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Poderá o CFM servir à saúde pública?

Eleições para o Conselho Federal de Medicina acontecem em duas semanas

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Classe médica tem uma missão: tirar do poder representantes que se aliaram ao reacionarismo anticientífico, viraram as costas ao SUS e fecharam-se à participação social - Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

“Nos últimos 5 anos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) serviu como satélite de políticas públicas empreendidas pelo governo Bolsonaro. Tentou por meio de resoluções coibir os médicos de exercer seu mister de acordo com a legislação vigente.” É assim que o médico Alex Romano, candidato à cadeira de conselheiro federal de medicina no Rio de Janeiro, define a atuação do órgão federal que deveria regular o exercício da medicina.

O que se viu ao longo dos últimos anos, inclusive antes da ascensão de Bolsonaro, foi uma autarquia em pé de guerra com sua própria função institucional e alheio a parâmetros básicos de saúde coletiva.

A poucos dias das eleições para o CFM, que acontecem entre os dias 6 e 7 de agosto, médicos de chapas oposicionistas à atual gestão falaram ao Outra Saúde sobre a necessidade de retomar o órgão das mãos de uma minoria de fanáticos que o teria sequestrado a partir de uma série de interesses privados e suas agendas.

“O CFM tem de participar de instâncias de controle social, ser aberto ao diálogo, e isso tem acontecido muito pouco. Por isso nos organizamos para disputar essa eleição, o que foi saudado por muita gente que vinha ignorando os processos internos do órgão”, afirmou a médica e professora Silvia Uehara, candidata da oposição no Mato Grosso do Sul.

O órgão se tornou um descarado palanque de um conservadorismo fanático e anticientífico, em especial na pandemia, quando bancou as fraudes de Bolsonaro a respeito do tratamento precoce para covid, indicando remédios nocivos ao organismo, e foi omisso na defesa de políticas sanitárias amplamente defendidas pela comunidade médico-científica. Mas não é só isso: o CFM também se afastou das instâncias de elaboração política e participação social.

“Várias comissões do CFM, como de saúde da mulher, nunca tiveram uma reunião agendada. Outras se reuniram pela última vez em 2019. Precisamos mudar isso. O Conselho Federal de Medicina está fora do Conselho Nacional de Saúde, abriu mão dessa participação democrática e do debate ético e científico. Fora do Conselho Nacional de Saúde, ele não participa de comissões importantes de forma assídua, como, por exemplo, da Comissão Nacional de Residência Médica”, criticou Uehara.

Polarização inevitável

Como notado pela sociedade, as eleições do órgão ganharam conotação especial e se tornaram mais uma inegável expressão da polarização ideológica que marca o Brasil.

No Rio de Janeiro, onde Alex Romano concorre, tal simbologia é até mais fácil de identificar. Sua chapa tenta derrubar o atual conselheiro Rafael Câmara Parente, secretário de Atenção Primária à Saúde no governo Bolsonaro. Ou seja, uma peça chave na maior crise sanitária do país, que, segundo pesquisadores e entidades como a Abrasco, pelo menos 300 mil mortes poderiam ser evitadas.

Se diante do maior desafio de sua vida o ex-secretário pouco apareceu ao público, ao fim do governo do capitão se revelou um virulento ideólogo da extrema-direita de jaleco. Suas manifestações raivosas e politizadas são frequentes em artigos, a exemplo de um, recém-publicado na Gazeta do Povo, no qual acusa “o PT de acabar com a medicina”, sem apresentar quaisquer argumentos.

Entre outros disparates, afirma que os cubanos que vieram à primeira edição do programa Mais Médicos eram “agentes infiltrados” e os governos petistas teriam incentivado a prática da medicina por pessoas não diplomadas. No entanto, ao acabar com o Mais Médicos e fracassar na implantação do Médicos pelo Brasil, o Ministério da Saúde do qual foi um dos principais líderes nada fez para facilitar a revalidação de diploma de 15 mil profissionais estrangeiros disponíveis no país. Tal inação foi decisiva para a geração de vazios assistenciais que deixaram até metade da população sem acesso efetivo ao SUS. Por fim, disse que a nova edição do programa, com recorde de inscritos e novidades em termos de progressão de carreira, seria inaceitável.

Graça a figuras deste tipo e sua atuação notoriamente sabotadora, o CFM hoje se revela um “perigo à sociedade”, como afirmou ao Outra Saúde o médico ginecologista Olímpio Moraes.

