O que há com a humanidade? A questão pode ser dirigida para qualquer coisa ou sobre qualquer drama do planeta, mas é uma pergunta que não esqueço nunca e é sobre um assunto específico. Ela veio de uma amiga, depois de ser abusada quando caminhava nas ruas do seu bairro em Porto Alegre há mais de 40 anos. Negra, batalhadora, modesta e tímida. Muito bonita, mas sabia que precisava lutar muito para conseguir alguma coisa na vida. Conseguiu.
Se formou na universidade em Serviço Social e hoje está feliz. Mas nunca esqueceu. E nem denunciou. Eram outros tempos. Foi vítima de estupro. A pergunta que me formulou passou. Foi um desabafo do dia e da hora. Não esqueci também, mas não ajudei em nada. Não sabia a dimensão da afronta e do caos psíquico e estrutural que uma agressão desta magnitude provoca.
Duas séries da Netflix que estão em evidência abordam a violência sexual contra mulheres, com direção, roteiro e enredos sérios e bem construídos: “Alba” e “Não nos calaremos”, as duas produzidas na Espanha. São recomendáveis para quem se interessa pelo assunto. A humanidade que a minha amiga pergunta lá no início se refere aos homens.
Eles acham as mulheres frágeis, que podem abusá-las sem qualquer temor ou consequência, que tudo passa até o próximo estupro. Não pensam na sua mãe, irmã, prima, que também podem sofrer o mesmo tipo de ataque. São egoístas, encaram o mal que fazem como se fossem tomar qualquer cerveja ali na esquina. Claro, estamos falando da humanidade de certos homens. É um problemão, mas ainda tem muita gente boa no mundo e não entra nesta “vibe”, como dizem os jovens em suas linguagens estrangeirísticas.
“Alba” é uma jovem que sai para se divertir com amigos, mas no dia seguinte acorda na praia desorientada e percebe a violência sexual. Atordoada com a situação, ela procura ajuda e vai até a delegacia denunciar o que aconteceu. Mas sem memória do que passou durante a noite, já que foi drogada, os policiais não levam muito a sério seus relatos. Com alguns fragmentos sobre o ocorrido, ela descobre que os culpados pelo estupro são amigos do seu namorado, jovens de família rica e poderosa. Para conseguir justiça contra os que a abusaram, ela precisará lutar.
“Não nos calaremos” narra o drama de uma adolescente rebelde que vê sua vida virar de cabeça para baixo após fazer uma denúncia de abuso sexual no colégio. Baseada no romance "Ni una más" do autor Miguel Sáez Carral, a série espanhola conta a história de Alma, uma jovem de 17 anos que toma a atitude de pendurar uma faixa no portão da escola com os dizeres "aqui se esconde um estuprador" para denunciar um abuso que sofreu. A partir disso, uma investigação criminal coloca suas relações com amigos, familiares e sua própria sanidade à prova.
As duas séries fizeram e fazem sucesso na Europa e mundo afora pela Netflix e mostram a Espanha na vanguarda e na referência no combate a qualquer tipo de violência sexual. A Lei da Liberdade Sexual, aprovada em 2022, ficou conhecida como “Solo Sí es Sí” – Só Sim é Sim – e popularmente “No Es No” – Não é Não. A lei pegou rápido.
Prova disso é que o ex-craque do Barcelona e da Seleção Brasileira, Daniel Alves, ficou preso mais de um ano antes de ser julgado. Hoje, ele está lá, sem passaporte e com direitos limitados e um pouco menos rico. Pagou uma multa milionária e perdeu a moral em todo o mundo do futebol. O mesmo aconteceu com Robinho, ex-Santos, na Itália.
A nova legislação diz que “só se entenderá que há consentimento quando este tiver sido livremente expresso por meio de atos que, diante das circunstâncias do caso, expressem claramente a vontade da pessoa. Pela legislação, condutas sexuais sem consentimento são consideradas agressões e passíveis de punição com penas que dependem das circunstâncias em que ocorreram. Na região da Catalunha, cuja cidade principal é Barcelona, existe um protocolo que combate agressões sexuais e violência contra as mulheres em espaços como discotecas e bares, chamado “No Callem”, ou “Não Nos Calaremos”, o mesmo nome do seriado.
Os locais que aderem à iniciativa recebem treinamento sobre como aplicar as medidas e acompanhar os casos. Os donos e trabalhadores das instalações passam a dispor de ferramentas para prevenir e identificar possíveis situações de agressões e assédios sexuais, e prestar o adequado atendimento à vítima. Um ponto central é o foco na atenção à vítima, e não no agressor.
RS e Brasil
Aqui a humanidade dos homens também anda em baixa. Nas enchentes que abalaram o RS nos meses de maio e junho – cujas consequências ainda vão perdurar por muito tempo –, mais de dez pessoas foram presas por abusos sexuais dentro dos abrigos na região metropolitana. “Nem na tragédia os homens conseguem se manter equilibrados sexualmente. Alguns são devassos ao extremo”, me disse uma responsável por abrigo que visitei no início das cheias. As vítimas são todas menores de 18 anos e familiares dos suspeitos. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado, as verificações dos casos indicaram que todas as vítimas já sofriam abusos sexuais no ambiente doméstico e as ações criminosas foram reiteradas dentro dos abrigos.
A enchente não foi caso isolado. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado nos três primeiros meses de 2024, seis mulheres procuraram a polícia por dia para relatar um caso de estupro, ou um registro de crime sexual foi realizado a cada quatro horas. Foram 559 ocorrências entre janeiro e março.
No comparativo com o mesmo período de 2023, quando foram 739, houve redução de 24,3% nos números. A média é formada somente por aqueles casos que chegaram ao conhecimento dos órgãos de segurança. No entanto, boa parte dos delitos cometidos contra mulheres por razões de gênero é impactada pela subnotificação. Nos casos de crimes sexuais, isso não é diferente.
No Brasil, a cada oito minutos uma mulher é estuprada: 74,5% delas são consideradas vulneráveis por serem menores de 14 anos ou possuírem enfermidade, deficiência mental ou outra causa que impeça o consentimento. As informações são do relatório Violência contra Meninas e Mulheres realizado em 2023, feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. A estatística de estupro é a maior desde 2019, quando o instituto iniciou essa pesquisa.
O primeiro semestre deste ano registrou 34 mil casos de estupro de meninas e mulheres – o que representa um aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano anterior. Esses dados correspondem aos registros de boletins de ocorrência em delegacias de Polícia Civil de todo o país. Porém, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) concluiu, em 2019, que há uma alta subnotificação desses casos no Brasil. O Ipea estimou que apenas 8,5% dos casos de estupro que ocorrem no país são registrados na polícia. As leis brasileiras ainda são frágeis. Há ainda muito ou quase tudo a se fazer para que estes casos não se repitam.
**Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko