Segurança

18 anos da Lei Maria da Penha: a luta segue diante do aumento da violência contra as mulheres no Brasil

Violência psicológica é o tipo mais registrado no Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher em Fortaleza (CE)

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |
"É importante a mulher saber que pode buscar atendimento na Defensoria mesmo que ela não faça Boletim de Ocorrência", explica defensora pública da capital cearense - Foto: Defensoria Pública do Estado do Ceará

Viajar sozinha. Andar de bicicleta pelas ruas. Andar à noite sem companhia. Pegar uma corrida por aplicativo. Estas até poderiam ser atividades corriqueiras, mas não para quem é mulher. Para nós, é preciso pensar em muita coisa antes de fazer qualquer uma dessas "amenidades". Que roupa usar? Será que não seria melhor colocar uma calça? Com quem vou compartilhar a corrida? Será que não é mais seguro deixar para ir de dia? 

Essas são apenas algumas das preocupações que rondam nossas cabeças no dia a dia. Nossas, sim, porque esse sentimento é coletivo, como demonstra o depoimento da empresária cearense Ivna Pinheiro. "Não me sinto segura andando em nenhum horário e em nenhum lugar. Tenho medo de ser abordada de forma violenta, de ser desrespeitada. Infelizmente, isso já aconteceu comigo e continua acontecendo. Simplesmente não é seguro", diz.

A sensação de insegurança que Ivna descreve faz parte do cotidiano de quem nasceu mulher. Lucélia Souto, professora no Ceará, também expressa seus temores, especialmente pelas filhas. "Meu medo não vem só de uma má iluminação ou da ausência de movimentação, ele vem de questões sociais onde a mulher já é vista como alvo. O medo se torna pânico quando penso nas minhas filhas transitando sozinhas", desabafa.

As falas refletem a realidade de muitas mulheres no Brasil, que apesar dos 18 anos da Lei Maria da Penha, ainda se sentem vulneráveis em seu cotidiano. "Não me sinto segura. Por mais que eu procure não me limitar por conta disso. Certamente, se eu fosse homem, a insegurança seria bem diferente. A violência contra a mulher é potencializada pelo fato de os homens ainda acharem que têm direitos sobre o corpo das mulheres", afirma a médica cearense Yara Bezerra.

"Ainda hoje há homens que acham que podem falar, intimidar, tocar na gente sem a nossa permissão. O medo nunca é 'só' do assalto, do sequestro, o medo maior é do estupro, da violência física e sexual…", reforça. 


A Lei Maria da Penha é tratada pela ONU como referência em combate à violência domestica / Foto: ONU/ Jarbas Oliveira

Não é para menos. Os números são alarmantes e desenham só uma parte do que vivenciamos no dia a dia, já que até estes números são subnotificados e a realidade é muito mais cruel.

Os dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam que o cenário é alarmante: em 2023, 258.941 mulheres sofreram algum tipo de violência doméstica, representando um aumento de 9,8% em comparação com 2022.

Além disso, o número de ameaças cresceu 16,5%, com 778.921 casos registrados. As tentativas de feminicídio aumentaram 7,1% em relação ao ano anterior, totalizando 2.797 mulheres que quase perderam a vida.

Os casos de feminicídios, definidos pela lei como o assassinato de uma mulher somente por conta de seu gênero, foram de 1.457 em 2023. Um crescimento de 0,8% em relação ao ano anterior. De todos os assassinatos registrados, 90% deles foram cometidos por um homem.

Sarah Luiza de Souza Moreira, cientista social, reflete sobre os 18 anos da Lei Maria da Penha e a importância do marco legal. "A criação dessa lei foi fundamental, inclusive, uma lei construída com os movimentos populares, no sentido de enfrentar as diferentes formas de violência contra as mulheres no Brasil. Ela foi um marco e segue sendo um marco importante", afirma.

No entanto, Sarah ressalta que apenas a existência da lei não é suficiente para enfrentar a violência contra as mulheres. "A lei tem os seus limites de implementação, ainda com uma grande impunidade, subnotificação. O melhor caminho é fortalecer espaços de auto-organização das mulheres, oferecer espaços seguros e fortalecer laços de solidariedade", aponta.

Verônica Isidório, professora e militante da Frente de Mulheres do Cariri (CE), compartilha uma visão semelhante. "Nesses 18 anos de Lei Maria da Penha, conseguimos ampliar bastante a legislação em relação à violência contra a mulher. Mas os números crescentes mostram que a lei não é suficiente para um enfrentamento efetivo", diz.

Ela destaca a necessidade de uma ampliação das políticas públicas. "As políticas públicas no Brasil precisam dialogar com o entendimento de enfrentamento à violência contra as mulheres. A ampliação das delegacias das mulheres e a melhoria dos serviços de segurança pública são fundamentais para uma rede de proteção efetiva."

A defensora pública Anna Kelly Nantua, que atua em Fortaleza (CE) reforça o papel fundamental da Lei 11.340 no combate à violência contra a mulher, mas também reflete sobre os desafios do órgão frente aos números, num país onde uma mulher é vítima de feminicídio a cada 15 horas. "É um momento de muita reflexão, onde a gente precisa ver que o caminho ainda é longo para o fim da violência doméstica, porque os números ainda são muito altos", diz.

"Nós temos violência de todas as formas, física, psicológica, moral, sexual, patrimonial, acontecendo diariamente em diversas casas, em diversos lares. Precisamos, enquanto órgão de enfrentamento à violência doméstica, nós como Defensoria e todos os outros órgãos que compõem a rede de enfrentamento, continuar esse trabalho porque ainda temos um caminho longo para percorrer", ressalta.


Defensoria Pública é um dos órgãos que compõe a rede de enfrentamento. / Foto: ZeRosa Filho

A Defensoria Pública é um dos órgãos que compõe a rede de enfrentamento e, em Fortaleza, atua dentro da Casa da Mulher Brasileira, por meio de um núcleo especializado chamado NUDEM (Núcleo de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher).

"Através da Defensoria, a mulher pode buscar atendimento jurídico, ela vai ter o acolhimento de que necessita, a orientação e todo o amparo jurídico de que precisa para romper o ciclo de violência", explica Nantua. 

"É importante a mulher saber que pode buscar atendimento na Defensoria mesmo que ela não faça Boletim de Ocorrência. Mesmo que ela não tenha ido a uma delegacia denunciar aquele agressor, ela pode ser atendida na Defensoria Pública. Ela pode também ser atendida em qualquer situação de violência, seja uma violência psicológica, física, moral, patrimonial ou sexual", reforça a defensora.

A violência psicológica, aliás, tem sido a ocorrência mais registrada no núcleo. "95% das mulheres atendidas no núcleo, de janeiro de 2023 a junho de 2024, sofriam violência psicológica, então essa violência é a campeã, é o carro-chefe dos nossos atendimentos", ressalta. 

Apesar dos avanços proporcionados pela Lei Maria da Penha, os desafios continuam enormes. A luta contra a violência doméstica e o feminicídio no Brasil demanda mais do que legislação, exige uma articulação eficaz entre políticas públicas, segurança, educação e um compromisso de toda a sociedade.

Como bem colocou Sarah Luiza, "o enfrentamento da violência contra as mulheres não pode ser só algo das mulheres. A sociedade precisa assumir esse enfrentamento como uma responsabilidade coletiva, onde homens também devem questionar e enfrentar a violência praticada por seus pares", finaliza. 

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Fonte: BdF Ceará

Edição: Francisco Barbosa