A troca de prisioneiros entre a Rússia e o Ocidente no dia 1º de agosto já é considerada o maior acordo deste tipo desde os tempos da Guerra Fria. Concretizado no contexto da guerra da Ucrânia, em um momento em que Moscou e o Ocidente praticamente não mantêm contatos, o acordo gerou expectativas sobre possíveis aberturas diplomáticas entre as partes. O êxito da negociação também ressaltou o papel de mediador da Turquia.
A troca de prisioneiros envolveu 7 países e, no total, 26 pessoas foram libertadas, entre elas, o jornalista estadunidense do Wall Street Journal, Evan Gershkovich, e proeminentes políticos da oposição russa que estavam presos, como Vladimir Kara-murza e Iliya Yashin.
Em troca, a Rússia recebeu de volta vários cidadãos russos acusados de crimes cometidos na Europa e nos EUA, incluindo o suposto oficial do Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB), Vadim Krasikov, que cumpria pena de prisão perpétua na Alemanha pelo assassinato de um ex-comandante checheno em Berlim.
O presidente russo, Vladimir Putin, recebeu os presos russos no aeroporto e agradeceu pelos serviços prestados pelos oficiais detidos no exterior. Do outro lado, o presidente dos EUA, Joe Biden, também celebrou o acerto com a Rússia e elogiou a aliança com países da Europa envolvidos nas negociações. “É absolutamente histórico, nós conseguimos”, disse Biden.
A conclusão da complexa negociação ocorreu em um período em que Moscou e o Ocidente praticamente não mantêm contatos diplomáticos. No entanto, para o analista Ruslan Suleymanov, o acordo pode não representar uma abertura para maiores negociações entre Rússia e Ocidente, e, especialmente entre Rússia e Ucrânia. Em entrevista ao Brasil de Fato, o analista aponta que “infelizmente acordos assim são mais uma exceção do que a regra”.
De acordo com Suleymanov, o acordo foi possível, em particular, pelo papel desempenhado pelo presidente russo, considerando a demanda pela libertação de Vadim Krasikov, que estava condenado a prisão perpétua acusado de um assassinato contra um separatista checheno em Berlim.
Pistas de que um acordo sobre troca de prisioneiros estaria sendo costurado haviam sido dadas pelo próprio presidente russo, que declarou em fevereiro que os serviços de inteligência russos e estadunidenses estavam em contato para tratar da situação do jornalista do Wall Street Journal, Evan Gershkovich. Na ocasião, Putin disse que um acordo era possível se os “parceiros tomassem medidas recíprocas". Sem citar o nome de Krasivov, o líder russo mencionou "uma pessoa, que devido a sentimentos patrióticos, eliminou um bandido em uma das capitais europeias".
“Esse fator do interesse pessoal de Putin permitiu esse acordo, mas infelizmente nesse contexto eu não sou otimista, eu não vejo bases para que este tipo de troca aconteça de novo. Para isso são necessários esforços diplomáticos muito difíceis e para que mais uma troca dessas aconteça, é necessário que haja esforços gigantescos”, declara.
Ruslan Suleymanov acrescenta que a troca não sugere a abertura de uma janela de oportunidades em termos de negociações entre a Rússia e a Ucrânia, pois o conflito estaria pautado pela “intransigência” de ambas as partes. “Não vejo bases para concessões, acordos, o que nós vemos é uma intransigência entre Moscou e Kiev”. Segundo ele, a inflexibilidade das partes para abrir negociações está centrada no fato de que “a Ucrânia nunca irá concordar em ceder os seus territórios à Rússia” e, por outro lado, ele afirma que Putin não dá sinais de que vai recuar dos seus interesses no país vizinho.
Por outro lado, considerando a complexidade do acerto diplomático, que além de Rússia e EUA, envolveu Alemanha, Polônia, Eslovênia, Noruega e Turquia, a bem-sucedida negociação também gerou expectativas otimistas. A diretora do Centro Internacional de Defesa e Segurança da Estônia, Kristi Raik, citada pela agência estatal ERR, declarou que a troca de prisioneiros deu motivos para que os defensores das negociações de paz entre Rússia e Ucrânia manifestem sua posição mais ativamente.
