Berço do samba

Memória e legado da escravidão: conheça a história da 'Pequena África' no Rio

Locais históricos com o Cais do Valongo e a Casa da Tia Ciata preservam e mantêm viva a herança africana no Brasil.

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O Cais do Valongo foi construído em 1811 e foi porta de entrada mais de 1 milhão de escravos africanos no Brasil
O Cais do Valongo foi construído em 1811 e foi porta de entrada mais de 1 milhão de escravos africanos no Brasil - Tomaz Silva/Agência Brasil

A região do Rio de Janeiro conhecida como a "Pequena África", que abrange o território da zona portuária e os bairros da Praça Onze e Estácio, local de desembarque de africanos escravizados no Brasil, representa um dos mais importantes legados da cultura negra no país.

Há 250 anos, o Rio de Janeiro começava a inaugurar um triste e marcante capítulo da história da escravidão no Brasil. No ano de 1774 foi registrado o início do desembarque e comércio dos escravos que chegavam na zona portuária do Rio, bem como o enterro dos africanos escravizados que não aguentavam as péssimas condições da travessia do Atlântico.

Mas a descoberta deste sítio arqueológico aconteceu apenas em 1996, dando origem ao Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN). Em entrevista ao Brasil de Fato, o coordenador de comunicação do IPN, Alexandre Nadai, destaca que foram 165 anos de apagamento desta história.

“Foram construídas casas aqui, nas próprias paredes no nosso material a gente tem resquícios dos ossos dos que aqui estão enterrados, que não foram respeitados, misturados com areia desta construção urbana. A gente está falando de um local que é a personificação da violência contra o africano que foi trazido para ser escravizado no Brasil. Então o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos preserva a memória deste holocausto contra a população africana", afirma Nadai.


Cemitério dos Pretos Novos é considerado o maior deste gênero nas Américas / Fotos: Marco Antonio Teobaldo

O Cemitério dos Pretos Novos, como a região ficou conhecida, era o local onde acontecia o sepultamento dos escravizados que morriam após a entrada dos navios na baía de Guanabara ou logo depois do desembarque, antes de serem vendidos. Alexandre Nadai explica que a origem do termo “pretos novos” surgiu designar os africanos escravizados que desembarcavam no Rio de Janeiro, significando tanto pela questão da idade dos negros escravizados, com muitas crianças que eram comercializadas, quanto pelo tratamento de mercadoria dado a essas populações. 

“Eles eram amontoados dentro dos navios tumbeiros junto com mercadorias, e como mercadorias. E muitos, ao chegar aqui, morriam. Os que chegavam aqui e conseguiam sobreviver eram tratados e iam ser vendidos nas lojas de escravizados. E quem não conseguia era uma mercadoria nova que estragou. Além da idade, tinham crianças, recém-nascidos, porque a idade variava até no máximo 20 anos. Essas pessoas tinham uma vida útil de trabalho de até 15 anos. Dificilmente sobreviveriam mais do que isso nas condições às quais eram submetidos”, conta.

“Então pretos novos é isso, uma mercadoria nova que acabou estragando pela falta de condição com a qual eram cuidados”, completa.


O cemitério foi encontrado por acaso em meio a uma reforma residencial, quando partes de esqueletos foram encontrados / Reprodução / Instagram Instituto Pretos Novos

A descoberta do Cemitério dos Pretos Novos, em 1996, ocorreu por acaso durante uma reforma de residência na região. A fundadora do Instituto Pretos Novos e dona da casa onde foi feita a descoberta, Merced Guimarães, conversou com o Brasil de Fato e contou como se deu este achado.

“O achado foi por um acaso. Nós fomos fazer a reforma da nossa casa e no solo havia vários fragmentos de ossos, cabeças, pedaços de ossos. O pedreiro até achava que aquilo era de animais que as pessoas enterravam. Esse prédio aqui foi comprado depois para poder ampliar a casa, só que a gente não ampliou a casa, a gente acabou fazendo um espaço de memória, onde hoje está o memorial, seria a nossa garagem”, conta Merced.

“A gente tem dois prédios ao lado da nossa casa. A gente sabe que é nosso, mas a gente sabe que é do mundo. E essa é a nossa contribuição para manter esse lugar aberto. É muito importante a gente ver as pessoas entrarem aqui e conhecer essa história. Só em maio vieram mais cinco mil pessoas”, acrescenta.

