No último dia 3 de julho, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei da Política Nacional de Cuidados. Esta é uma das medidas mais aguardadas – e exigidas – pelos movimentos sociais desde a criação de um Grupo de Trabalho para desenhá-la no início do atual mandato de Lula. Por meio dela, deverá ser estruturado de forma sistemática a garantia pelo poder público do direito ao cuidado (inclusive a domicílio) para aqueles que o necessitam, em especial segmentos como os idosos, pessoas com deficiência (PCDs), crianças e adolescentes e os próprios trabalhadores do cuidado – sejam eles profissionais remunerados ou, em uma situação muito comum no país, familiares não-remunerados.
Com a Política, espera-se poder enfrentar uma constelação de problemas sentidos por toda a população, mas especialmente pelos mais pobres: idosos que moram sozinhos e se machucam ou mesmo morrem em acidentes que poderiam ser evitados pela presença de um cuidador, mulheres que precisam abandonar o mercado de trabalho para cuidar de seus filhos e seus pais, PCDs que encontram dificuldade para realizar tarefas da vida cotidiana. Contratar cuidadores particulares é uma alternativa bastante cara e inacessível à maioria.
“A iniciativa é um grande avanço, porque havia um vácuo na nossa legislação na questão da proteção social. Vale lembrar que, na Constituição Federal de 1988, não existe a palavra cuidado”, avalia Jorge Félix, pesquisador FAPESP de pós-doutorado na Unicamp e professor no curso de Gerontologia da USP. Ele destaca também o processo interministerial e participativo que gerou a Política, assim como sua ênfase na questão das desigualdades de gênero e raça no cuidado e na promoção de trabalho digno no setor.
O documento de 6 páginas é bastante enxuto, restringindo-se a um marco normativo – e delega a um futuro Plano Nacional de Cuidados a delineação das ações concretas. Durante sua tramitação no Poder Legislativo, o projeto ainda poderá ser alterado pelos deputados e senadores. Em entrevista a Outra Saúde, o pesquisador indicou as principais conquistas contidas no PL enviado ao Congresso pelo governo – assim como os pontos em que podem haver brechas para a não-implementação da Política em sua integralidade.
Pioneirismo na legislação brasileira
Na América Latina, o tema do cuidado está em alta. “Outros países da região já têm políticas nacionais ou estão em plena discussão para criá-las, o Brasil estava até um pouco atrasado nisso”, explica Jorge Félix, que participa do projeto internacional de estudo de políticas de cuidado WhoCares?, coordenado no Brasil pelo CEBRAP.
Dezesseis membros do G20 possuem uma política de cuidado para idosos. No ano passado, o Governo Federal organizou um painel de alto nível do Mercosul (do qual também participaram países fora do bloco, como Chile, Colômbia e Peru) sobre o tema, para trocar reflexões e experiências sobre a construção de sistemas de cuidado com as nações vizinhas.
Também em 2023, no mês de março, um decreto presidencial criou o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) encarregado de elaborar a proposta da Política Nacional de Cuidados. Estiveram à frente do processo o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e o Ministério das Mulheres, mas vinte órgãos do Governo Federal, entre ministérios e entidades como a Fiocruz e o IPEA, foram indicados para integrá-lo. Dentro do MDS, a responsabilidade de coordenar o GTI coube à Secretaria Nacional de Cuidados e Família, chefiada pela socióloga Laís Abramo, ex-diretora do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil e da divisão de Desenvolvimento Econômico da CEPAL.
Além do envolvimento de entes do poder público, foi estimulada a participação social no processo. Em audiência na Câmara dos Deputados em maio, Laís Abramo indicou que foram realizadas “rodas de escuta e diálogo, adoção de formulários eletrônicos e reuniões” para que diferentes grupos pudessem apresentar suas demandas para a Política. Por sua vez, Jorge Félix revela que “os pesquisadores da área do cuidado – seja os que estudam a velhice, como eu, ou os de outras áreas como o gênero – foram bastante ouvidos inclusive antes da criação do Grupo de Trabalho. Pudemos criar uma relação bastante estreita, mas independente.”
O texto surgido dos trabalhos do GTI, indica Jorge, tem como um de seus principais feitos o de afirmar, logo em seu Capítulo I, que “todas as pessoas têm direito ao cuidado” e que a Política deve promover a “corresponsabilização social e de gênero pela provisão de cuidados, consideradas as desigualdades interseccionais”. Se o projeto for aprovado, será a primeira afirmação do direito universal ao cuidado a constar na legislação brasileira. Por outro lado, crianças e adolescentes, idosos, PCDs e trabalhadores do cuidado seriam o “público prioritário” da Política, segundo o Capítulo VI.
Além disso, o projeto enviado ao Congresso Nacional acolheu demandas importantes de segmentos que vão dos movimento feminista às trabalhadoras domésticas. Entre eles, há os objetivos, expostos no Capítulo II, de “promover o reconhecimento, a redução e a redistribuição do trabalho não remunerado do cuidado, realizado primordialmente pelas mulheres” e “promover o trabalho decente para os trabalhadores remunerados do cuidado de maneira a enfrentar a precarização e a exploração do trabalho” .
