Coluna

Cuba, Camarões e Gana: três imagens potentes que nos apontam para um futuro ancestral dos Jogos Olímpicos

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Cindy Ngamba, camaronesa representante da equipe de refugiados, já garantiu uma medalha de bronze no boxe - MOHD RASFAN / AFP
Futuro dos Jogos é uma mulher africana com a medalha de ouro no pescoço

*Por Michel de Paula Soares

Vencer, ganhar, conquistar uma medalha. O esporte competitivo é sobre êxito, eficácia, validade. A partir de uma lógica liberal que privilegia a vitória, o resultado é o fato mais significativo, o mais importante. É quem determina quem vai entrar para a história e quem não vai. Por esse motivo, avaliar que um atleta foi injustiçado, embora comum no universo competitivo, causa uma sensação de abandono, indignidade e mesmo revolta. Contestar a avaliação é complexo, porque envolve contestar as regras, normas e seus representantes. Significa contestar a hierarquia, a tradição e o próprio patriarcado

Resultados que dependem da subjetividade de um árbitro ou juiz, como o boxe e a ginástica, não estão livres de contestação. Inclusive porque o que está sendo avaliado é também o estilo, diferente do atletismo, onde a marca, a altura e a chegada é o determinante. O valor emocional que aquele que se põe à prova em um cenário competitivo adquire é uma das conquistas mais importantes na trajetória do atleta. Conviver e suportar as “injustiças” dos resultados avaliativos: eis como um atleta adquiri maturidade.

Uma derrota pode servir de inspiração para a continuidade do trabalho. Wanderley Pereira, boxeador brasileiro que havia conquistado duas medalhas de prata nos principais torneios internacionais de 2023, uma no Pan-Americano e outra no Campeonato Mundial de Boxe Masculino, chegou como candidato a uma medalha olímpica em Paris. Não conseguindo, já anunciou que vai se preparar ainda mais para Los Angeles 2028.

Pela terceira vez na história, a cidade estadunidense vai sediar os Jogos Olímpicos. A escolha das sedes acontece com quase uma década de antecedência. Há inúmeros interesses, conflitos, negociatas e atores envolvidos no processo de candidatura e decisão. A edição de 2032 também já possui local, Brisbane, na Austrália, país que recebe os Jogos também pela terceira vez. Os Estados Unidos são o país com mais sedes, cinco ao total, contando a de 2028. Depois França e Inglaterra, com três jogos cada, todos em Paris e Londres. A América Latina recebeu apenas duas edições, na Cidade do México, em 1968, e no Rio de Janeiro, em 2016. Países orientais, como Japão, China e Rússia, também já foram sede. A África nunca sediou nenhuma edição. 

Assim como a derrota pode ser um ponto de virada, uma vitória pode representar a última aparição, a despedida das competições. Foi assim que acompanhamos o cubano Mijain López, pentacampeão olímpico da luta greco-romana de forma consecutiva, retirar suas sapatilhas no tatame, ato simbólico que representa o fim de sua trajetória. 

A aposentadoria de Mijain López diz muito sobre o esporte cubano de alto rendimento. Por mais que continue à frente no quadro de medalhas, entre todos os países da América Latina, a nação caribenha revolucionária vem decaindo de rendimento, consecutivamente, nos últimos anos. No boxe, com apenas duas medalhas nessa edição, uma de ouro e outra de bronze, o país encerra sua hegemonia de mais de 50 anos, mantida desde 1972.

Mas talvez a “derrota” mais importante de Paris 2024 seja a de Cindy Ngamba, camaronesa representante da equipe de refugiados, composta por 36 atletas de 11 países. Ao perder a semifinal na categoria até 75 kg, a boxeadora, que vive na Inglaterra desde os 11 anos de idade, garantiu uma medalha de bronze.

As modalidades de combate, como o boxe e a luta livre, são populares nos países africanos, inclusive por motivos ancestrais, como descrevo em minha primeira coluna. A medalha de Ngamba é a terceira conquistada no boxe por uma pessoa nascida em Camarões. Outras dezenas de descendentes africanos vêm conquistando medalhas para os países europeus que colonizaram seus territórios de origem, muito recentemente, tanto no boxe como em outras modalidades.

Como Barbara Pires escreveu na última coluna, foi preciso décadas de militância, acordos e pressões para que as mulheres conquistassem espaço no universo do esporte competitivo. É preciso valorizar as conquistas das mulheres negras, africanas, árabes e em diáspora. Nesse sentido, nada mais importante que a conquista da camaronesa Cindy Ngamba, a primeira atleta da equipe de refugiados a conquistar uma medalha olímpica.

Quando estive em Havana, em 2023, notei um descontentamento generalizado sobre a vida cotidiana, especialmente entre a população negra. Mesmo entre aqueles que se consideram defensores dos valores socialistas, há uma espécie de desilusão com relação aos caminhos tomados pela Revolução e seus representantes. Esse desencanto atravessa a preparação esportiva, de forma generalizada. O futuro do esporte competitivo em Cuba vai depender de dois fatores: da forma como o Estado vai transmitir, às novas gerações de talentos, sua capacidade em assegurar oportunidades, boas condições e uma contínua imagem positiva do significado de ser cubano; e do investimento e incentivo ao esporte feminino, ainda hoje menos valorizado no país, em comparação aos homens, por mais que as mulheres cubanas venham conquistando medalhas desde o advento da Revolução.

Já o futuro dos Jogos Olímpicos vai depender de sua capacidade em acolher as demandas dos países do Sul Global e da inserção de corpos dissidentes de gênero entre seus atletas. Não há futuro possível ser lidar com essas questões.

É preciso estar atento para as contradições que atravessam os Jogos Olímpicos. Ao mesmo tempo em que difundem ideais de paz, educação e integração internacional, é também um evento que promove a desigualdade, exclusão e políticas de repressão nas cidades quer servem como sede.

A primeira conquista de uma medalha por uma mulher africana refugiada talvez nos aponte um horizonte. Que os povos africanos possam disputar os Jogos Olímpicos em seu próprio continente. Olhamos, a partir de agora, não para Los Angeles 2028, mas para Acra 2052. Isso porque a capital de Gana já iniciou sua campanha para ser o primeiro país do continente a sediar uma edição das olimpíadas. O futuro dos Jogos Olímpicos é uma mulher africana com a medalha de ouro no pescoço.

*Michel de Paula Soares é antropólogo formado pela Universidade de São Paulo, pesquisador do LabNAU e treinador do Boxe Autônomo.

**As opiniões contidas neste artigo não representram necessariamente as do Brasil de Fato.

Edição: Lucas Estanislau