A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) anunciou na última quarta-feira (17) a nomeação de um representante sênior na Ucrânia, que atuará como coordenador da interação da aliança militar com as autoridades ucranianas em Kiev. A medida faz parte dos resultados da Cúpula da Otan, realizada entre os dias 9 e 11 de julho nos Estados Unidos, que definiu o aumento da presença da aliança no país.
Durante a cúpula em Washington, a Otan aprovou uma ajuda de no mínimo 40 bilhões de euros à Ucrânia em 2025, e os EUA, em particular, prometeram novos sistemas de defesa a Kiev. Além disso, a aliança militar ocidental reafirmou a “irreversibilidade do caminho da Ucrânia" para ingressar no grupo.
A Rússia reagiu ao reforço da aproximação entre a Otan e a Ucrânia. Segundo o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, a Rússia está lidando “com uma aliança muito poderosa de estados que seguem uma política hostil” contra Moscou e que “não escondem isso”. De acordo com o porta-voz, os resultados da última cúpula da Otan são ameaçadores para a Rússia.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o co-coordenador do Centro de Estudos em Conflito e Paz da Universidade de São Paulo (CCP-USP), Thiago Babo, aponta, entretanto, que, em termos práticos, no atual momento a entrada da Ucrânia na Otan é inviável, porque o próprio fato da guerra em curso impede a adesão de novos membros na aliança militar.
“A Ucrânia está em um conflito e o próprio tratado da Otan impede que isso aconteça. Então qualquer adesão real da Ucrânia só vai acontecer com o término formal da guerra”, afirma.
Ao mesmo tempo, o processo de anexação das regiões ucranianas de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye por parte da Rússia, criou elementos complicadores para os esforços de incorporação da Ucrânia à Otan, pois, como afirma Thiago Babo, o próprio estatuto da aliança “diz que nenhum Estado pode vir a ser membro da Otan caso ele tenha bases estrangeiras no seu território”. Segundo o pesquisador, “nenhum Estado pode vir a ser membro da Otan se tiver em seu território movimentos separatistas”, algo que é reconhecido pela própria Ucrânia.
Na última segunda-feira (15), o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, disse estar convencido de que Kiev será convidada para a aliança do Atlântico Norte imediatamente após o fim da guerra. O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, por sua vez, expressou a esperança de que nos próximos 10 anos a Ucrânia entrará na aliança.
De acordo o professor de Relações Internacionais da UFPB Augusto Teixeira, é fundamental entender que “a afirmativa de que o futuro da Ucrânia esteja na Otan é retórica”. Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista reitera a impossibilidade desta adesão acontecer com o conflito em curso, mas também destaca que, mesmo com o fim da guerra, a controvérsia sobre a reconfiguração territorial das regiões incorporadas pela Rússia são um fato complicador para estes esforços.
“A reacomodação territorial do leste ucraniano, caso a Rússia expanda o seu controle territorial dificilmente colocará a Ucrânia em uma situação pós-beligerância que permita aquilo que restar do Estado ucraniano entre tranquilamente no âmbito da Otan”, afirma.
“O segundo aspecto que é relevante é o fato de que existe a sombra, o espectro que ronda a Otan, que não é espectro da Rússia, não é o espectro da China, é o espectro de Donald Trump, ou seja, uma perspectiva bastante plausível de que o candidato republicano possa vencer e gerar uma grande névoa no futuro da aliança. O pleito de Trump em relação à Otan é muito maior que apenas o orçamento, mas uma reconfiguração das responsabilidades dos EUA na segurança europeia”, acrescenta Augusto Teixeira.
Vale lembrar que a expansão da influência da Otan dentro da Ucrânia, logo, cada vez mais parto das fronteiras da Rússia, foi o principal motivo sustentado por Moscou para iniciar a invasão no país vizinho em 2022. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, declarou durante a última semana que, embora declare a admissão garantida da Ucrânia na aliança, a Otan não tem em conta “a principal preocupação da Rússia”. “Isto sugere que ainda não existem pré-requisitos para negociações [sobre a Ucrânia]”, enfatizou Peskov.
