Qualquer unidade de saúde do SUS deve ser cogerida por usuários, trabalhadores e gestores
O início do processo de municipalização dos 6 hospitais federais que funcionam atualmente no Rio de Janeiro foi conturbado. No mês passado, o Ministério da Saúde anunciou uma reestruturação dessas unidades de saúde, que teve início com o Hospital Andaraí. A portaria foi publicada no dia 5 de julho.
Trabalhadores e trabalhadoras reagiram de imediato. Em protestos, alertaram que a mudança traz o risco de mais precarização, terceirização dos serviços e desfinanciamento. As manifestações também apontaram falta de diálogo para a decisão.
Entidades de classe divulgaram notas de repúdio e o Sindicato dos Trabalhadores em Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social do Rio de Janeiro (Sindsprev/RJ) ingressou com uma ação popular pedindo anulação do ato.
Segundo a portaria do Ministério da Saúde, a gestão do hospital será compartilhada entre o Ministério da Saúde e a Prefeitura do Rio por um período de 90 dias, que pode ser prorrogado conforme necessário. Nesse período, ambos serão responsáveis pelo provimento e gestão de pessoal, abastecimento de material de consumo e manutenção dos bens.
Em entrevista ao podcast Repórter SUS, o professor de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), Paulo Capel Narvai , afirmou que o processo falhou em não abrir espaço para ouvir servidores e servidoras que atuam na unidade.
Ele ponderou, no entanto, que a gestão federalizada não atende aos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e causa distorções. A organização do sistema prevê gerenciamento compartilhado entre estados, municípios e União.
"Os hospitais federais no Rio de Janeiro, na maioria, atendem à população do Rio de Janeiro e deveriam estar sob comando administrativo do município, como em qualquer outra capital. É uma violação à autonomia do município do Rio de Janeiro não estar sob seu comando, como previsto na Constituição."
Segundo o professor, é preciso buscar alternativas dialogadas, com foco na gestão participativa, que também é um princípio do SUS
"O Ministério da Saúde deveria ter conduzido o processo com mais participação das representações dos trabalhadores. Mas por outro lado, eu sinto que há um certo vazio propositivo. As alternativas à federalização não surgem para fazer essa descentralização sob controle popular e participação dos trabalhadores, pela via da administração pública e sem privatização."
A portaria prevê que, ao término do prazo ou após a declaração conjunta das autoridades de saúde, a responsabilidade passará a ser exclusivamente municipal. Os contratos administrativos federais em vigor serão mantidos até o fim de suas vigências ou até que a Prefeitura solicite seu encerramento, com possibilidade de prorrogação excepcional.
Além disso, a decisão determina que o Ministério da Saúde ajustará os componentes financeiros necessários para a descentralização, garantindo os recursos adequados para o município.
Leia a entrevista a seguir ou ouça no tocador de áudio abaixo do título desta matéria.
Brasil de Fato: A existência dos hospitais federais é uma situação incomum para o Sistema Único de Saúde. Por que essa situação no Rio de Janeiro é tão diferente e estranha ao desenho que foi pensado para o SUS?
Paulo Capel Narvai: É uma situação anômala que vem sendo postergada. Decisões vêm sendo adiadas há mais de três décadas. O SUS foi criado pelos constituintes em 1988, em uma sessão histórica. Depois, em 1990, foram aprovadas as duas leis do sistema.
Com a criação do SUS, houve uma definição legal de que o sistema deveria ter um comando único em cada esfera de governo. No município, tudo de saúde deveria estar com o município, tudo do estado com o estado e o comando nacional com o Ministério da Saúde.
Essa definição foi muito importante e é o que está na Constituição. O Ministério da Saúde deixou de ser gestor direto de serviços de saúde. Na maioria das capitais brasileiras esses serviços foram integrados. Não há hospital federal em São Paulo e nem mesmo em Brasília, a capital federal.
Hospitais não são todos iguais. Temos hospitais gerais do SUS, hospitais especializados, hospitais de ensino ligados a universidades e hospitais de pesquisa. Institutos de pesquisa, que têm leitos por interesse de pesquisa, são chamados de hospitais, mas são exceções. A única exceção à descentralização é a saúde indígena, coordenada pela Sesai, um subsistema específico do SUS.
Os hospitais federais no Rio de Janeiro, na maioria, atendem à população do Rio de Janeiro e deveriam estar sob comando administrativo do município, como em qualquer outra capital. É uma violação à autonomia do município do Rio de Janeiro não estar sob seu comando, como previsto na Constituição.