Segundo ela, aqueles que defendem o início das negociações de paz nos países ocidentais começaram a “falar ainda mais que é possível negociar e concluir acordos com a Rússia”. Segundo a analista, a troca mostrou que o Ocidente e a Rússia são capazes de “conduzir negociações diplomáticas complexas e chegar a acordos”.
Papel de mediação da Turquia
A troca de prisioneiros foi realizada em Ancara, na Turquia. Normalmente, trocas de prisioneiros ocorrem no território de um país que mantém relações políticas no mínimo neutras com todos os países envolvidos. O acordo também representa o êxito da Turquia em seu papel de buscar uma mediação entre Rússia e Ocidente.
Segundo o jornalista Ruslan Suleymanov, a negociação foi uma conquista importante para a Turquia e, particularmente, para o presidente Recep Tayip Erdogan, pois “mais uma vez ele se mostrou insubstituível para o Ocidente e para Moscou”.
“Erdogan se utiliza desse papel singular. Ele usa isso para que os países ocidentais, por exemplo, fechem os olhos para o que ele faz dentro do país, perseguindo os seus oponentes políticos. Os europeus agora praticamente não falam mais nada sobre os prisioneiros políticos na Turquia, e são muitos. Muitos jornalistas, políticos, estão na prisão”, afirmou.
No plano geopolítico, a intermediação da Turquia também revela uma estratégia de desempenhar um papel ambíguo entre o Ocidente e o Sul Global. Sendo um país-membro da Otan, a Turquia abertamente manifestou o interesse de integrar o grupo Brics. Em reunião bilateral à margem da Cúpula do G7 em 14 de junho, Erdogan pediu o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para que a Turquia passe a integrar o Brics, originalmente formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que teve em 2023 as adesões de Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Irã.
No entanto, para o analista Ruslan Suleymanov, estes movimentos de Erdogan representam uma estratégia do líder turco de justamente conquistar esse lugar de conseguir mediar crises com partes conflitantes em prol de um aumento de barganha para os interesses da Turquia.
“Agora a voz dos europeus se tornou muito quieta neste plano após o início da guerra da Ucrânia. Erdogan se utiliza disso e esse papel singular lhe permite ter relações próximas com Putin. Nós vemos que, independente de todas as dificuldades, eles mantêm contatos, mantêm encontros, a Turquia continua comercializando ativamente com a Rússia”, disse.
Paralelamente às boas relações com Moscou, Erdogan “realizou o que na Turquia chamam de giro de 180 graus em direção a uma aproximação com o Ocidente”, como aponta Suleymanov, que era importante para melhorar a situação da economia turca. “A economia turca é muito dependente dos investidores estrangeiros, e os principais investidores na Turquia são sempre do Ocidente, não é a Rússia, apesar de ter bastante dinheiro russo na Turquia também”, argumenta.
O jornalista lembra que Erdogan continua fornecendo armas à Ucrânia, o que irrita o Kremlin. Desta forma, ao mesmo tempo que Erdogan faz acenos ao Brics, no ano passado ele disse que a Ucrânia merece ser membro da Otan. “Vemos que a Turquia tenta dar alguns passos (para entrar no Brics), mas eu estou inclinado a determinar que é só mais uma tentativa de Erdogan 'ter lugar nos dois assentos' e que ele não tenha uma expectativa séria para a entrada no Brics”, completa.
“Não vamos esquecer que Erdogan, apesar de todas as suas simpatias a Putin, diante da necessidade, ele demonstra lealdade à Otan. E a Otan para ele é uma prioridade mais importante. Se for preciso aprovar a adesão da Finlândia e da Suécia, ele vai ter objeções, fazer exigências, mas no final das contas ele vai aprovar o ingresso de Finlândia e Suécia na aliança’, completa.
Edição: Lucas Estanislau