Com objetivo de entender como pensa e o que propaga a extrema direita no Brasil, os jornalistas Andrea Dip e Niklas Franzen se matricularam no curso Formação Conservadora, idealizado pelo pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
O resultado da imersão é um dossiê completo que analisa como o discurso conservador é propagado nos espaços do campo reacionário. Dos perfis de quem ministrou as aulas ao discurso propagado, as conclusões apontam para uma subversão da história e da realidade.
No documento, publicado pela Fundação Heinrich Böll, Dip e Frazen expõem teorias conspiratórias, releituras de fatos políticos e econômicos e um pensamento que limita os papéis da família e da sociedade. A espinha dorsal do discurso é um suposto complô, que seria operado pela esquerda global, para acabar com valores tradicionais.
Termos como globalismo, ideologia woke e guerra cultural são repetidos ao longo de todo o curso. Eles são associados a alertas sobre um imaginário conflito internacional iminente. O curso é vendido como um caminho de preparo e treinamento para evitar as consequências da suposta ofensiva em território nacional e "tirar o Brasil das garras da esquerda".
Em entrevista ao Brasil de Fato, os autores afirmam que a aderência das ideias propagadas nas aulas era alta e que praticamente não havia ideias discordantes. No entanto, Dip e Frazen observam também que a audiência era composta por pessoas já inseridas no discurso extremista, o que pode sinalizar pouco apelo para atrair mais público.
Leia a entrevista a seguir.
Brasil de Fato: Como foi sistematizada a ideia de produzir um dossiê a partir do curso? Vocês já imaginavam alguns assuntos chave que apareceriam durante as aulas ou foram sem expectativas quanto aos temas e tons adotados?
Niklas Franzen: Eu fiquei sabendo desse curso por meio de uma conhecida e já me perguntava como a extrema direita brasileira se organiza, principalmente longe dos grandes holofotes, fora dos parlamentos e, agora, na oposição também. Essa abordagem anti-institucional sempre me interessou muito. Decidimos assistir às aulas e fazer parte dele.
Eu também observo que a extrema direita, em algum sentido, é muito inovadora, especialmente no uso das redes sociais. Mas essa formação conservadora mostra também alguns aspectos que podem ser até pioneiros e servir como exemplo para a extrema direita em outros países.
Eu pesquisei muito sobre a conexão da extrema direita europeia, principalmente a extrema direita alemã, com a brasileira. A extrema direita da Alemanha sempre se mostrou muito interessada e fascinada com os processos do Brasil.
Assim, surgiu o interesse de fazer o curso, ver que isso, em algum sentido, pode até virar um exemplo para outro país, conectar-se e formar uma rede não institucional ativa, com membros fiéis e, de alguma forma, fornecer algum tipo de conhecimento teórico, político e social.
Sobre os assuntos, basicamente esperava os temas que surgiram. Não houve grandes surpresas para mim. Os temas de globalismo, ideologia de gênero e armas são as grandes bandeiras do clã Bolsonaro. Mesmo sem grandes surpresas, foi muito interessante para nós, porque o curso entrou em muitos detalhes.
Eles falaram mais profundamente sobre certas coisas, citaram livros, pesquisas, e explicaram de onde vêm essas informações que, muitas vezes, no dia a dia da política, não são aceitas.
Então, existe dentro da extrema direita uma ala um pouco mais intelectualizada. Claro, com muitas nuances, mas existe uma estrutura ideológica que é importante entender. Foi um dos motivos pelos quais decidimos fazer esse curso.
No dossiê vocês apontam que temas conspiracionistas internacionais, como referências ao globalismo, a chamada ideologia woke e uma guerra cultural em andamento globalmente aparecem com frequência no curso. Também citam que Eduardo Bolsonaro faz referências a uma suposta influência com personalidades da direita de outras nações. Como avaliam a capilaridade do discurso extremista em todo o mundo, após a participação nas aulas?
Niklas Franzen: Eu diria que esse curso mostra que a extrema direta está conectada no mundo inteiro e aprende muito entre si. Há certos certos temas que sempre aparecem, como o globalismo, a ideologia woke, a guerra cultural. São conceitos fundamentais para explicar o avanço da extrema direita.
Esses temas estão sendo usados e surgindo sempre porque deu certo em várias ocasiões. A extrema direita conseguiu vitórias eleitorais com ênfase nessas temas. Dá para observar que principalmente o Eduardo Bolsonaro (PL) é muito influenciado pelo discurso dos Estados Unidos.
Mas ele também fala sobre outros países. Dá para ressaltar que a extrema direita realmente, de alguma forma, criou uma certa fórmula que se mostrou bem-sucedida e é repetida em vários países.
