Enquanto dá entrevista ao Brasil de Fato, Josimere Queiroz da Silva costura o zíper de 220 bermudas. Ganhará 30 centavos por cada peça. Tudo isso para ser feito em dois dias de trabalho na garagem da casa onde mora, no bairro de Morada Nova, periferia de Caruaru, em Pernambuco.
“Às vezes tem gente que tem problema no rim, eu quando me levanto daqui, eu tô com minhas pernas e costas que não aguento. Eu fico com aquela ansiedade pra entregar no prazo, entendeu? E quando a gente vai à procura de ter alguma condição de comprar algum remédio, às vezes não tem dinheiro, porque o valor que a gente recebe é pouco. Sempre tem a coluna, até a infecção urinária você pega“, lamenta a costureira de 54 anos.
No polo têxtil do Agreste Pernambucano, maior do Nordeste e responsável por 16% da produção nacional do setor, os problemas de saúde e as condições precárias de trabalho das mulheres costureiras carecem, há anos, de atenção do poder público. O problema prossegue apesar da categoria já ter apresentado uma série de reivindicações para a Governadora Raquel Lyra, do PSDB, em uma carta divulgada em 25 de maio deste ano.
A trabalhadora opera sozinha com 4 máquinas, pois não tem condições de pagar outras pessoas para lhe ajudar no serviço. Há 20 anos na costura, ela já não trabalha mais de domingo a domingo, como costumava fazer. Mas também não consegue tirar um salário mínimo por mês.
“Não ganho de maneira nenhuma um salário de R$1400 e pouco no final do mês. Ganho isso não. Se chegar, chega a R$ 700, R$ 800 e olhe lá. E vai depender do nosso esforço. Se você se esforçar mesmo de ir dormir 6 horas, 8 horas da manhã para terminar, você pode até chegar” explica a trabalhadora, cuja renda mensal é complementada pelo trabalho do filho, que costura em uma fábrica de bolsas.
Os municípios de Caruaru, Toritama e Santa Cruz do Capibaribe sediam as principais unidades produtivas. A maior parte da produção é realizada em ambientes domésticos, conhecidos como facções, o que torna difícil a fiscalização das condições de trabalho.
Os produtos são vendidos nas feiras de Caruaru e de Santa Cruz. E também diretamente para atravessadores, feirantes e atacadistas provenientes de outras regiões do Nordeste e do país.
Os baixos preços pagos às famílias são possíveis graças à alta taxa de informalidade. Segundo o último levantamento do Sebrae sobre a atividade na região, 88% das unidades produtivas do polo têxtil de Pernambuco são informais.
“Não aceitam essa frase "análogo à escravidão", mas sim, é análogo à escravidão. Tem peças que são paga por centavos. Ela vai pegar um zíper de uma calça, paga 10 centavos, um bolso, 5 centavos, então para você ter uma demanda de você ter R$ 500 você tem que fazer mil peças, então, torna -se escravo, porque pra você cumprir essa carga toda, pra ter um valor, você vai trabalhar exaustivamente, virando a noite, como a gente diz aqui”, diz Maria Valdinete da Silva, de 51 anos, também moradora de Morada Nova, e um das lideranças entre as costureiras de Caruaru.
“Tem mulher que não tem nem condições de chegar na mesa e jantar junto com a família, ela janta na máquina, porque é terminando, o filho pega o prato, leva pra lá e ela continua trabalhando, feito uma louca. É escravidão. Infelizmente, é escravidão”, lamenta Val, como é conhecida, que começou no ofício com 15 anos de idade.
Reivindicações ao poder público
A realização de um censo estadual, a oferta de energia solar nas unidades familiares, um programa de saúde físico e emocional, a oferta de EPI´s, além de garantir compras institucionais de suas produções estão entre as 19 pautas apresentadas pelas mulheres e direcionados ao Governo de Pernambuco e às Prefeituras da região.
O documento foi redigido pelas organizações que compõem o Projeto Costurando Moda com Direitos: FASE Pernambuco, Fundo SAAP, Cidadania Feminina, Acooperarte, Mulher Art e Ação, Rede de Mulheres Produtoras do Recife e RMR, Casa Lilás, Grupo Espaço Mulher, e Grupo Cactos, Gênero e Comunicação.
Geniane Cavalcante da Silva diz que as mulheres vêm tentando estabelecer um diálogo e agendar uma reunião com a governadora, mas até agora não há qualquer retorno.
“É muita decepção, né? A gente vê uma decepção, principalmente dela, a governadora, que é daqui de Caruaru, um polo têxtil um dos maiores do Brasil, pode se dizer assim. Onde se tem muita riqueza”, lamenta a costureira, que há 12 anos administra uma facção no Bairro São Francisco, em Caruaru.
A oficina de Geniane funciona nos fundos de sua casa, onde trabalham mais 3 mulheres. Todas elas são da mesma família e para cumprir o prazo dos fornecedores, às vezes precisam trabalhar mais de 12 horas por dia. Para aguentar a lida diária, trabalham com um travesseiro improvisado nas cadeiras.
O vestido que as quatro trabalhadoras costuravam enquanto recebiam o Brasil de Fato será vendido por R$ 1,80 a intermediários. Nas feiras, o produto é vendido por R$ 50 a R$ 65, segundo Geniane.
Além do baixo valor pago pelos fornecedores pelas peças, o custo com o aviamento, a linha, a manutenção das máquinas e a energia elétrica. Tudo é bancado por ela.
