Entrevista

Mês da Visibilidade Lésbica: 'Teatro é o lugar das possibilidades e de invenção coletiva', define a atriz Iassanã Martins

Conversa inaugura a série 'Mulheres lésbicas da cultura de Porto Alegre que você precisa conhecer', do Brasil de Fato RS

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Iassanã Martins é atriz, professora e iluminadora. Licenciada em Teatro, no DAD\UFRGS, Mestra e Doutora pela mesma Universidade - Iassanã Martins - Arquivo Pessoal

Durante o Mês da Visibilidade Lésbica, celebrado em agosto, o Brasil de Fato RS apresenta o especial "Mulheres lésbicas da cultura de Porto Alegre que você precisa conhecer". A primeira é a atriz, professora e iluminadora Iassanã Martins. Ela é Licenciada em Teatro, no DAD\UFRGS, Mestra e Doutora pela mesma Universidade. Iniciou sua formação artística em 2006 na Escola Tem Gente Teatrando, em Caxias do Sul.

Entre seus trabalhos como atriz estão: A visita da velha Senhora (2007), Do It (2012), Caçar e Comer (2014), Oficina Hip Hop Hamlet (2017), Projeto Mulheragem (2017), Todas Nós (2017), Cabaré da Mulher Braba (2023) e Cabaré do Amor Rasgado (2023). Assina luz dos Espetáculos: Umas e Outras (2017), Mulheragem (2017), Todas nós (2017), Boca no Mundo (2018), Três Canções (2019), No te Pongas Flamenca ou por que ainda temos que brigar? (2019), Tiger Balm (2019), Moira (2019) e Diz o Nome (2023).

Também foi professora de Teatro na EMEF Osvaldo Cruz, em Arroio dos Ratos (RS), professora substituta na graduação em Teatro DAC/UDESC de Florianópolis e professora substituta no Colégio de Aplicação da UFRGS. Confira a entrevista:

Brasil de Fato RS - Como você escolheu o teatro? 

Iassanã Martins -
Aos cinco anos, participei do coral onde minha mãe trabalhava. No dia da apresentação, antes de cantarmos, houve uma pequena encenação do presépio vivo. Quando vi aquilo, fiquei encantada. Ainda não sabia ler, mas já sabia que queria ser atriz. Cresci com o sonho de ser artista. Fui uma criança noveleira e posso dizer que fui influenciada pelos melhores: Fernanda Montenegro, Aracy Balabanian, Laura Cardoso, Osmar Prado, Lima Duarte e por aí vai.

Uma vez, teve uma peça na escola e lembro de ficar observando as coxias para tentar saber o que e quem estava lá atrás, na tentativa de compreender como funcionava essa engrenagem que é o teatro. Posso dizer que a minha curiosidade e o encantamento por esse universo é que me conduziram a ser uma mulher de teatro.


"Aos cinco anos ainda não sabia ler, mas já sabia que queria ser atriz. Cresci com o sonho de ser artista" / Foto: Arquivo Pessoal

Como é ser uma lésbica teatreira?

Nasci em Bento Gonçalves, pelo menos até 16 anos atrás, uma cidade com pensamentos bastante limitados quanto à diversidade (cultural, racial e sexual). Desde que cheguei em Porto Alegre, tive a sensação de estar no meu lugar no mundo. Um lugar que respirava liberdade, provocação de pensamentos e possibilidades de um mundo melhor - a cidade do Fórum Social Mundial. Ainda assim, sei que minha leitura de cidade perfeita era conduzida pela ótica ingênua de uma garota vinda do Interior, com sede pro novo.

O teatro em si, apesar de estar inserido neste sistema machista, é o lugar das possibilidades e de invenção coletiva. Se existe algo mais poderoso que isso, desconheço

Entrei na Graduação em Teatro em 2009 e foi mais ou menos nessa época que tive minhas primeiras experiências sexuais, com homens e mulheres. Não posso dizer que as coisas aconteceram naturalmente, pois o processo de me entender como mulher lésbica não foi imediato, foi muito pelas beradas: observando como eu me sentia, como viviam minhas amizades LGBTs nos seus vínculos sociais, como minha mãe correspondia em relação às minhas amizades e a possibilidade da filha dela ser uma mulher lésbica. Fui compreendendo que eu podia bancar esse lugar, longe de ser confortável, mas fui construindo uma rede que me dava suporte para ser quem eu sou.

Compartilho esse processo, pois cada pessoa tem o seu e posso dizer que ser uma mulher lésbica teatreira, é tudo o que sou. O teatro em si, apesar de estar inserido neste sistema machista, é o lugar das possibilidades e de invenção coletiva. Se existe algo mais poderoso que isso, desconheço. Na universidade tive professoras, professores e colegas LGBTs, referências de que não havia nada de errado em ser lésbica. Alguns dos textos, filmes e peças estudadas também abordavam a temática. Ou seja, me sentia protegida.

