Em 2023, a Bahia acumulou um total de 249 conflitos no campo, atingindo a terrível marca de estado com mais conflitos dessa natureza no país. Os dados foram apresentados nesta quarta-feira (31), pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em evento na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Salvador (BA), com a presença de representantes de movimentos e organizações populares do campo e da cidade, além de pesquisadores e pesquisadoras de diversas universidades do estado.
"Quem falha conosco primeiro é o Estado, que não demarca o território", afirmou Rejane Rodrigues, liderança do quilombo Quingoma, ameaçada de morte desde o ano passado por sua atuação em defesa de sua comunidade, em uma fala contundente sobre as violências perpetradas contra si e seu povo durante o evento. Rejane lembrou que esta primeira falha permite que o tráfico e empreendimentos privados – imobiliários, de energia eólica, mineração etc – cheguem aos territórios tradicionais e promovam esses conflitos apontados pela CPT.
O quilombo Quingoma, localizado em Lauro de Freitas, Região Metropolitana de Salvador, é um dos mais antigos do país ainda existente. Com ocupação comprovada desde 1569, a comunidade ainda não possui titulação de seu território, e vem sofrendo uma grande pressão de empreendimentos imobiliários, inclusive um bairro inteiro que está sendo construído dentro da área pertencente aos quilombolas.
"Nós [povos tradicionais] temos a Constituição ao nosso lado, mas ela é rasgada sempre! Porque não temos direito à terra e ao território, não temos direito à água, não temos direito de ir e vir", afirmou.
Rejane está há mais de 90 dias fora de seu território, sob proteção do Estado. Em sua fala, ela apontou as fragilidades do programa de proteção que foi falho ao permitir o assassinato de Mãe Bernadete, também sob proteção do Estado.
Segundo o relatório da CPT, os conflitos na Bahia vêm aumentando desde 2016. Após ficar dois anos seguidos na terceira posição do ranking, este ano o estado ultrapassou o Pará (226 conflitos) e o Maranhão (206). Os dados sobre a violência no campo na Bahia foram extraídos e organizados pela seção baiana da CPT a partir do relatório Conflitos no Campo Brasil 2023, lançado pela comissão em abril passado.
A pesquisa da CPT mostra que a maioria das vítimas de conflito no estado são pessoas quilombolas, de comunidades de fundo e fecho de pasto, indígenas e sem terra. Dentre os casos identificados na Bahia, foram 20 ameaças de morte, oito tentativas de assassinato e quatro assassinatos. Foram registradas ainda 63 manifestações e ações de resistência protagonizadas pelas comunidades e movimentos populares.
A professora Guiomar Germani, integrante do grupo de pesquisa Geografar da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que presidia a mesa do evento, destacou a importância de lembrar que esses números representam histórias, pessoas, comunidades inteiras e suas vidas.
Neste sentido, os nomes de Mãe Bernadete, cacique Lucas Hã-hã-hãe, Nauí Brito e Samuel do Amor Divino, que tombaram vitimados por esses conflitos, foram lembrados durante o evento. Na abertura do evento, movimentos e organizações defenderam: "diante dessas mortes, nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta".
Além da liderança quilombola Rejane, foi convidado a falar Anselmo Ferreira, da comunidade de Fecho de Pasto Baixão dos Bois, sobrevivente de uma tentativa de assassinato. Ambos os casos estão computados no relatório de Conflitos no Campo.
Em 2023, no município de Campo Alegre de Lourdes, no território do Sertão do São Francisco, a comunidade de fundo de pasto de Angico dos Dias foi palco de uma tentativa de assassinato que deixou três pessoas feridas. Anselmo contou sobre a violência que persiste na comunidade.
Há cerca de 20 anos, Angico dos Dias sofre os impactos de uma empresa mineradora instalada no local. Mais recentemente, passou a sofrer pressão também de outros empreendimentos, como eólicas e agronegócio.
No ano passado, a comunidade foi informada que uma construção havia sido iniciada em uma área utilizada para pasto comunitário. Uma empresa teria comprado cerca de 19 mil hectares no território, com áreas que se sobrepõem a oito comunidades de fundo e fecho de pasto, o que aponta para uma possível grilagem de terras devolutas (terras públicas sem destinação do poder público).
Em setembro, 50 pessoas representantes dessas comunidades foram até o local onde as obras estavam sendo realizadas, e foram recebidos a tiros. "A dor maior não é o tiro, são as injustiças, é a falha do Estado", pontuou Anselmo. Antes de irem pessoalmente à área, as comunidades já haviam denunciado a presença ilegal da empresa no território.
Mais de um mês após o atentado, a justiça estadual determinou a saída da empresa do local. "Nós sentimos o gosto da ruindade, mas não sei se vamos sentir o gosto da reforma agrária tão cedo", lamentou Anselmo.
Fonte: BdF Bahia
Edição: Martina Medina e Alfredo Portugal