desapropriado está com uma dívida em aberto superior a R$ 10 milhões. Em outubro de 2023, a Vara de Execuções Fiscais da Justiça do Estado de São Paulo havia declarado a indisponibilidade dos bens da Axel: na prática, isso bloqueia o direito da empresa ao imóvel. A reportagem apurou que a Axel tem 65 imóveis registrados na cidade de São Paulo pelo CNPJ da empresa e outros 41 pelo CPF de Hamuche.

Além de Hamuche, a empresa tem como sócio uma outra empresa chamada Vyvus, que tem Victor Fauzi Hamuche, filho de Fauzi, como representante legal e sócio-administrador. A empresa Vyvus tem também outras duas empresas na sua composição societária: a Xastar, que tem Victor como administrador e Fauzi como sócio-administrador; e a Genesis II, que tem Fauzi como sócio-administrador.

A reportagem procurou Hamuche, mas não obteve resposta até a publicação.

Questionada sobre o processo de desapropriação, a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL) informou à reportagem que os imóveis serão desapropriados com recursos do Tesouro Municipal. Segundo a secretaria, ao todo, os imóveis têm valor venal estimado em R$ 35 milhões, de acordo com as referências da prefeitura de 2023. O total de débitos de IPTU que consta no Portal Dívida Ativa para os cinco imóveis é de cerca de R$ 16 milhões. A prefeitura não respondeu quanto a empresa de Hamuche irá receber pela desapropriação do seu imóvel nem confirmou o valor da dívida do prédio da Axel.


Prédio de amigo de Nunes localizado no centro de São Paulo tem dívida de R$ 10 milhões / José Cícero/Agência Pública

Desapropriação beneficia donos de imóveis parados, critica pesquisadora

Para especialistas ouvidos pela Agência Pública, apesar de o anúncio parecer algo positivo, o prefeito Ricardo Nunes não teria usado o procedimento correto para as desapropriações e estaria dando um “prêmio” para os proprietários, que estavam havia anos sem usar os prédios e acumulando dívidas.

É o que diz Bianca Tavolari, professora da Fundação Getulio Vargas (FGV) e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “A pessoa deixou o imóvel vazio, te notifiquei, mandei usar, mandei construir, mandei parcelar, cobrei cinco anos de IPTU de você e, no final, ainda te pago em dinheiro previamente? Melhor coisa para esse proprietário não fazer nada”, diz. “Para o proprietário é maravilhoso, é ganhar milhões […] Você não fez nada e a prefeitura compra de você, é um prêmio”, completa.

Tavolari explica que a desapropriação para proprietários que não cumpriram a função social da propriedade deve ser sancionatória, ou seja, uma forma de punir o dono. “Nesses casos, a prefeitura pode, primeiro, notificar o proprietário. Você tem um imóvel, um terreno vazio, que não construiu por dez anos, [em seguida] você recebe uma notificação da prefeitura dizendo que seu imóvel descumpre a função social da propriedade. O segundo momento é a possibilidade de cobrança de IPTU progressivo no tempo. A prefeitura vai começar a cobrar IPTU, ou seja, o município não quer arrecadar, quer que a pessoa use [o imóvel], quer desincentivar essa conduta de manter vazio”, explica.

“Só depois de todos esses passos, o poder público poderia falar ‘agora eu vou te desapropriar de maneira sancionatória’”, completa. Nesses casos, a indenização seria paga com títulos da dívida pública, que devem ser previamente aprovados pelo Senado Federal e resgatados em até dez anos pelo proprietário.

Fernando Bruno, mestre e doutor em direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor do antigo Departamento de Controle da Função Social da Propriedade, durante a prefeitura de Fernando Haddad em São Paulo, concorda que existem outras formas de fazer o processo sem que o proprietário que deixou o imóvel ocioso seja beneficiado.

“O próprio Estatuto da Cidade determina que, enquanto a prefeitura não desapropriar com o pagamento de títulos, a alíquota progressiva do IPTU continua. O proprietário vai continuar pagando uma alíquota maior porque o imóvel dele está ocioso. A segunda coisa é […] o contato com o Senado para pedir uma exceção por causa da função social da propriedade.”

Bruno explica que a estratégia que o prefeito Ricardo Nunes usou não é ilegal, mas “uma política urbana que, ao invés de forçar o proprietário a dar uma função social, o brinda, lhe dá de brinde a desapropriação do seu imóvel”, diz. “Eu tenho aquela coisa enorme lá que pode ter vários usos e que está ocioso, e ainda sou premiado com a prefeitura tirando o mico da minha mão”, critica.