Ainda hoje me sinto, pois convivo com pessoas das artes, que tendem a pensar mais amplamente e ver beleza na diversidade. O que nos faz únicos, não? Para além do teatro, minha rede de convívio é formada, em sua maioria, por uma rede de pessoas LGBTQIAP+. Então, sob o aspecto de ser uma artista lésbica, dentro desse universo colorido e protegido, é bom demais. Mas não dá pra ser ingênua e achar que para todas as pessoas é assim. Até porque, performo uma mulher cis padrão que “não parece sapatão”. Mas aí é uma longa história, que adentra questões sociais e políticas mais profundas.

Alguma história curiosa, emocionante ou marcante nesses anos de carreira? 

Eu sou apaixonada pelas Fernandas: a Montenegro e a Torres. De chegar a sonhar que elas são minhas amigas, que estou em um sítio na piscina fumando com a Fernanda Torres enquanto a Fernanda Montenegro capina próxima da gente. Ou que estou fazendo cena com elas. Uma loucura! (risos). Adoro assistir os trabalhos delas tanto filmes, séries, novelas, declamações. O vídeo da Torres declamando Necrológios dos desiludidos do amor (Carlos Drummond de Andrade), tem o meu coração. Volto nele constantemente e vejo em looping. É quase uma obsessão pelas duas. Espero que exista uma boa obsessão! Pois elas são referências de artistas, de trabalhos de qualidade, dignidade e de uma inteligência absurda.

Teve uma vez que trabalhei de camareira em uma série em que a Fernanda Montenegro era a protagonista. Eu tinha que vesti-la, mas eu mal conseguia dar bom dia, de tão nervosa que ficava, me sentia um bicho do mato. E era, né!

Eu sou apaixonada pelas Fernandas: a Montenegro e a Torres. De chegar a sonhar que elas são minhas amigas

Quando a 'Fernandona' estava em cartaz com Viver sem Tempos Mortos, assisti duas vezes. A primeira, no Theatro São Pedro (2011/POA), sentei na primeira fila e estava nervosíssima. Enquanto esperava, ficava tentando me concentrar pensando: “meu deus, não vou conseguir prestar atenção. Acho que vou desmaiar!”. Mas aí era teatro com Fernanda Montenegro. Não tinha como dar ruim. A segunda vez assisti no Teatro Raul Cortez, em 2011, em SP, e minha cadeira era uma das últimas. Vi que já ia iniciar a peça e que ainda tinham alguns lugares bem na frente, assim que desligaram as luzes fui correndo. Mais uma vez tive a oportunidade de ver a Fernanda Montenegro de pertinho, fazendo tudo com maestria.

Imagina um monólogo, a atriz sentada o tempo todo, uma luminária acima dela e texto, texto, texto. Quando acabou ninguém aplaudiu de imediato. Era como se o teatro estivesse em suspenso, respirando junto. Nunca vou esquecer. Pra terminar essa minha ode, quero referenciar o livro Prólogo, ato, epílogo: memórias, uma autobiografia da Fernanda Montenegro, um livro que me emociona, porque é uma parte da história do teatro brasileiro escrita por quem viveu intensamente a cena, com amor, dedicação, muitos perrengues e, tá aí com seus 94 anos, fazendo o que nasceu pra fazer. Tenho a maior admiração, amor e arrebatamento por essa mulher. Que privilégio o nosso!

Na sua opinião, qual a importância da visibilidade lésbica dentro desse espaço de cultura?

Como artista e professora, compreendo a arte e a educação como lugares de construção de conhecimento. Mas também de desconstrução, pois a cultura é viva, pulsante. Nada em nossa sociedade é natural, por isso os tensionamentos e disputas de narrativas, que por muito tempo foram escritas por poucos (brancos, ricos e heterossexuais). É inquestionável a importância da visibilidade lésbica no âmbito da cultura, mas gosto de ampliar o debate. Afinal, após muitas lutas de mulheres de todos os tempos, podemos escrever nossas histórias, podemos nos referenciar, ocupar diferentes espaços e reconhecer entre nós, as diferentes 'mulheridades' e as distintas demandas, que em algum lugar se interseccionam, como nos ensina Kimberlé Crenshaw. 

Após muitas lutas de mulheres de todos os tempos, podemos escrever nossas histórias, podemos nos referenciar

As artes fazem parte de seu tempo e contexto social, por isso, neste momento, as questões sobre as mulheres sob a perspectivas das mulheres é tão efervescente, pois enquanto sociedade ainda precisamos evoluir muito. Na mesma proporção que as demandas das mulheres (cis e trans) estiverem no topo das discussões sociais e políticas, estaremos em cena provocando e pensando em alternativas. Pra terminar, quero referenciar uma mulher lésbica, a diretora de teatro Ariane Mnouchkine, que diz que ‘enquanto as leis não estiverem a favor das mulheres, estarão contra elas’. Sendo assim continuaremos colocando nossas questões na vida e na cena.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko