POLÍTICAS ESPORTIVAS

Como a União Soviética usou as Olimpíadas para afirmar identidades e disputar hegemonias

O Três por Quatro analisou a experiência de países socialistas no esporte

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Ginastas soviéticos recebendo medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Verão de 1988, em Seul - Sergey Guneev/Sputnik
As Olimpíadas refletem o contexto histórico, econômico, social, cultural e ideológico de sua época

No momento em que o mundo se volta para os Jogos Olímpicos de Paris, que começaram oficialmente nesta sexta-feira (26), o podcast Três por Quatro aborda como o esporte, especialmente nas Olimpíadas, tem sido usado por nações socialistas e de esquerda para se posicionar politicamente e disputar a hegemonia na geopolítica.

Para aprofundar esse tema, os jornalistas Nara Lacerda e Igor Carvalho conversaram com o historiador Victor Andrade de Melo, professor do Programa de Pós-Graduação em História Comparada da UFRJ e coordenador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer, que aponta que a hegemonia esportiva muda conforme a política e a economia se transformam.

"Nos primeiros Jogos Olímpicos, britânicos e franceses rivalizavam com norte-americanos. Hoje, a ascensão da China mostra uma nova organização geopolítica esportiva, impulsionada por interesses econômicos e o potencial de mercado de bilhões de consumidores", explica Melo.

Segundo ele, os países também buscaram se consolidar enquanto nações ao mobilizar os Jogos Olímpicos e vários eventos esportivos pelo menos em duas dimensões: "uma interna, gerando um fator de identidade nacional, com as pessoas daquele país celebrando suas vitórias, hino e bandeira; e outra de alteridade, com o enfrentamento de outros países no cenário internacional, ressaltando vantagens e características positivas de uma nação".

Embora o evento promova a união dos povos e uma trégua nos conflitos, os jogos sempre estiveram envolvidos em grandes momentos políticos da história. Na edição de 2024, não é diferente: o Comitê Organizador da Olimpíada (COI) baniu a Rússia devido à guerra contra a Ucrânia, mas manteve Israel, apesar das mais de 39 mil mortes no território palestino.

Neste contexto, o comentarista fixo José Genoino, ex-deputado federal, aponta que "as Olimpíadas refletem muito mais a época histórica do que a Copa do Mundo. Ela é atravessada por disputas geopolíticas e econômicas. As contradições que aparecem agora contra a Rússia são os atletas que, se ganharem medalha, não podem cantar o hino do país. Mas, por outro lado, você tem Israel, responsável pelo genocídio dos palestinos, e que está participando das Olimpíadas". 

Segundo Genoíno, essa disparidade e contradição de tratamento "evidenciam o farisaísmo da ordem mundial, com os Estados Unidos tentando influenciar as Olimpíadas" devido à sua potência esportiva e marcas reconhecidas. 

O ex-deputado destaca que "essas contradições revelam que os Jogos Olímpicos não são neutros", e observa que "as Olimpíadas refletem o contexto histórico, econômico, social, cultural e ideológico de sua época".

Ele argumenta que estamos caminhando para um mundo multipolar, com uma diversidade maior de representações. "As Olimpíadas de Paris, por exemplo, apresentam a maior diversidade de atletas, modalidades e simbologias de todas as edições anteriores, refletindo uma nova era marcada por guerras, fome, e a hegemonia da Otan contra a Rússia".

A Guerra Fria e a disputa olímpica

Enquanto celebramos a diversidade e a confraternização dos Jogos, é crucial reconhecer e discutir as complexas dinâmicas geopolíticas que os atravessam.

"O uso político do esporte é antigo, como visto nos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, onde Hitler utilizou o evento para difundir seu ideário e se projetar no cenário mundial antes da Segunda Guerra Mundial. Esse uso político se reconfigurou ao longo do tempo, agora focando em questões de orientação sexual, raça e outras além dos Estados-nação", explica o historiador.

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A disputa da Guerra Fria entre EUA e União Soviética, por exemplo, se refletiu nas Olimpíadas, com a União Soviética e a Alemanha Oriental usando o esporte para demonstrar sua força.

Na era da globalização, a ascensão da China no cenário olímpico marcou uma nova fase nas disputas geopolíticas. A organização dos Jogos Olímpicos de Pequim, em 2008, foi um marco dessa nova era. "A ascensão da China vai se refletir nas Olimpíadas, mostrando ao mundo sua chegada ao cenário global em todos os campos possíveis, inclusive no esportivo", ressalta Victor.

O esporte como direito social

Victor Mello explica a importância do esporte na formação social dos países, argumentando que "países socialistas e capitalistas enfrentam desafios ao equilibrar o investimento em esporte de alto rendimento e a promoção do esporte como direito social". No entanto, "o investimento estatal no esporte deve ser soberano e focado no direito social de toda a população, não apenas no alto rendimento".

Nesse sentido, o historiador enfatiza que, embora as medalhas olímpicas sejam celebradas, "a verdadeira vitória está na inclusão social e no acesso ao esporte como um direito universal". Países como Cuba e os nórdicos europeus são exemplos de nações que priorizam o esporte como um direito social, refletindo uma abordagem mais inclusiva e equitativa. Ele também menciona que "o sucesso do esporte na União Soviética foi fundamental, mas trouxe problemas ao transformar atletas em ferramentas do Estado".

A relação entre mercado e Estado também é um ponto de reflexão. "Se você joga a esfera privada, terá apenas esportes de alto rendimento, mas não um esporte de massa. O papel do Estado é essencial para garantir o esporte como um direito social para toda a população", destaca Genoíno.

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"O Brasil, por exemplo, deve aprender com esses modelos opostos de incentivo ao esporte, valorizando a esfera pública para garantir um esporte de massa, um direito social para toda a população", diz o comentarista. 

Mello afirma que um investimento social profundo no esporte é essencial para transformar a sociedade, e conclui: "não adianta conquistar medalhas esportivas se o país ainda enfrenta problemas como fome, violência e racismo. O esporte deve ser resultado de um investimento social que garanta direitos e inclusão para todos".

Novos episódios do Três por Quatro são lançados toda sexta-feira pela manhã, discutindo os principais acontecimentos e a conjuntura política do país e do mundo.

Edição: Nicolau Soares