Relato

Luto e luta na Amazônia: morre Tuíre Kayapó, a indígena que adiou o fim do mundo

A cada tentativa do Estado para calar os povos indígenas, se erguia a voz de Tuíre, falecida neste sábado (10)

Belém (PA) |

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A liderança indígena Tuíre Kayapó - Mídia Ninja

Tuíre Kayapó, uma das maiores lideranças indígenas do Brasil, morreu neste sábado (10) em um hospital na cidade de Redenção, no Pará. Ela tinha 57 anos e enfrentava um câncer de útero. Sua morte encerra uma trajetória marcante na defesa dos direitos dos povos indígenas e da floresta amazônica. Desde as disputas em torno da Usina Hidrelétrica de Belo Monte até o Marco Temporal, Tuíre sempre se posicionou em relação aos ataques do governo contra os povos da floresta.

Tuíre despertou atenção internacional em 1989. Nesse ano, ocorreu em Altamira (PA) o 1º Encontro das Nações Indígenas do Xingu. O evento, que reunia cerca de 600 indígenas, todos pintados para a guerra, tinha o objetivo de discutir os projetos da Usina Hidrelétrica de Kararaô, que posteriormente passou a se chamar Belo Monte.

Em determinado momento, Tuíre, então com 19 anos, colocou um facão no rosto do presidente da Eletronorte, José Antônio Muniz Lopes. Conforme ela lembra em entrevista de 2023 ao Instituto Socioambiental (ISA), ela disse ao presidente da empresa: "Branco, você não tem floresta. Essa terra não é sua. Você nasceu na cidade e então veio para cá atacar nossa floresta e nossos rios. Você não vai fazer isso".

A foto de seu ato correu o mundo e despertou a atenção de autoridades, ativistas e artistas internacionais, adiando a construção da usina em cerca de vinte anos. Depois de construída, Belo Monte ficou conhecida como o "fim do mundo" da Volta Grande do Xingu. Tuíre foi, para usar as palavras de Aílton Krenak, a mulher que adiou o fim do mundo.

Importante lembrar que os Kayapó se autodenominam Mẽbêngôkre, palavra que significa, em sua língua, "povo que saiu do buraco d'água". Para chegar ao mundo, de acordo com sua cosmologia, eles fizeram uma longa travessia, alcançando a superfície da terra através das águas. Os rios são, portanto, as suas raízes. Dessa forma, fica fácil compreender porque esses indígenas se opuseram de forma tão veemente contra Belo Monte: um rio barrado e desviado representaria não apenas o fim da pesca e o fim da navegação, mas também o fim de uma forma de ver o mundo. Se o rio são as suas raízes, com a usina, os Mẽbêngôkre ficariam "desenriozados".

Além disso, um outro elemento marcou profundamente as disputas em torno da usina. A princípio, Belo Monte se chamaria Kararaô, um grito de guerra na língua mẽbêngôkre. Os Kayapó são um povo guerreiro. A coragem e a força são, para eles, atributos sagrados, expressos nos gritos de guerra. Impedir que a grande usina hidrelétrica fosse batizada como Kararaô era uma forma de deixar demarcadas as separações entre a força dos brancos, no caso a energia elétrica, e a força dos indígenas. Era uma forma de deixar bem explícito que, enquanto a força dos brancos era para destruir, a força dos Mẽbêngôkre era para proteger a floresta.

Estive na presença de Tuíre apenas uma vez, durante uma entrevista na cidade de Belém, no ano passado. Na ocasião, ela já estava realizando tratamento de saúde, mas decidiu falar com a imprensa sobre o Marco Temporal, então em votação no Congresso. Tuíre falou em língua mẽbêngôkre, tendo sido traduzida por seu marido, o cacique Dudu. Apesar de não poder entender diretamente as palavras ditas por ela, eu pude sentir a força de sua fala, a firmeza de seu olhar, a convicção de sua entonação. Força, firmeza e convicção que se mantiveram as mesmas ao longo de toda a sua vida, independentemente do interlocutor.

Trinta anos após o Encontro das Nações Indígenas em Altamira, em uma audiência na Câmara, em 2019, Tuíre enfrentou o deputado bolsonarista José Medeiros, então filiado ao Podemos do Mato Grosso. Durante a audiência, o deputado criticou as ONGs que trabalham com os povos indígenas e defendeu a exploração de minério em terras indígenas, tendo sido duramente contestado por Tuíre.

Em 2023, ela enfrentou sua última batalha: o Marco Temporal. Na entrevista concedida a mim, publicada aqui no Brasil de Fato, Tuíre critica os políticos que, mesmo sem conhecer a floresta, insistem em querer dizer o que é melhor para ela: "Porque senador vive na cidade, deputado vive na cidade. Eles não moram dentro da floresta. Nós não, nós vivemos na floresta, na Amazônia (...). Eles deveriam fazer alguma coisa, algum programa deles para dentro da cidade. Eles só querem fazer os programas deles, projetos deles, dentro da nossa reserva, nossa floresta, nossa Amazônia. Essa terra aqui é nossa. Nós que vamos criar algum projeto, que vamos fazer algo dentro da nossa floresta".

Essas palavras ecoam aquelas outras, que foram ditas por ela ao presidente da Eletronorte, e expressam seu descontentamento com a política dos brancos: decidir o destino dos povos indígenas sem ouvi-los. Nos últimos 35 anos, foram muitas as tentativas do Estado para calar os povos indígenas. A cada uma dessas tentativas, no entanto, se erguia a voz de Tuíre.

A saudade é um sentimento muito presente na vida dos Mẽbêngôkre. Isso vale tanto para os vivos, que sentem saudade de seus mortos, quanto para os mortos, que sentem saudade dos vivos. Depois que uma pessoa Mẽbêngôkre morre, sua alma, chamada karon, sai de seu corpo e inicia uma travessia em direção à aldeia dos mortos. Lá, o karon vive uma vida semelhante à vida dos vivos: casa-se, tem filhos, guerreia. No entanto, o karon dos mortos costuma frequentar a aldeia dos vivos, principalmente durante as festas. Os rituais mẽbêngôkre são, ao mesmo tempo, uma celebração da vida e uma homenagem aos mortos. Os Kayapó se recusam a se esquecer de seus mortos, e os karon não se esquecem dos vivos. Os Mẽbêngôkre são tão unidos que nem a morte os separa.

Boa travessia, Tuíre. A cosmologia Kayapó diz que, quando aqui é dia, na aldeia dos mortos é noite, e quando aqui é noite, lá é dia – sempre o oposto. Que a aldeia dos mortos seja uma enorme Amazônia em que as árvores permaneçam de pé e em que os rios corram livres, sem barragens.

Edição: Nicolau Soares