Em um Palácio dos Festivais lotado, Matheus Nachtergaele recebeu das mãos do curador do Festival de Cinema de Gramado, Marcos Santuario, o Troféu Oscarito. Em seu discurso, o ator dedicou a honraria às mais de 200 mil famílias que seguem desabrigadas no Rio Grande do Sul após as enchentes de maio. "Eu gostaria que meu carinho fosse material. Assim, dividiria ele em duzentas mil pequenas porções e daria para cada família que ainda está sem casa nesse estado."
Nachtergaele relembrou sua trajetória por Gramado, elencando momentos como a exibição de A Festa da Menina Morta, seu único longa na posição de diretor até o momento, e que teve estreia nacional na Serra Gaúcha. Também chamou o festival de "nossa morada" e parabenizou o evento pela resistência, ainda mais neste ano.
Pensando sobre o seu fazer artístico na Sétima Arte, refletiu: "Eu queria dizer que o ator é um ser bem perdido, mesmo. E essa doença de alma, quando bem utilizada, é uma coisa boa para a sociedade como um todo. Tem uma função de limpeza mesmo. Tem uma coisa sanitária das almas. O ator, por estar se procurando, por não saber quem ele é, ele vai pegando carona em cada personagem e vai encontrando temporariamente, em si, coisas que ele desconhecia. E durante aquele periodozinho ele fica confortável, em cena, sendo algo. Depois que aquilo acaba, ele está de novo na perdição. Precisa do aplauso, precisa do amor. Ele é um perdido, esfacelado. Ele está se procurando mesmo. Ele está em sofrimento."
O ator contou que gosta de falar que cinemas são templos, que espera que um dia essas edificações voltem a exibir filmes, como era antigamente. Dessa forma, ele classificou Gramado como a catedral do cinema brasileiro: "Gosto de pensar na nossa profissão como orações. Cada filme é uma oração. Nesse sentido, os festivais ao redor do Brasil são nossas igrejas, onde rezamos para o cinema brasileiro. E Gramado é nossa catedral".
Foi um momento bem emotivo para o evento, que Nachtergaele finalizou pedindo para a plateia fazer um som de meditação para ele recitar um poema, inspirado no ator gaúcho Paulo José que sabia várias poesias de cor: "Junto com a plateia em estado de oração e livre, assim como, eu imagino, acontece lá no teatro do Zé Celso [Martinez Correa] e nas obras de arte, quando elas são de verdade, elas são uma oração e a lembrança de algo muito importante, que foi, que é, o que será. Eu estou falando isso porque eu recebi tanto carinho que eu queria devolver esse carinho".
E então, proferiu os versos de Eros e Psique, poema do Cancioneiro de Fernando Pessoa:
"Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino —
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia."
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Katia Marko