As enchentes em Porto Alegre revelaram nefastas consequências das escolhas políticas. A falta de planejamento urbano e de investimentos em sistemas de drenagem adequados contribuiu para a vulnerabilidade da cidade, resultando em uma das maiores tragédias climáticas da história do país. A agenda neoliberal adotada pelo governo municipal e estadual se mostrou um projeto higienista, no qual as políticas de estado estão voltadas predominantemente para as classes altas e médias, enquanto os mais pobres são abandonados à própria sorte. É comum, ao transitar pelos territórios, verificar montanhas de lixo que ainda não foram retiradas, locais ainda com focos de alagamentos e, sobretudo, uma população que, a longo prazo, sofrerá as consequências dessas escolhas políticas.
A população ao redor de Porto Alegre, que enfrenta problemas com o acúmulo de lixo e a exposição a diversas formas de contaminação e doenças, encontra dificuldades para se deslocar ao trabalho. Com a paralisação do trem e o acúmulo de água nas estações, muitas pessoas não têm acesso à subsistência. Além disso, muitas dessas famílias estão acolhendo parentes e amigos em suas casas. Os relatos sobre essas dificuldades são frequentes: pessoas que perderam absolutamente tudo, incluindo a renda, não conseguem sequer acessar os benefícios divulgados devido à burocracia. Os dados demonstram que 60% dos residentes da região metropolitana tiveram suas rendas afetadas. 46 dos 96 bairros da capital foram impactados, prejudicando diretamente 157 mil pessoas e danificando 39 mil propriedades segundo pesquisa dos cartórios de protestos do Estado.
Enquanto isso, a mídia tradicional tem divulgado as regiões centrais — que, felizmente, estão secas e sendo gradativamente limpas — dando a impressão de que o poder público está fazendo seu papel. Porém, a população que já sofria abandono das políticas de estado segue em situação ainda mais alarmante que a habitual. Uma série de medidas emergenciais tem sido divulgada por esta mesma mídia. Porém, pouco se tem debatido acerca de uma profunda reforma urbana que solucione os problemas habitacionais de Porto Alegre, que é uma das piores capitais brasileiras em termos de distribuição de renda e moradia.
É de aplaudir a corrente nacional de solidariedade e assistencialismo que se formou em prol de ajudar o Rio Grande do Sul — corrente essa que, inclusive, foi citada de forma negativa por Eduardo Leite ao afirmar que as doações poderiam acarretar prejuízos aos empresários. No entanto, à medida que a atenção da mídia diminui e os holofotes se voltam para outras questões, quem permanece na linha de frente, enfrentando as consequências a longo prazo da tragédia climática, são os movimentos populares. São eles que continuam mobilizados, oferecendo suporte às comunidades afetadas e pressionando o poder público por mudanças estruturais que possam prevenir futuras catástrofes e minimizar as consequências de longo prazo para a população mais vulnerável.
É nesse sentido que o MTST e suas Cozinhas Solidárias têm desempenhado um importante papel comunitário nos territórios. Recentemente, comemorou-se a entrega de 200 mil refeições, mas o trabalho segue a todo vapor e em expansão. Foram inauguradas cozinhas nos bairros Lami, Nosso Senhor do Bonfim e Mário Quintana, além da já tradicional Cozinha da Azenha. A realidade concreta desses territórios demonstra que a fome segue sendo uma das principais problemáticas enfrentadas por essa população, que tem sido abandonada aos entornos da cidade em prol de uma higienização das regiões centrais.
Fernando Campos, coordenador nacional do MTST, em uma fala emocionada durante a comemoração da entrega das 200 mil marmitas, apontou: “No primeiro dia de enchente, quem estava lá entregando marmita era a Cozinha Solidária. É o movimento social organizado que garantiu que o povo não ia passar fome. E é do movimento social que vem a organização para conquistar a moradia digna que o governo federal vem prometendo para a reconstrução do Rio Grande do Sul”.
Por fim, cabe destacar que, atuando juntamente com essa população mais vulnerabilizada, vítima do racismo ambiental, estrutural, preconceitos de classe, dentre outras formas de opressão, os horizontes seguem sendo por uma radical transformação urbana, não somente na cidade de Porto Alegre, mas em todo o país. Esse movimento visa enfrentar, juntamente com o problema da moradia, a fome, que atravessou todas as passagens da história brasileira e segue atingindo frontalmente a classe trabalhadora do nosso país e, sobretudo, de Porto Alegre.
* Felipe de Araújo Chersoni é mestrando em Direito pela Universidade (comunitária) do Extremo Sul Catarinense (PPGD-Unesc). É pesquisador vinculado ao Grupo pensamento jurídico crítico latino-americano, na qual se subdivide no grupo de Criminologia Crítica Latino Americana - Andradiano (Unesc) e Membro do eixo de Criminologia e Movimentos Sociais - Instituto de Pesquisa em Direito e Movimentos Sociais (IPDMS)
Edição: Nathallia Fonseca