Voltando para o curso, é importante também dizer que não precisamos superestimar a importância dele. Observamos a ideia de criar uma rede em que os fiéis de Bolsonaro conseguissem se conectar, mas na verdade havia poucas interações nos fóruns e parece que não foi um grande sucesso.
As pessoas que fizeram um curso também não eram novas na ideologia, mas sim pessoas já convictas. Então eu acho que a relevância assim desse curso específico é pequena.
É óbvio que foi também um jeito de lucrar. O curso custa R$ 500 , o que não é pouco. Isso nós observamos em outros lugares. A extrema direita achou um jeito de se vender. Outros influenciadores da extrema direita estão fazendo a mesma coisa, isso é importante falar.
Foi possível identificar uma adaptação do discurso internacional para a realidade brasileira, especialmente na divisão de temáticas e na escolha dos ministrantes do curso?
Andrea Dip: Sim, os módulos e a escolha dos temas vão totalmente de encontro aos temas que estão sendo mais importantes, propagandeados e discutidos pela extrema direita no mundo todo. Temos a questão das armas – que é superimportante, por exemplo, para a extrema direita dos Estados Unidos – a (chamada) ideologia de gênero, o aborto, o feminismo, a educação.
Eduardo Bolsonaro (PL) traz também essa ideia do woke, ele menciona isso. É interessante porque essa é uma narrativa importante, que tem sido recentemente propagandeada pela extrema direita em todo o mundo, a de que há uma ideologia woke no mundo todo.
O termo se tornou sinônimo de políticas liberais ou de esquerda, que defendem vários temas como igualdade racial e social, feminismo, movimento LGBTQIA+, uso de pronomes inclusivos, multiculturalismo, a própria vacinação na época da covid, o ativismo ecológico, o direito ao aborto.
Ela abrangeria, dentro desse guarda-chuva, muitas das pautas que são importantes para a esquerda ou para os liberais e para defensores de direitos humanos, movimentos sociais e ativistas.
Eles estão usando muito mais essa denominação do woke do que o próprio termo ideologia de gênero ultimamente. Então é interessante ver como o Eduardo Bolsonaro vai trazendo esse conceito já no curso dele.
Na escolha dos ministrantes também há uma adequação. O Nikolas Ferreira (PL), por exemplo, que fala nos módulos sobre juventude e sobre educação, tem sido um grande representante da juventude de extrema direita no mundo. Temos a Damares Alves (Republicanos), o Marcos Pollon (PL) e a Chris Tonietto (PL), que são pessoas importantes para o bolsonarismo no Brasil.
Em relação ao público, o grau de aderência às ideias apresentadas pode ser classificado como alto? Havia espaço para algum tipo de discordância e questionamentos por parte dos participantes?
Andrea Dip: O grau de aderência às ideias pode sim ser classificado como alto sim. Inclusive, muitas vezes em que Eduardo Bolsonaro fazia um revisionismo histórico, ele ia bem longe, até os mouros, muro de Berlim, ditadura militar brasileira. Fazia toda uma reconstituição histórica.
Muitas pessoas comentavam que nunca tinham ouvido e entendido a história dessa maneira. O curso pedia que as pessoas fizessem tarefas que eram comentários respondendo a perguntas de cada módulo. Não vi nenhum tipo de discordância, nem de questionamento.
Acho que o único comentário discordante que vi foi de uma mulher que não se sentiu representada durante uma oração de uma pastora para conversão ao cristianismo. Ela questionava se para ser conservadora era preciso ser cristã e dizia que não era cristã.
Eu acho que é o curso cumpre bastante bem esse papel de formação, no sentido de que está formando mesmo essas pessoas que que participam.
Em alguns momentos do dossiê, temos a impressão de que o idealizador do curso nutre interesse intenso nas práticas de organização social e popular da esquerda. Como explicar o fenômeno?
Niklas Franzen: Na verdade, esse é um processo que já vem acontecendo há muito tempo e não começou no Brasil. Na Europa, a nova direita – em um movimento que começou na França – passou a usar outros métodos e táticas. Uma dessas táticas é aprender com a esquerda.
A extrema direita gosta muito de citar o marxista italiano Antonio Gramsci e sua teoria de hegemonia cultura. No Brasil, a pessoa que introduziu esse conceito para o contexto do país foi Olavo de Carvalho, que também é muito citado no curso. Se tem algo com que todo mundo concorda, são as ideias do Olavo de Carvalho.
A ideia, basicamente, é que esquerda não conseguiu tomar o poder por meio da força, então tomou com a cultura. Eduardo Bolsonaro fala que a esquerda largou as armas e foi para cima dos livros. Em outro trecho ele fala sobre essa dimensão de uma guerra ao longo prazo.