Princípios como a promoção dos direitos à autonomia e à convivência familiar e comunitária das pessoas que recebem cuidado, assim como diretrizes como a “integralidade” do cuidado e a “territorialização e descentralização dos serviços públicos ofertados” – discriminados, respectivamente nos capítulos IV e V do texto – indicam que o texto também está reconhece concepções que dão base a estruturas importantes, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).
O avanço em relação a limitações do texto constitucional também foi ressaltado. “A Constituição Federal, ao colocar o cuidado preferencialmente nos lares, delegou ele para a família. Para acessar os poucos programas para idosos que existem em algumas cidades, a família precisa provar, com muitas evidências, que não consegue cuidar. E mesmo esses programas são limitados. Não há Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs) públicas, nem serviços de cuidados. A Política Nacional de Cuidados tira o cuidado das mãos dos programas, que o próximo prefeito ou governador pode acabar da noite pro dia, e transforma ele em um direito legal”, Jorge explica.
“Só de trazer novos conceitos para o texto legislativo, avançando em relação à Constituição Federal, já é um grande ganho”, sintetiza Félix.
As ações concretas prometidas por Lula
Em reunião com especialistas da área ainda no período de sua campanha de 2022 à Presidência da República, gravada e disponibilizada na Internet por sua própria equipe, Lula propôs a implementação de uma alternativa pública para os cuidados domiciliares para os idosos do país. “Nós temos que transformar [os cuidadores de idosos] em um serviço público, formar muita gente para isso. Por isso a gente fala na necessidade de uma nova política tributária e do fortalecimento do SUS. Se a pessoa não conseguir pagar por um cuidador privado, ela morre? Não pode ser assim, a população está vivendo mais e isso é bom”, disse o presidente.
A ideia apresentada à época aos pesquisadores, conta Jorge Félix, indicava que o serviço, quando implementado, seria oferecido nos marcos do SUS e teria alguma similaridade com a estrutura dos agentes de saúde ou do Programa PAI, que disponibiliza acompanhantes para idosos no município de São Paulo por meio das Unidades Básicas de Saúde. É um plano ousado e promissor – mas nada dele consta no texto da Política Nacional de Cuidados.
Efetivamente, o Capítulo VII do projeto de lei prevê que as “ações, metas, indicadores, instrumentos, período de vigência e órgãos e entidades responsáveis” só serão estabelecidos em outro documento, o Plano Nacional de Cuidados, ainda a ser apresentado pelo Poder Executivo federal.
Em outras palavras, a Política Nacional de Cuidados se restringiria a delinear de forma mais geral as bases institucionais para essas ações: o “marco normativo”, na definição da secretária Laís Abramo em entrevista à Agência Brasil.
Flancos abertos?
Apesar da indicação de sua presença no futuro Plano, o professor de Gerontologia da USP lamenta que nenhuma das ações a serem implementadas tenha sido pelo menos indicada. “Penso que isso pode facilitar a judicialização por municípios e Estados que queiram argumentar que não precisam cumprir as medidas, por não serem obrigados pela Constituição Federal ou pela própria Política”, reflete.
Um caminho para contornar essa brecha pode ser a constitucionalização do direito ao cuidado – como propõe a PEC 14/2024, de deputadas como Maria do Rosário (PT/RS) e Talíria Petrone (PSOL/RJ), que o inclui no Artigo 6º da Carta. A representante carioca também defende a articulação de uma Frente Parlamentar em Defesa da Política Nacional de Cuidados.
A definição de que o direito ao cuidado será garantido “de forma gradual e progressiva”, sem a delimitação de metas mais concretas, também é um ponto de atenção. “O que significa gradual e progressivo? Pode significar à mercê do Orçamento, e pode significar prazos mais longos do que os exigidos pela situação do país hoje”, diz o pesquisador da Unicamp.
Nesse sentido, Félix considera que o capítulo IX do projeto de lei, que trata do financiamento, pode abrir um flanco para o esvaziamento da Política na hora de colocá-la em prática. “Há uma grande brecha, pois o PL sujeita tudo à ‘disponibilidade financeira e orçamentária’ dos entes da administração pública que participarem do Plano Nacional de Cuidados. Tudo fica restrito, portanto, à política de ‘austeridade’ fiscal que está hoje em vigor, e podem vir pela frente governos ainda mais defensores dessa ‘austeridade’. Isso pode se transformar em um grande nó” para a implementação das ações necessárias, avalia o pesquisador.
Com o caráter mais enxuto do projeto, a possibilidade de fazer uma avaliação mais aprofundada e definitiva da proposta do governo para a Política Nacional de Cuidados foi adiada – as observações aqui apresentadas por Outra Saúde são iniciais. Contudo, ressalta Félix, a aprovação da Política no Congresso Nacional e a apresentação do Plano Nacional de Cuidados não podem demorar.
“A falta de apoio estatal ao cuidado domiciliar está levando as pessoas ao endividamento, porque as despesas com a velhice, por exemplo, estão aumentando muito. Custear individualmente esse cuidado, para os mais pobres, é impossível”, ele alerta.