Coluna

O legado dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 pode ser um rumo de solidariedade e inclusão das atletas intersexo no esporte

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A argelina de 25 anos foi às quartas de final da Olimpíada na categoria feminina de até 66 kg - MOHD RASFAN / AFP
Os Jogos Olímpicos modernos foram criados por homens, e para homens

*Por Michel de Paula Soares e Barbara Gomes Pires

Querida leitora, querido leitor, firmes pela torcida de atletas brasileiros em Paris? Seja no metrô, no ônibus, home office ou nas horinhas de descanso, seguimos torcendo. A coluna de hoje é motivada por dois sentimentos, ambos comuns em toda pessoa que acompanha qualquer tipo de competição esportiva.

O primeiro deles é a emoção que nasce com as vitórias, derrotas, cenas de superação. Não há como não se emocionar com o desabafo da judoca Rafaela Silva após sua derrota. A campeã olímpica do Rio, em 2016, caiu aos prantos enquanto pedia desculpas por não obter o resultado desejado nesta edição. Outro momento emocionante foi o abraço das rivais Simone Biles e Rebeca Andrade, 1ª e 2ª colocadas na ginástica artística geral do individual feminino, uma imagem perfeita do sentimento de solidariedade internacional que deveria, sempre, pautar as competições.

O segundo sentimento é a revolta, cuja fonte são as cenas onde o fair play é ultrapassado ou desrespeitado. Vimos isso em uma luta do boxe feminino, na categoria até 66 kg, quando a italiana Angela Carini desistiu do combate contra a argelina Imane Khelif, apenas após 46 segundos do início da luta.

Imane é acusada pelos gestores da confederação internacional da modalidade (IBA) de ser uma mulher trans, o que a colocaria em suposta vantagem em competições femininas. Angela desistiu de competir, alegando que iria proteger sua saúde porque “nunca senti um soco como esse”, por aderir ao entendimento dúbio dos gestores da IBA de que as vantagens da adversária seriam oriundas de uma desconexão entre seu corpo e sua identidade de gênero, conforme suas declarações ao final do combate.

Espelhar essas cenas de Paris 2024, sobre Rafaela, Rebeca, Simone e Imane, é falar sobre alguns dos desafios enfrentados pelas atletas mulheres no universo competitivo dos esportes de alto rendimento. Ser uma atleta mulher é sempre estar em risco, não importa o quão habilidosa ou vitoriosa você seja, de ter sua feminilidade ou identidade de gênero questionadas.

É bom lembrar que os Jogos Olímpicos modernos foram criados por homens, e para homens. É claro que não para todos os homens, apenas para brancos, europeus e seus cocidadãos. O próprio idealizador do evento, o francês Pierre de Coubertin, acreditava que o esporte competitivo era uma forma de valorizar as virtudes masculinas.

Coubertin não estava inventando a roda: nos Jogos Olímpicos da antiguidade, disputados na Grécia, a participação de mulheres, até mesmo como espectadoras, era proibida. Outro Pierre francês, o antropólogo de sobrenome Clastres, dizia que rituais exclusivamente masculinos tendem a compensar a fragilidade masculina frente às mulheres. O movimento olímpico nasceu como um mundo de competitividade entre indivíduos e nações, mas sem mulheres.

No mundo ocidental, de forma geral, a prática de atividades esportivas competitivas para mulheres sempre foi desencorajada, com exceção de algumas modalidades entendidas como menos viris e conflituosas. No Brasil, essa luta por inclusão não foi diferente.

Em 1941, um decreto-lei publicado pelo presidente Getúlio Vargas proibiu as mulheres de praticarem esportes que não fossem "adequados a sua natureza". Uma regulamentação na década de 1960 seleciona uma série de disciplinas que foram nominalmente proibidas para as atletas, como esportes de luta ou futebol. A vigência desta lei durou até o fim dos anos 80, quase quarenta anos de proibição e afastamento das mulheres do direito fundamental ao esporte.

Voltando para o cenário internacional, foi apenas a partir da edição de 2012, em Londres, que todos os países participantes tiveram ao menos uma mulher atleta em suas delegações. Ainda há modalidades exclusivamente masculinas, como o decatlo, ou esportes exclusivamente femininos, como o nado sincronizado e a ginástica rítmica. Mas a inclusão no quesito da participação olímpica, depois de anos de desigualdade, vem aumentando em anos recentes.

Uma representação dessa desigualdade, ao longo do tempo, foi a insistência do movimento olímpico e de muitas confederações internacionais de patrulharem e investigarem os corpos das atletas. Desde a década de 1930 que algum modelo de “teste sexual” é imposto para filtrar a participação das mulheres nos Jogos Olímpicos. Essa história rende uma conversa à parte, com muitas mulheres passando por testes, humilhações públicas e procedimentos médicos invasivos para provarem que eram “mulheres de verdade”.

Entre proibições e testes sexuais, o boxe pode ser considerado uma modalidade olímpica bem recente para atletas mulheres. Foi também em 2012 que as mulheres finalmente puderam competir como boxeadoras nos Jogos Olímpicos. Em Cuba, por exemplo, a prática da modalidade por mulheres era proibida desde o advento da revolução até 2022, quando passou a ser liberada e regulamentada.