Eles falam que a esquerda é muito esperta, que não dá para subestimar o inimigo. Por um lado, é interessante que ele sempre fala esquerda como uma doença mental. Ele realmente fala muito sobre seu ódio pela esquerda. Por outro lado, ele se mostra muito fascinado com sucessos ou os aparentes sucessos da esquerda.
Eles basicamente acreditam, ou pelo menos dizem acreditar, que uma ideologia woke domina o ocidente e que uma pequena minoria consegue impor assuntos como a igualdade racial, feminismo, o uso de pronomes de gênero neutro, multiculturalismo, vacinação, ativismo ecológico, e por aí vai.
Aí entra a função da extrema direita, que se vê como salvadora contra esses avanços de uma elite globalista. Esse é um discurso quase igual em todos os países e não termina por aí. O Bolsonaro e a extrema direita, nesse caso, o Eduardo Bolsonaro (PL), não dizem só que é assim. Eles também dizem que, para combater isso, você tem que usar os mesmos métodos.
No capítulo sobre isso, no dossiê, falamos sobre um contramovimento da extrema direita. O Eduardo Bolsonaro fala abertamente sobre isso. Ele sempre diz que a esquerda é muito esperta e acredita que a direita tem que aprender muito com ela.
Muitas vezes ele faz um chamado para a criação, por exemplo, de novos canais no YouTube, para realmente criar uma nova cultura no cinema, na música. E, na verdade, isso já vem acontecendo no mundo inteiro. A extrema direita conseguiu tomar certos espaços e ter muito sucesso com isso, graças a essas novas táticas que aprenderam a usar, principalmente nas redes sociais.
Vimos isso nas eleições para o Parlamento Europeu. Eu posso falar do caso da Alemanha. O partido Alternativa para a Alemanha (AfD) está muito presente nas redes sociais, muito mais que os outros partidos. Nem chegam perto os outros partidos. E o resultado foi que o AfD, na eleição para o Parlamento Europeu na Alemanha, foi o segundo partido mais votado entre eleitores de 16 a 24 anos. Então, realmente, isso é um desenvolvimento assustador que é muito importante observar.
Conseguem perceber as táticas expostas no curso nas repercussões do recente ataque contra o candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, figura importante para o conservadorismo?
Andrea Dip: Eu acho que essa tática de pânico moral e a ideia bélica de que se está em uma guerra cultural, de que se está em uma guerra em andamento, que é longa, faz sentido, inclusive com a postura do Trump na hora do atentado, em que ele diz "continuem lutando". Talvez tenha esse viés, essa semelhança.
Claro, tem as atuações nas redes sociais. O curso do Eduardo Bolsonaro traz um módulo sobre redes sociais que é bastante completo e didático, explicando como as pessoas devem se mover nas redes. Ele vai passando uma por uma: Instagram, YouTube, Twitter, e vai dizendo as melhores maneiras de se manifestar em cada uma dessas redes, quais têm mais censura e quais têm menos. Ele fala para ter muitas redes, para que, se você for banido de uma, possa se manifestar em outra até voltar. Ele recomenda ter muitos perfis.
Enfim, ele é bastante didático e dá bastante importância à atuação nas redes sociais. Ele sempre diz para comentar, curtir, compartilhar, engajar nos conteúdos. Então, acho que talvez dê para perceber um pouco da semelhança, que é na verdade uma estratégia da extrema direita como um todo. Eles sabem se mover muito bem nas redes sociais, sabem muito bem causar esse pânico. O curso do Eduardo Bolsonaro traz isso, mas são estratégias da extrema direita no mundo.
Poderiam contar um pouco sobre as impressões pessoais de vocês a respeito do que viram ao longo do curso? A experiência mudou sua percepção em relação ao avanço da extrema direita no Brasil e no mundo?
Niklas Franzen: O curso foi bem cansativo. Assistimos a todas as aulas e, às vezes, foi bem difícil e bem duro assistir a tudo isso. Muitas coisas foram repetidas. Mas de alguma forma, foi muito interessante também para a nossa pesquisa e para mim, pessoalmente. Ajudou muito a entender como a extrema direita pensa.
Eu acho que isso é fundamental também para pensar em como combater a extrema direita. Eu acho que, em primeiro lugar, sempre temos que entender como eles pensam, o que eles fazem.
Eu não diria que minha percepção mudou, mas acho que confirmou algumas coisas. Como já falei, a conexão da extrema direita, os discursos que são usados em vários países no mundo, a habilidade da extrema direita de se adaptar, mudar os rostos, mudar seus discursos, mudar as táticas. Mas é óbvio, as ideias são as mesmas.
Então, para mim, foi realmente muito interessante fazer esse curso, e eu acho que devemos observar esses processos, esses fenômenos, para talvez achar um jeito de combatê-los.
Edição: Thalita Pires