A partir do achado do Cemitério dos Pretos Novos aconteceram várias descobertas importantes na zona portuária do Rio sobre a chegada dos africanos escravizados na cidade. Um dos achados arqueológicos mais marcantes foi o Cais do Valongo, que foi construído em 1811 e é considerado o maior porto receptor de escravos do mundo. 


Cemitério dos Pretos Novos é considerado o maior deste gênero nas Américas / Foto: Marco Antonio Teobaldo

Estimativas apontam que cerca de um milhão de pessoas escravizadas vindas da África desembarcaram aqui entre 1811 e 1831. O sítio foi descoberto em 2011 durante escavações arqueológicas realizadas no contexto do projeto de revitalização da zona portuária.

No prefácio do livro de Júlio Cesar Medeiros da Silva Pereira - "À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro" -, o cientista político e historiador, José Murilo de Carvalho, conta que o cemitério dos escravos que morriam após a entrada dos navios na Baía de Guanabara ou imediatamente depois do desembarque "funcionava antes no Largo de Santa Rita, em plena cidade, próximo de onde também se localizava o mercado de escravos recém-chegados". Mas diante dos enormes inconvenientes da localização inicial, "o vice-rei, marquês do Lavradio, ordenou que mercado e cemitério fossem transferidos para o Valongo, área então localizada fora dos limites da cidade".

"O Valongo entrou, então, para a história da cidade como um local de horrores. Nele, os escravos que sobreviviam à viagem transatlântica recebiam o passaporte para a senzala. Os que não sobreviviam tinham seus corpos submetidos a enterro degradante. Para todos, era o cenário tétrico do comércio de carne humana", diz o prefácio da obra.

Em 2017, o cais do Valongo foi declarado patrimônio cultural mundial pela Unesco, sendo reconhecido como um sítio de consciência sobre “a mais importante evidência física associada à chegada histórica de africanos escravizados no continente americano”. 

A enorme presença e influência negra nesta área fez com que o compositor e artista plástico Heitor dos Prazeres designasse a região como a “Pequena África”, simbolizando o berço das tradições afro-brasileiras no Rio.

Assim, após o fim da escravidão, a Pequena África passou a ser uma referência, um ponto de encontro, dos ex-escravizados radicados nos morros próximos ao centro da cidade, e também recebendo a migração de negros de outras regiões do país, principalmente da Bahia. Esta confluência da cultura africana no Rio de Janeiro reuniu tradições religiosas, do batuque, dos terreiros e fez com que a região fosse considerada um dos “berços do samba”.

Um desses emblemáticos pontos de encontro era a casa da Tia Ciata, a mais famosa das ‘tias baianas’, como eram chamadas algumas mulheres que vinham da Bahia e faziam do Centro do Rio o seu novo lar.


Roda de samba da Pedra do Sal é uma opção de boa música no Centro do Rio / Divulgação

De acordo com os dados do primeiro Censo realizados no Brasil, sob os auspícios de D.Pedro II há mais de 150 anos, havia no território nacional 1,5 milhão de escravizados, o que representava 15% dos habitantes, entre africanos e brasileiros. Este foi o único censo demográfico realizado durante o período escravidão.

Este enorme fluxo de negros escravizados no coração do Rio de Janeiro branco e europeizado da época é o que ajuda a compor a efervescência cultural da então capital brasileira, resultando em uma das maiores revoluções estéticas do século XX

“Então a gente tinha a maioria de pessoas negras que frequentavam [a Pequena África], e a gente tem os expoentes, como a Tia Ciata, João da Baiana. Donga, todos esses personagens que ajudaram Heitor dos Prazeres a chegar nessa denominação de Pequena África. E o samba nasce disso, nesses terreiros, dessa mistura do maxixe, com o jongo, com a capoeiragem, os tons de terreiro, tanto é que Pixinguinha, que é um dos grandes nomes do samba, você tem ele cantando Yaô: ‘Aqui có no terreiro, Pelú adié, Faz inveja pra gente’, tem Benguelê, e você tem os maxixes, o chorinho. Então dessa mistura dos maxixes, com os batuques dos terreiros, a gente tem o samba”, completa Alexandre Nadai.

Se no passado o território conhecido como A Pequena África foi cenário de tenebrosos crimes humanitários, hoje esta memória vive como força de combate ao racismo e celebração do que há de mais vibrante no legado da cultura africana no Brasil. Da memória da escravidão ao berço do samba, locais históricos com o Cais do Valongo e a Casa da Tia Ciata, preservam e mantêm viva a história da diáspora africana no Brasil.

Edição: Nathallia Fonseca