O governo dizia que o boxe era muito perigoso para as mulheres, conforme declaração de Namíbia Flores, boxeadora de Havana conhecida internacionalmente por sua militância em favor do boxe feminino. Incentivadas por Namíbia, outras mulheres, também negras, começaram a praticar boxe em Cuba e engrossaram o coro pela legitimação da prática, confrontando o machismo latente nos discursos oficiais.

"Pienso que las mujeres cubanas están hechas para la belleza, no para recibir golpes en su rostro", disse o chefe de treinadores da seleção cubano antes de embarcar para as Olimpíadas de Londres, em 2012. A construção da ideia de nação cubana forjou-se ao longo do século 20 com eventos e histórias sobre o ethos guerreiro hiper-virilizado da população masculina, fruto do triunfo revolucionário. Era de se esperar que o esporte olímpico, construído sob valores masculinistas, e o boxe, de maneira proporcional, fossem associados diretamente a estes valores.

Na Argélia, terra natal de Imane, a prática do boxe feminino foi permitida oficialmente no início dos anos 2.000. Desde então, houve um crescimento constante no número de mulheres praticando a modalidade e competindo em eventos nacionais e internacionais. Com o auxílio, inclusive, do treinador cubano Pedro Diaz, atual treinador da equipe olímpica, boxeadoras argelinas têm se destacado em competições africanas e mundiais.

Já no Brasil, há uma participação crescente de mulheres nas academias, escolas e equipes competitivas de boxe. Há uma tradição em Salvador e São Paulo, além de outras se formando em algumas capitais, a partir de um desenvolvimento crescente com o advento de competições nacionais oficiais.

E também um quadro de treinadoras sendo formado. Há uma treinadora na equipe nacional, Suelen Souza, pela primeira vez. E um número cada vez maior de atletas que se iniciam logo nos primeiros anos da juventude, fato fundamental para a formação competitiva de alto rendimento.  

Essa inclusão de atletas e treinadoras nas equipes técnicas precisa ser celebrada. Aqui, é preciso lembrar também que a virilidade não é uma característica somente masculina, mas uma disposição social e hormonal que pode ser acessada - em diferentes níveis - por qualquer corpo, seja de homem, mulher ou dissidente de gênero.

Sabemos também que pessoas intersexo não possuem o mesmo desenvolvimento hormonal e anatômico de homens e mulheres sem variações de intersexualidade. O desenvolvimento desse corpo, e consequentemente da capacidade atlética, muda quando se tem hormônios androgênicos em maior carga no corpo, mas nem sempre se pode usufruir dessa alta concentração, por mutações de genes que alteram a capacidade de receptores hormonais. Por isso, é preciso entender e cuidar da saúde da população intersexo - dentro e fora do ringue.

Só podemos especular qual a condição de intersexualidade que fez com que Imane fosse investigada e testada - após participar de várias competições internacionais - pela confederação internacional de boxe (IBA). Ainda assim, de acordo com o próprio COI, ela foi liberada para participar na categoria feminina com base nas normas atuais da modalidade, vigentes desde os Jogos do Rio, em 2016. Um registro importante feito pelo COI em sua nota sobre os ataques infundados que acometeram Imane desde a desistência de Angela é que qualquer aplicação de possíveis “testes sexuais” precisam ser feitos por meio de processos de boa governança e baseados em evidências científicas, o que não aconteceu com a IBA, suspensa em 2019 e descreditada como confederação olímpica desde o ano passado.

Esse registro é fundamental para começar a reparar o longo histórico de investigações de feminilidade reproduzido pelo movimento olímpico e que ainda perdura em determinadas confederações. O direito ao esporte é um direito humano. O conhecimento biológico e hormonal deve complexificar nosso entendimento do esporte e do corpo do atleta de alto rendimento, e não agir antecipadamente como restrição de competição. Nós temos diversos exemplos desses excessos perpetrados pelo controle da feminilidade no esporte, como a tumultuada história de investigação da ex-judoca Edinanci Silva nos anos 1990, que marca e mancha o legado esportivo de atletas com diversidade que só querem competir, representar o seu país e ter a oportunidade de subir em um pódio olímpico.

Felizmente a equidade de gênero alcançou sua maior simetria nessa edição de Paris. Agora o movimento olímpico precisa subir o sarrafo e ser responsável por uma condução qualificada sobre as regras de elegibilidade das atletas mulheres, em conjunto com as confederações internacionais, para garantir uma inclusão sem violência ou discriminação de corpos com variações intersexuais nos Jogos. 

Pensando nesse futuro que voltamos em Imane. Uma mulher africana, de origem árabe, obter sucesso e reconhecimento esportivo, através da conquista de uma medalha olímpica, não foi algo imaginado pelo francês inventor dos Jogos. Que mulheres como ela, com toda sua diversidade cultural e biológica, também possam - assim como Simone e Rebeca - competir e ter a chance de vencer, de nos emocionar, demonstrando que práticas de rivalidade e solidariedade caminham juntas para todas as atletas no mais alto palco do esporte global. 

*Michel de Paula Soares é antropólogo formado pela Universidade de São Paulo, pesquisador do LabNAU e treinador do Boxe Autônomo; Barbara Gomes Pires é Antropóloga formada pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e consultora de gestão de conhecimento para a ONU Mulheres Brasil no projeto "Leveraging sports for gender equality, human rights and a life free of violence".

**As opiniões contidas neste artigo não representram necessariamente as do Brasil de Fato

Edição: Rodrigo Durão Coelho