Quais são os problemas que esse modelo ocasiona?
Quando o SUS foi criado, havia essa perspectiva de descentralizar. No Brasil, descentralização é entendida como descentralização dentro da República, do poder federal – muito centralizado – para estados e municípios. No plano internacional, descentralização pode ser entendida quase como sinônimo de privatização.
No período da a reforma sanitária, quando discutíamos o sistema de saúde que queríamos criar, havia uma dificuldade que apontava que quanto mais próximo do nível local as decisões de saúde forem tomadas melhor. Supunha-se que seriam decisões mais democráticas.
No entanto, há uma armadilha aí. A descentralização da saúde para os municípios não garantiu decisões mais democráticas. Muitos prefeitos se recusam a ser gestores do SUS, transferindo recursos do SUS para o setor privado.
Em muitos municípios, a prestação e a execução dos serviços de saúde são feitas pela administração direta, como deve ser, como foi preconizado. Mas, em muitos outros, isso foi terceirizado. Aí há um problema, pois recursos públicos são geridos por entidades privadas, o que vai contra a ideia de um sistema estatal.
No caso do hospital do Andaraí, o primeiro federal do Rio de Janeiro que vai ser municipalizado, os trabalhadores trazem preocupações justamente com a terceirização. Há caminhos para combater esse risco?
Sim, há saídas. É possível descentralizar sem privatizar. Reconheço a legitimidade das preocupações dos trabalhadores e me identifico com elas. Eles têm razão nas preocupações que têm. Acho que o Ministério da Saúde errou na condução desse processo, no que diz respeito à participação dos trabalhadores.
Eu defendo a gestão participativa no SUS, inclusive a cogestão. Qualquer unidade de saúde do SUS deve ser cogerida, com representação dos usuários, dos trabalhadores e do gestor. Nessa perspectiva é que digo que o Ministério da Saúde não conduziu de forma apropriada. Deveria ter feito se de fato está empenhado em ter gestão participativa no SUS.
Mas por outro lado, eu sinto que há um certo vazio propositivo. As alternativas à federalização não surgem para fazer essa descentralização sob controle popular e participação dos trabalhadores, pela via da administração pública e sem privatização.
A dificuldade maior, na minha opinião, é que se o Ministério mantiver a federalização, a expectativa é de que todos os municípios vão querer federalizar o seu SUS. Se for o caso, teríamos que rever a Constituição e refundar o SUS em outras bases.
No Rio de Janeiro, existe uma grande defesa de que a permanência em âmbito federal traz maior capacidade de recursos e que a municipalização causaria prejuízos. Esse risco existe?
A portaria fala de gestão compartilhada entre o Ministério da Saúde e o governo do Rio de Janeiro por até 90 dias, prorrogáveis. Define que os servidores federais continuarão à disposição da administração municipal, como foi essa transição em outras capitais nos anos 1990.
Do ponto de vista técnico, é possível administrar isso sem prejudicar os trabalhadores. É preciso fazer tudo isso respeitando direitos trabalhistas, não precarizando relações laborais, assegurando ambiente e condições adequadas de trabalho. O Ministério da Saúde alega que não há problema de financiamento; os recursos serão transferidos para o município e aplicados nesses hospitais.
Agora, sabemos como funcionam os nossos municípios. Por isso, o Conselho Municipal de Saúde do Rio de Janeiro deve acompanhar essas transferências de recursos. Isso é uma prerrogativa dos conselhos. O controle social é importante e decisivo.
A criação de uma carreira única do SUS seria um caminho para resolver parte desses problemas?
Sim, é necessário, mas ele é um dos caminhos mais difíceis. Os trabalhadores não querem a terceirização. Quem quer a terceirização são gestores incompetentes, políticos que usam esses contratos para fins eleitorais e empresários. A solução é uma carreira.
Precisamos de uma carreira de estado do SUS, não diversas carreiras para cada município, que envolva todos os entes federativos sob coordenação federal, que seja interfederativa, multiprofissional e contemple todos os trabalhadores do SUS em todo o país. Essa carreira deve ser única, como é o SUS.
As conferências nacionais de saúde sempre defenderam uma carreira de estado para o SUS. Em todas elas foram aprovadas propostas indicando que ao Estado brasileiro que organize uma carreira de Estado. Essa sim precisa ser gerida pelo Ministério da Saúde.
Edição: Thalita Pires