“A gente sente muita dor de coluna, a visão, a gente vai aos poucos perdendo a visão para colocar a linha na agulha, fica um pouco complicado. Tem costureira que perde o movimento das mãos. Muitas vezes ela já não sente se uma agulha está apertando suas mãos”, destaca a costureira.
Renda básica
Entre os pedidos ignorados pelo Governo Estadual, está também o acesso ao programa Chapéu de Palha, uma política estadual que garante uma renda básica para as costureiras no período de janeiro a abril, quando o setor têxtil para, e não há encomendas.
A política já atende famílias que atuam em outros setores suscetíveis a períodos de entressafra, como a pesca artesanal.
“De janeiro a abril, quem é faccionista, se não sabe fazer alguma outra função pode possar fome, depender de cesta básica, porque são quatro meses que não tem produção no polo de confecções, então mulheres que dependem só da facção nesses quatro meses, elas sofrem”, explica Val.
Para se preservar das dores no corpo, a sobrinha de Geniane, Amanda Danieli, de 25 anos, hoje não está costurando com a tia, a mãe e as primas.
Mãe solo, ela foi demitida recentemente de uma fábrica de confecções por conta das faltas. Hoje sobrevive de outro ofício, o de manicure, e também vendendo espetinhos no centro de Caruaru.
“O médico falou que eu poderia estar possivelmente com fibromialgia, uma doença crônica nos ossos. Quando eu estou costurando muito, eu faço muito esforço com meu pé, meu joelho trava e fica doendo muito, eu tenho que parar de costurar, esticar as pernas e deixar ela esticada por um tempinho para ela voltar. A mesma coisa em meus pulsos, às vezes ficam dormentes e doem muito”, explica Danieli, que começou a costurar com 17 anos.
“Me desligaram da empresa, me mandaram embora, porque eu estava faltando muito. Hoje dia é assim, você não pode nem adoecer. Ele [o empregador] não quer um funcionário que possa adoecer, ele quer um funcionário que seja escravo dele. Eles enricam, compram carros, casas e a gente continua na mesma”, completa.
Costurando Moda com Direitos
No estado, muitas costureiras participam do projeto Costurando Moda com Direitos, que além de além de articular as costureiras com outros espaços coletivos de organizações de mulheres, como o Fórum de Mulheres de Pernambuco, do Agreste, a Rede de mulheres Negras, tenta garantir que elas não sejam vítimas de condições indignas de trabalho.
Foi a partir da iniciativa que foi apresentado o Projeto de Lei 1882/2024 que Institui a Política Estadual de Fortalecimento das Costureiras em Facção de Pernambuco. O texto é de autoria das deputadas Rosa Amorim (PT-PE) e Dani Portela (PSOL-PE), e do deputado João Paulo (PT-PE)
“Tem uma riqueza produzida por esse polo, que é reconhecida no Estado e nacionalmente como um polo econômico, mas as pessoas que fazem essa produção, principalmente as mulheres, não são beneficiadas. E aí as mulheres, dentro do projeto, já conseguem fazer uma leitura de que realidade é essa. É uma realidade baseada na informalidade, na precariedade do trabalho, na sobrecarga”, explica a coordenadora da Fase Pernambuco, Luiza de Marillac Melo de Souza.
“As mulheres falam de uma jornada de 12 a 15 horas por dia, a maior parte desse trabalho desenvolvido dentro da sua casa, às vezes com as crianças no colo, com as crianças do lado, tendo também o efeito de todos os problemas de trabalhar com esse volume de costura, de tecido, de fios, de tingimento, o que isso traz para a saúde delas, para a saúde dos filhos, para a saúde da família”, complementa Souza.
A esperança na organização
A indústria têxtil e de vestuários é a segunda mais poluente do mundo, ficando atrás apenas da produção de petróleo, segundo levantamento da Ong Global Fashion Agenda. Só no polo do agreste, são produzidas 43 mil toneladas de têxteis por ano, cujos resíduos vão para aterros ou serão incinerados.
Foi a partir do projeto que Geniane percebeu a precariedade das condições de trabalho que estabeleciam dentro da sua facção.
“Foram nos informando que estava errado, os preços, que na verdade poderia ser um preço mais justo, que a gente poderia trabalhar apenas 8 horas por dias. A gente achava que era normal muitas vezes trabalhar amanhecendo, só que na verdade foi quando aí fui perceber que isso era análogo à escravidão”, explica a trabalhadora.
“A gente trabalhava muitas vezes de domingo a domingo, trabalhava o sábado o dia todo. A gente não tinha folga. Hoje em dia não, hoje em dia a gente só trabalha de segunda a sexta-feira”, completa.
Val acredita que a organização das costureiras na região ainda será um grande desafio pela frente. “Infelizmente, muitas fecham as portas para nós, porque elas tem medo de retaliação, tem medo de ficar sem trabalhar”, explica.
Apesar disso, ela celebra a união entre elas. “Uma mulher informada dos seus direitos, dos seus valores, do seu trabalho, quem ela é, como ela pode fazer esse trabalho, é bem mais fácil dela brigar por direitos. Quando uma pessoa é leiga, cai em qualquer armadilha, e a confecção, a chamada cadeia da moda, ela é escravizante”, finaliza.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou o Governo de Pernambuco para comentar os assuntos expostos na reportagem, mas não obteve retorno. O espaço segue aberto.
Edição: Nathallia Fonseca