'Moscou nunca recusou diálogo'
Ao mesmo tempo, a última semana também foi marcada pelo aceno do presidente ucraniano de que “representantes da Rússia” deveriam participar da próxima cúpula de paz sobre a guerra. O Kremlin reagiu à declaração e reafirmou que Moscou nunca recusou o diálogo, mas, ao mesmo tempo, disse que não está claro “o que poderia estar em cima da mesa para discussão”, dado que é inaceitável para a Rússia a adesão da Ucrânia à Otan.
O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, durante coletiva de imprensa na ONU na última quarta-feira (17), comentou as perspectivas de uma nova cúpula de paz sobre a Ucrânia, mas manifestou ceticismo sobre as condições ocidentais para possíveis negociações com a Rússia.
“Tem havido conversações sobre uma segunda conferência [sobre a guerra Ucrânia]. Não só a Suíça foi mencionada, mas também outros países que poderiam tornar-se uma plataforma para esta segunda rodada de conferência. Mas ao falar sobre o que irão fazer, todos, de uma forma ou de outra, formularam uma abordagem absolutamente unilateral, absolutamente inaceitável para nós e para muitos outros sinceramente interessados na paz”, afirmou.
"Espero que em algum momento se chegue a um acordo sobre a segurança europeia e que, neste contexto, a crise ucraniana seja resolvida. É claro que analisaremos com muito cuidado os termos e faremos questão de incluir neste documento salvaguardas contra novas interpretações desonestas que não beneficiam a obtenção de um acordo”, acrescentou.
Para o professor de Relações Internacionais Augusto Teixeira, apesar de ser do interesse da Rússia abrir a mesa de negociações, dada a atual conjuntura no campo de batalha, “ao que aparenta no momento, a Rússia ainda não tem urgência para ir à mesa de negociação”. Segundo ele, isto se deve ao fato de que a Rússia se encontra em uma posição de vantagem ofensiva do ponto de vista militar, logo, está em um processo de ampliação de vantagem de barganha.
“A vitória militar, o sucesso militar no campo de batalha, constrói condições para a barganha política, e, nesse sentido, a Rússia, que no momento se encontra em uma condição de ofensiva em diversas áreas da frente, de um lado, sinaliza condições para a terminação do conflito, mas são condições politicamente intragáveis para o outro lado, seja porque transcendem as capacidades de escolha e barganha da Ucrânia, porque dizem respeito à política da aliança atlântica para a Ucrânia, dado que a Otan na sua declaração final da cúpula deste ano reafirma a política de portas abertas”, argumenta.
Antes das eleições, nada muda
Independentemente das declarações oficiais sobre a possibilidade ou não de negociações, há um consenso entre os analistas de que nada deve alterar as condições da guerra antes das eleições dos EUA. Isso porque uma eventual vitória de Donald Trump poderia alterar o rumo da política estadunidense em relação à guerra e à Otan.
Em particular, o político escolhido para ser o vice de Trump, JD Vance, é quem defende de maneira mais enfática o fim do apoio financeiro dos EUA à Ucrânia. A posição foi elogiada pelo chanceler russo, Serguei Lavrov. Para o coordenador do Centro de Estudos em Conflito e Paz da USP, Thiago Babo, a possibilidade de resolver a guerra da Ucrânia só pode partir justamente de uma mudança de posição dos EUA ou da Rússia.
Segundo ele, a possibilidade de uma resolução "rápida" do conflito “diz respeito muito mais a uma saída ou uma limitação do apoio americano do que uma resolução entre as lideranças políticas que nós temos hoje em dia”.
“Do jeito que está, me parece que a guerra vai perdurar mais ainda, até um dos dois lados, Rússia ou EUA, cederem por não aguentar mais, mas é um jogo de longo prazo, e um jogo de longo prazo não favorece nem um pouco, infelizmente, a Ucrânia. Por isso eu acho que é um conflito de difícil resolução, porque envolve questões estratégicas que estão em jogo desde os anos 1950. Então é uma coisa um pouco mais intrínseca ao próprio entendimento de política externa destes países do que uma coisa pontual”, completa.
Edição: Lucas Estanislau