“Desde a época da pandemia, quando estimulou a cloroquina, não colocou freio nas fake news, fez homenagens a ministro da saúde negacionista, deixou mentiras antivacina rolarem soltas… Eles rasgaram todo o código de ética médica. É uma coisa terrível, porque a história do CFM sempre foi uma história de orgulho para a classe médica, de defesa do Código de Educação Médica”, falou Moraes a este boletim.

Posteriormente, e provavelmente de olhos nas eleições, o órgão passou a se inocentar da responsabilidade do avanço do PL 1904, que acabou conhecido como PL do Estupro e foi publicamente execrado. Mas basta visitar as redes sociais de Câmara Parente para ver como o CFM se orgulha de atacar o direito ao aborto legal. Isso se reflete, por exemplo, na perseguição a tal serviço e seus profissionais em São Paulo – cujo prefeito é o bolsonarista Ricardo Nunes.

“O aborto é permitido no Brasil no caso do estupro, mas 95% da população não tem acesso ao serviço. E não temos um CFM que cobra ampliação do serviço com atendimentos dignos, pelo contrário, estimula o não atendimento. O CFM deveria ser interditado, a autarquia deixou de proteger a sociedade, virou um perigo”, atacou Olímpio Moraes, candidato ao conselho em Recife.

Nesse caso, o STF teve que suspender resolução do CFM que limita o acesso ao aborto legal. De todo modo, às vésperas das eleições, os bolsonaristas que fizeram do órgão seu próprio aparelho político, tentam se vender como amigos da ciência e da saúde pública. Nos últimos dias, o órgão tenta divulgar ações mais simpáticas ao público. Uma delas é a solicitação à Anvisa de liberação do fenol para tratamentos de câncer. Outra iniciativa foi o convite ao vice-presidente da república, Geraldo Alckmin, para a 16ª edição da Conferência Mundial de Bioética, Ética Médica e Direito da Saúde, que ocorre entre 24 e 26 de julho em Brasília e promete “debates de altíssimo nível”.

Além disso, alega ter pedido à Polícia Federal investigação a respeito do disparo ilegal de mensagens de campanha nesta semana, destinada a médicos com direito a voto, que receberam mensagens contra as chapas tidas como “esquerdistas” para o pleito de São Paulo. Isso já tinha acontecido na eleição para os conselhos regionais no ano passado, entre outros abusos de poder e cerceamento de opositores, mas nada aconteceu após a vitória de chapas conservadoras.

Precarização da profissão e representatividade

Como destacou Uehara, o CFM evitou ao máximo o debate nos últimos anos, ao se isolar de instâncias plurais de elaboração técnica e se afirmar como “espaço seguro” de fanáticos políticos sem respaldo na própria categoria que deveria representar – em especial no serviço público.

“Queremos trabalho seguro e decente, conforme as orientações da Organização Internacional do Trabalho, carreira única de Estado para que os médicos possam trabalhar em menos vínculos, com salário decente, tempo para se atualizar e condições de participar em congressos, que se tornaram muito caros. Esse financiamento pode ser tripartite, com contribuição municipal, estadual e federal, como já acontece, por exemplo, no pagamento das bolsas dos profissionais providos pelo Mais Médicos”, defende.

Conforme recapitula Alex Romano, o órgão deve voltar a se concentrar em sua função essencial, isto é, balizador do exercício da profissão, e não um ente que se atribui funções políticas e jurídicas que cabem a outras instituições, como o próprio Ministério da Saúde.

“O CFM é uma instância superior aos conselhos regionais, onde os processos julgados são revistos. Também normatiza através de resoluções a prática médica no país. Segundo a lei de 3268/57 cabe ao CFM exercer a fiscalização do exercício ético-profissional da medicina. O CFM tem que ter uma agenda que privilegie o Sistema Único de Saúde, onde 70% dos médicos brasileiros trabalham. Precisa representar todos os médicos e não uma parte”, resume.

Silvia Uehara, por sua vez, acrescenta que a questão da representatividade de gênero é outra barreira a romper, mais ainda após as agressões do órgão tomado por homens bolsonaristas à saúde da mulher nos últimos anos – o que se atesta através de diversos indicadores oficiais, como o aumento das mortes maternas.

“São 28 representantes titulares. Dos 28, apenas 8 são mulheres. E pelo próprio levantamento da Demografia Médica do Conselho Federal de Medicina com outras instituições de saúde, em 2035, a gente vai ter mais de 70% da força de trabalho de medicina representada por mulheres. A partir de 2024, há 50,2% de mulheres na força de trabalho”, afirmou.