A Agência Pública questionou a prefeitura sobre a estratégia usada para a desapropriação dos cinco imóveis. Em resposta, a SMUL informou que os critérios foram: ingressar na quinta alíquota de IPTU Progressivo no Tempo, o imóvel estar localizado na região central do município e ser apto a receber unidades habitacionais de interesse social ou implantação de equipamentos públicos.

Hamuche e Nunes: confrades

Fauzi Nacle Hamuche tem uma relação bem próxima com o prefeito de São Paulo. Hamuche é presidente da Confraria de Amigos do Vinho Eduardo Saddi (Caves) e, em seu Instagram, tem muitas publicações nas quais aparece ao lado de Nunes e o chama de “confrade”.

Em um dos vídeos encontrados pela reportagem, de maio de 2023, Hamuche apresenta Nunes em uma cerimônia de posse do presidente do Conselho Deliberativo do Clube Atlético Juventus, na Mooca, zona leste da cidade, e diz que o prefeito “está revolucionando a cidade de São Paulo e tem feito coisas que a publicidade não transparece, mas que virão à tona no fim do primeiro mandato”. No vídeo, Hamuche diz também que “todos aplaudirão e farão com que ele seja reeleito no primeiro turno dessas eleições”.

Em foto mais recente, publicada no dia 27 de maio deste ano, Hamuche aparece ao lado de Nunes, do cientista político Rubens Figueiredo e do secretário de Justiça de São Paulo, Fernando José da Costa. Na legenda, Hamuche faz elogios a Nunes e à sua gestão, chamando o confrade prefeito de “probo público com inteligência suficiente e religiosidade nas suas condutas”.

Na mesma publicação, Hamuche diz que os presentes na reunião sugeriram um projeto de túneis entre as avenidas Faria Lima e Juscelino Kubitschek e um programa de reeducação dos motoqueiros no trânsito. A Agência Pública perguntou para a prefeitura se o projeto está sendo considerado, mas não recebeu resposta. A reunião não estava na agenda oficial do prefeito.

Em junho de 2023, Hamuche apareceu ao lado de Nunes, do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e do ex-chefe da Secretaria de Comunicação Social do governo federal Fábio Wajngarten. Na ocasião, o empresário escreveu “os apoios para a reeleição caminham rumo à vitória”. Já em maio do ano passado, Hamuche publicou uma imagem da capa da Revista Crusoé, que entrevistou Nunes, na qual a publicação destaca uma fala do prefeito: “Boulos invade casas, eu as construo”.

No anúncio das desapropriações, o prefeito usou uma expressão parecida à de Hamuche, ao falar que está fazendo “aquilo que a sociedade quer e deseja, que a gente sempre esteja dentro da lei, sem invasão, sem desordem, mas cumprindo a legislação em sua plenitude”.

Segundo Tavolari, o prefeito estaria fazendo uma distinção falsa entre legalidade e ilegalidade. “Primeiro que as ocupações não são ilegais. Se você está ocupando, é porque existe um princípio constitucional de cumprimento da função social da propriedade e cumpre essa função dando destinação para o imóvel, que esse proprietário não deu, você está efetivando a Constituição. A segunda coisa é a ideia de que desapropriando dessa maneira ele está cumprindo a legislação. Não é verdade. Ele fez uma escolha de premiar quem descumpre a função social da propriedade”, diz.

A reportagem perguntou os motivos pelos quais Hamuche se faz tão presente em eventos do prefeito e qual sua contribuição para a gestão de Ricardo Nunes, mas a prefeitura não respondeu.

A Agência Pública perguntou também se o fato de o proprietário ter uma relação próxima com o prefeito foi um dos motivos para que o imóvel tenha sido um dos primeiros a serem desapropriados, mas a prefeitura não respondeu aos questionamentos.

Quais são os outros imóveis

Dos outros quatro imóveis que serão desapropriados pela prefeitura, dois também estão localizados no centro histórico, na rua Floriano Peixoto. Os prédios são vizinhos e pertencem à mesma empresa, a Caxemira – Gestão de Bens Próprios Participações. Os sócios-administradores da empresa são Carlos Donizete de Moraes e Cleide Barbosa Giro de Moraes.

Outro imóvel que será desapropriado fica na região do Campos Elíseos, na alameda Barão de Limeira, e pertence à empresa S. G. Empreendimentos Imobiliários. A empresa tem Sarah Siqueira Matheus de Queiroz Guimarães como sócia-administradora e André Siqueira Matheus como sócio.

O quinto imóvel do grupo fica no bairro da República, na rua Doutor Teodoro Baima. Os proprietários são José Luiz Correia e Suely de Fátima Correia.

A reportagem procurou a Coordenadoria de Controle da Função Social da Propriedade para saber quais critérios foram utilizados e se existem planos para mais desapropriações desse tipo na cidade. O órgão não respondeu aos questionamentos até o momento da publicação.